Heráclito

 

Quem se envolve com a filosofia, com a literatura e com as artes em geral, e queira guardar em sua alma o ímpeto anarquista-contestatório da juventude, coisa as vezes mais intuitiva do que, digamos, “racional”, e por assim ser, quem sabe, mais “verdadeira”, talvez nunca deixe de manter um sonho de entender-se com Joyce, com Nietzsche, Cioran, Heráclico, entre outros. Neste ensaio, então, soprando o vento, um modo de deixar as brasas vivas.

1. INFLUÊNCIAS

HERÁCLITO provavelmente nasceu entre os anos de 504 a.C a 1 a.C, em Éfeso, cidade da Lídia, Ásia Menor, na margem esquerda do Rio Caístro, perto de onde este rio desemboca no Mar Egeu. Cedeu as prerrogativas de príncipe ao irmão mais novo e tornou-se misantropo, asilando-se, primeiro no templo de Ártemis e depois nas elevações de Coresso, perto de Artemisio, nas ruínas da cidade antiga. Na solidão, velho e sem conforto, redigiu suas idéias e depositou-as no santuário de Ártemis. Morreu, ao que parece, de cirrose hepática.

Esse velho ranzinza acabou por influenciar toda a filosofia, deste seu âmago. Ainda que trate de questões éticas, como boa parte de seus contemporâneos, ocupa-se, no fundo, com o próprio pensamento. Heráclito verificou que, ao colocar frente a frente os opostos – bem, mau, harmonioso, sem harmonia (frag 10) – poderemos ir além da linguagem, do “ver lógico”: eliminamos (temporariamente) os limites, limites que são o nascedouro da compreensão. É o que, em último grau, tentam fazer os poetas, ou os “lógicos da metáfora (JACOBSON), ou a dialética, ou os matemáticos (teoria dos conjuntos [conjunto do universal], cálculo infinitesimal, paradoxos).

Entretanto há que se cuidar, manter um fio de Ariadne a nos lembrar da realidade onde tudo nasce e tudo é comum e (como diria mais tarde NIETZSCHE) voltar ao solo árido, a que pertence o vulgo: ou, então nos atolaremos num labirinto de palavras. Em linguagem moderna diríamos que tratamos de “poluição semântica”: nos input e output nascem, dirigidos aos indivíduos, imperativos contraditórios entre si.

Como ele também o fez DIDEROT quando perguntou sobre a validade da “erudição”, sobre o “vulgo”, e sobre a estrutura econômica assim baseada, dando base à Revolução Francesa (ver, por exemplo, “Le Nouveau de Rameu”). WITTGENSTEIN da segunda fase, ao que me parece, iria concordar que a linguagem apenas INDICA (como no oráculo), se fixa limites é apenas um jogo (Evo joga dados). HEGEL vê no Efésio terra firme – é deste último as bases da dialética. Quem admira o introdutório de Ecce Homo não poderá deixar de notar alguma semelhança com o Fragmento n. 1. NIETSZCHE confirma essa influência: “A doutrina sobre o eterno retorno das coisas, doutrina de ZARATUSTRA, poderia ter sido proclamada por HERÁCLITO.” BUDA também fala dele: “Devo eu, Buda de Savancaoc, lembrar-te a frase de HERÁCLITO que “para os que estão despertos há um só mundo”? (referência ao fragmento 1 ?).

Vou arriscar mais: o paradoxo humano de conservar-se, mas precisar do outro para orientar-se e fortalecer-se, foi tratado por HOBBES e, por último, por FREUD, no mecanismo que denominou de “pulsão”. Ser pessoa, no dizer, psicanalítico, é pertencer a si mesmo, rever-se no outro se ocultando nas palavras (LACAN). Traduzindo-se para a linguagem de HERÁCLITO, pode-se dizer que esse ser faz-se pelo LOGOS, uma vez que a “psique tem um LOGOS que aumenta por si mesmo”.

2. O LOGOS

O Fragmento I (veja abaixo) estaria a indicar a doutrina heraclítica do LOGOS. Todavia as possibilidades são tantas quanto à tradução deste fragmento, que é difícil extrair alguma conclusão clara. Do Fragmento I, entendo, enfim, com DAMIÃO BERGE, que para Heráclito, a verdadeira natureza das coisas, a PHYSIS, está oculta, e só é revelada no LOGOS, através de um expressivo esforço do pensamento. Uma vez que o LOGOS “é” (fragmento 1), então é porque está em todos os seres, de forma que é preciso “seguir-se o comum”(fragmento 2).

Mas o LOGOS não é a PHYSIS. Ele apenas é o comum, mas que precisa ser redescoberto, para transmitir a PHYSIS. Assim, a concordância com este LOGOS universal é condição e critério do conhecimento certo. O homem isolado (idiotes), especialista, não é hábil o suficiente para encontrar a grande verdade universal (sophie). A ciência do LOGOS se faz pela prática, pela experiência, e pouco adianta demonstrá-la logicamente.

Todavia, é pior ainda para aqueles que não sabem disso, pois vivem sem saber o que fazem. O que importa não é a observação mas a experiência, a prática, o tomar contato com o mundo sem a intermediação do pensamento. Axynetos são os ignorantes (frag. 1), mas no sentido de ‘inábeis’ (axunetos). O interessante é que ele, Heráclito, pode descrever “a natureza das coisas, definindo-a e indicando-a”, o que vem a significar que a transmissão do seu método investigativo pode realmente ser feito, mas que, efetivamente, somente ser ‘apreendido’ na experiência.

O mestre do LOGOS, portanto, pode professar no oráculo (frag. 34), mas o seu campo de trabalho efetivo é o comportamento, no máximo sinalizando, indicando (fragmento 93). Se aqueles que entram nos rios saem modificados, é preciso induzi-los a adentrar os rios. Entrando junto, quem sabe. Afora disso tudo é relativo, é medida do próprio homem, sem validade ontológica, como o tamanho do sol (Fragmento 3).

Isso está reafirmado no Fragmento 2, a partir da constatação de que o LOGOS é o comum, está em todos, é o que nos assemelha (sem semelhanças, sem agrupamentos, conceitos, não se faz a linguagem). Eis o paradoxo: o LOGOS está no comum, mas é preciso separar-se para estabelecê-lo. Mas quando se faz, já não se é o comum. Voltar? Mas já seremos outros, após adentrar o rio. A resposta está no fragmento 10, ao sinalizar para o movimento, a contraposição dos opostos: a partir de tudo, um, e de um, tudo.

É o que ocorre com a guerra, que está em todos (frag. 80), nas suas lutas diárias de fazer-se e conservar-se (a necessidade – Chréo), numa permanente ação e reação. A PHYSIS, enquanto buscada pelo LOGOS, irá harmonizar essas contraposições do movimento, mas somente para negá-las, produzindo novamente a discórdia.

A linguagem oracular é adequada porque não é clara, nunca afirma ou nega: exige uma atividade de desconstrução (DERRIDA). O oráculo apenas faz referências, sugere, sinaliza (frag. 93) (KANT diria depois que tanto o objeto é apreendido disforme, tanto nosso pensamento é modificado por ele). Se o ser debate-se entre potência e ato, o pensar seguirá esta ordem. Para que atinja a unidade, os problemas lhe serão postos, mas não resolvidos: é o suficiente para fazer nascer a unidade.

Mas esta realidade unificada diante do intelecto nunca poderá representar a PHYSIS (KANT ?): racionalizar é reduzir. Entre potência e ato, a linguagem carrega em si algo que impede e permite a comunicação: impede, porque não traduz nem o ser nem a realidade; possibilita, porque traz algo desse ser, a diferença (a igualdade na diferença e a diferença na igualdade). Mas o ser, enfim, faz-se a si pela linguagem, que, feita, não pode perdurar, justamente porque “feita”. Quer dizer: “fabricada para aquilo” ela não pode, efetivamente, “nomear” e quer voltar ao sujeito. Teria, quem sabe, apenas Vontade de Potência (NIETZSCHE) – mas isto não é tudo? Fale FREUD, a respeito do Urverdrängung – o recalque originário : “o representante psíquico da pulsão vê recusada sua assunção pelo consciente. Ele se posiciona, então, como inconsciente, assim como a pulsão lhe permanece ligada”. Alguma semelhança?

O papel da sophie, segundo HERÁCLITO, é, então, o da exposição, da colocação dos contrários. É o mesmo que diz WITTGENSTEIN em sua segunda fase (Investigações Filosóficas): “as confusões com as quais nos ocupamos nasce quando a linguagem, por assim dizer, caminha no vazio, não quando trabalha”. Contrapondo os contrários eles nos responderão na forma do LOGOS, desvanescendo seus limites. Ora, “o senhor no oráculo de Delfos não fala nem oculta: mas indica”.

Ao todo são 131 fragmentos, boa parte com várias asserções de seus conservadores, o que dificulta saber o que foi, em verdade, que HERÁCLITO escreveu.

Creio que os fragmentos a seguir fazem uma síntese do pensamento do Efésio, além de serem os mais conhecidos e citados. Tentei deixar o texto o mais literal possível, ainda que isso acabe contendo vários conflitos, indefinições: se a linguagem deve manter-se no indicar, é assim que deve ser.

Manter as contradições, ademais, significa aproximá-lo, por exemplo, um pouco de JOYCE e suas conhecidas polissemias.

De toda forma, uma vez que estamos no campo da filosofia, toda tradução é na verdade, uma obra nova.

Extraí do estudo original a comparação que fiz com as traduções de DAMIÃO BERGE, GERD A. BORNHEIN e WERNER JAEGER. Mas, sempre que possível, é interessante ao leitor verificar também o que dizem aqueles autores – o estudo de BERGE, aliás, é imperdível. Também retirei, por dificuldades de formatação, o texto em caracteres gregos.

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FRAGMENTO 1

Deste logos que é, serão sempre ignorantes
antes de ouvir ou ouvindo o princípio:
“Do logos do qual tudo vem, parecem inexperientes
antes de falar ou fazendo
mesmo que eu descreva a natureza das coisas
definindo-as e indicando-as”.
Aos demais
Não sabem o que fazem, acordados
ou esquecem o que fazem, dormindo.
OBS:
– A palavra aei (sempre) cabe tanto à eontos (é, existir) como a axunetoi (os homens);
– logou : alguns traduzem LOGOS por ‘palavra”, razão ou entendimento.
Aristóteles, por exemplo, censura a não colocação de uma vírgula esclarecedora.
– physin : também são variadas as traduções de PHYSIS, tais como natureza, verdadeira natureza, ou, ainda, gênese ou origem (estes últimos, por W. Jaeger, 133); Jaeger adianta que essa palavra é intraduzível, mas que “refere- se à HYBRIS, pois o pensador ultrapassa os limites impostos ao espírito humano pela inveja dos deuses”(134).

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FRAGMENTO 2

Por isso é preciso seguir-se o comum: porque o que é de todos é comum.
Mas, de um logos que é de todos, a multidão vive como tivesse pensamentos
próprios.

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FRAGMENTO 3

(O Sol tem) a largura de um pé humano.

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FRAGMENTO 4

Si felicitas esset delectationibus corporis, boves felices diceramus, cum inveniant orobum ad comedendum.
Se a felicidade estivesse nos prazeres do corpo, diríamos felizes os bois, quando encontram ervilha para comer.

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FRAGMENTO 10

Uniões inteiro e não-inteiro, reunido separado,
harmonioso desarmonioso, e a partir de tudo, um, de um, tudo.

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FRAGMENTO 12

Aos que vão para os mesmos rios vem novas e novas ondas

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FRAGMENTO 34

Os que ouvem e não tem experiência permanecem como surdo-mudos:
do oráculo são testemunhas presentes que estão ausentes.

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FRAGMENTO 48

Bios: é o nome que o arco tira à vida, obra de Thánatos
Obs:
– jogo de palavras: bíos (vida) e biós (arco);
– Thánatos é a morte, ou o deus da morte;
– as armas de Ártemis eram o arco e a flecha, tal qual as do seu irmão, Apolo. Seus santuários eram invioláveis, e seu templo em Éfeso, chegou a ser considerado uma das sete maravilhas do mundo.

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FRAGMENTO 49 a

Nos mesmos rios não só entramos mas também não entramos, não apenas somos mas também não somos.

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FRAGMENTO 52

Evo é um menino que ri, jogando dados: reino de criança.
Obs:
-Evo : o tempo, filho de Khronos.

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FRAGMENTO 58

Tal bom tal ruim
OBS: a frase tem o sentido de “são o mesmo”.

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FRAGMENTO 62

Imortais mortais, mortais imortais,
Existem dos que estão mortos, morrem dos que estão vivos.

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FRAGMENTO 80

A sabedoria de Chréo diz que Pólemos é de todos, que Dike é Éris,
Que tudo nasce de Éris e de Chréo são filhos.

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FRAGMENTO 93

O senhor que está no oráculo de Delfos
nem fala nem oculta, mas indica.

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FRAGMENTO 125

A bebida composta se decompõe se não agitada.

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FRAGMENTO 126

Os frios ficam quentes: o quente frio, o úmido seco, o árido úmido.

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