Resumo sobre: O Cárcere e a Rua

 

É grande o poder de síntese das cenas que abrem O cárcere e a rua (2004).

Numa área comercial de Porto Alegre, a câmera acompanha em plano-médio, a meio metro, os passos de Cláudia, senhora negra de 54 anos de idade. Ela compra tintura para o cabelo. Na rua, pergunta onde fica o ponto final de uma linha de ônibus que desconhece. Ninguém lhe informa com precisão. Cláudia roda o largo uma vez, duas. Pergunta de novo. Anda sem parar. Diante de um rapaz que lhe indica o ponto, surpreso com a equipe de filmagem, ela explica: “é que eu estou saindo da prisão”.

Assim, com um didatismo tão poético quanto cruel, o documentário da gaúcha Liliana Sulzbach, vencedor da sua categoria em Gramado 2004, deixa claro desde início o que lhe importa narrar. Não é o maquinismo da cadeia, como em outros filmes da safra nacional recente, mas o baque da soltura. Depois de uma vida cerceada, diante da estranheza da rua, o que fazer com a liberdade?

Cláudia está um tanto zonza porque passou boa parte da sua existência cumprindo pena por latrocínio – assalto seguido de morte. Na Penitenciária Madre Pelletier, exclusiva para mulheres, ela mandava, como uma mãezona. Sentia-se tão habituada que os seus pertences não passam pela porta quando lhe é concedido o regime semi-aberto.

O caso da menina Daniela é oposto. Acaba de ser presa por infanticídio – tentativa de matar o próprio filho – o que Daniela, grávida, nega. Réu primária, ela pira em poucas semanas quando percebe que ficará por muito tempo. Não fosse o acolhimento de Cláudia, certamente se machucaria na mão das internas que não toleram esse tipo de crime. Mas no período de um ano em que Liliana recolhe depoimentos íntimos, Cláudia sai. Daniela fica.

Entre esse dois lados está Betânea, presa por assalto que, passados três anos em Madre Pelletier, também tem direito ao semi-aberto depois de cumprir um sexto da pena. Mais jovem e instável que Cláudia, ela não se acostuma com o alojamento reservado fora do presídio. Sai e decide não voltar certa noite. Primeiro por uns dias. Liliana acompanha Betânea por vários meses. Feliz, apaixonada mesmo dizendo que homem não presta, a foragida treme com medo da polícia mas não pretende voltar.

E é isso. São somente três entrevistadas que têm a rotina perfilada, dentro de um gênero que gosta de ostentar quantidade. O cárcere e a rua dá certo porque ao escolher três casos representativos, um a um resumo de situações distintas, consegue se aprofundar aos poucos, com paciência, em cada um deles.

E chegar à psicologia das mulheres é o mais importante aqui. Diferentemente de um documentário voltado para as coisas do presídio, das regras, dos limites, retratar a liberdade – e a lembrança fresca de liberdade no caso de Daniela – não é simples. Exige sensibilidade para captar nos silêncios, nas entonações de voz, nos passos na calçada, nas cenas do dia-a-dia que nos parecem banais, a sensação de viver em um mundo que não é seu.

E Liliana se sai muito bem com a sua câmera respeitosa, quase afetuosa, tentando descobrir o que dá força a Daniela, o que empurra Cláudia e Betânea à necessidade de se adaptar. Para identificar na maternidade perdida o norte das ex-presidiárias, e saber transmiti-lo na tela, é preciso ser mulher também.

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