Resumo: Os fármacos e a quiralidade: uma breve abordagem

 

 

1. INTRODUÇÃO

Muito pouco têm-se falado no Brasil sobre a estereoquímica dos fármacos e sua importância na terapêutica. Segundo sua disposição espacial, como a existência de dois enantiômeros, um fármaco pode antagonizar a ação de seu estereoisômero, ou um dos enantiômeros pode apresentar um efeito terapêutico e o outro ser responsável por um efeito secundário, ou ainda os dois apresentarem a mesma atividade mas apenas um manifestar um dado efeito indesejável, dentre outras conseqüências não menos importantes. Enfim, o que se sabe é que estereoisômeros apresentam interesses terapêuticos diferentes por apresentarem, na grande maioria das vezes, perfis terapêuticos diferentes.

Pode-se igualmente afirmar1 que, na grande maioria dos casos, os fármacos administrados sob a forma racêmica possuem características biológicas muito inferiores aos seus enantiômeros puros. O verapamil2 1 – importante fármaco amplamente utilizado como antagonista do Ca++ no tratamento da angina pectoris e em arritmias cardíacas – que é comercializado como uma mistura racêmica, é um bom exemplo para esta afirmativa. A atividade farmacológica do dexverapamil R (+) é diferente de seu enantiômero S (-), tanto em humanos quanto em animais. Também é relatado que o dexverapamil é menos tóxico que a mistura racêmica.

 

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Em países do Primeiro Mundo, cuja indústria farmacêutica é responsável pela quase totalidade do arsenal terapêutico existente, a busca para o desenvolvimento de fármacos enantiomericamente puros tem crescido desde a última década. Contudo, os fármacos ainda são na sua maioria comercializados na forma de racematos (mistura equivalente de dois enantiômeros). Existem alguns poucos fatores envolvidos para justificar a comercialização de racematos e poderíamos citar, entre estes, as diversas dificuldades existentes nas sínteses dos enantiômeros puros, muitas vezes envolvendo várias etapas, o que os torna de difícil acesso sob o ponto de vista econômico. Neste aspecto, os fármacos “de origem natural” ou semi-sintéticos ocupam importante espaço, visto a relativa facilidade de obtenção de estruturas enantiomericamente puras, porque os processos biossintéticos oferecem alto grau de estereosseletividade3. Entretanto, este quadro está sendo revertido graças, entre outros aspectos, a novas técnicas na resolução de racematos, como a cromatografia quiral ou a própria síntese quiral.

A existência de um crescente interesse pela obtenção de fármacos enantiomericamente puros, pode ser demonstrado pelo número cada vez maior de trabalhos publicados nas mais diversas áreas relacionadas como a farmacodinâmica, a farmacocinética, a síntese assimétrica e o desenvolvimento de métodos analíticos. Entretanto, existem alguns fatores que poderiam justificatificar a existência de fármacos desenvolvidos na forma racêmica, além dos problemas de ordem sintética e econômica citados anteriormente. O fenômeno da “inversão quiral” que ocorre com os analgésicos antiinflamatórios não esteroidais (AINES) arilpropiônicos ou o fato de alguns fármacos apresentarem estreita janela terapêutica, são alguns destes fatores que justificativam a comercialização destas misturas de estereoisômeros. Este é um tema bastante sério, envolvendo cada vez mais um número crescente de pesquisadores preocupados com o aspecto estereoquímico dos medicamentos e suas conseqüências na terapêutica.

 

2. QUIRALIDADE4,5,6,7

Antes de abordarmos os aspectos que envolvem o termo “quiralidade”, torna-se importante o situarmos num contexto mais amplo de “isomeria”. Isômeros são compostos que possuem os mesmos constituintes atômicos, porém suas disposições na molécula são diferentes, conferindo conseqüentemente características químicas diversas. Os isômeros possuem diferentes classificações de acordo com esta distribuição atômica (isômeros de função, de cadeia, etc) e, o que nos interessa neste artigo, é a distribuição de seus átomos no espaço: os estereoisômeros.

Estereoisômeros são aqueles isômeros cujos átomos ou grupos de átomos possuem uma distribuição espacial diferente na molécula. Eles podem ser divididos em geométricos ou ópticos. Os isômeros geométricos são estereoisômeros que não apresentam atividade óptica* e sua terminologia está centrada em cis (do mesmo lado) e trans (lados opostos) para descrever sua disposição espacial. Para os alquenos, na maioria da vezes, pode-se igualmente falar em Z e E para cis e trans, respectivamente.

Isômeros ópticos são aqueles que apresentam atividade óptica, possuindo centros quirais ou centros assimétricos. Dentro deste conceito, podemos dizer que a quiralidade manifesta–se quando a molécula possuir uma das seguintes características6: a) um centro de quiralidade** (C*, Si*, S*, P*, N*); b) um eixo de quiralidade (alenos, espiranos); c) um plano de quiralidade e d) uma forma de hélice (hexaeliceno).

As moléculas com um elemento de quiralidade apresentam enantiomeria. Os enantiômeros são estereoisômeros relacionados entre si por uma simetria em relação a um plano e são também conhecidos como antípodas ópticos .

As moléculas que apresentam dois ou mais elementos de quiralidade apresentam a diastereoisomeria. Diastereoisômeros não são enantiômeros; por exemplo, para uma molécula com dois centros quirais, teremos neste caso dois diastereoisômeros e todos os seus quatro isômeros não serão sobreponíveis no espelho plano4,5 Enquanto que os enantiômeros possuem as mesmas características físicas, como solubilidade ou ponto de fusão, os diastereoisômeros podem apresentar diferentes propriedades físicas e também químicas, aspectos que veremos mais adiante.

 

3. ENANTIOMERIA – CONSEQÜÊNCIAS DA PRESENÇA DE UM ELEMENTO DE QUIRALIDADE

Um enantiômero existe sob forma de dois pares de isômeros, não superponíveis mas simétricos em relação a um plano (Figura 1):

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Os enantiômeros apresentam desvios polarimétricos opostos de mesma magnitude:

+ α (+) ou d (dextro); – α (-) ou l (levo)

onde o ângulo de rotação a é simplesmente a rotação observada 5.

Misturas contendo igual quantidades de enantiômeros (50:50) são chamadas de misturas racêmicas (ou racematos) e são opticamente inativas. A falta de atividade óptica, neste caso, é decorrente do fato de que enquanto um dos enantiômeros desvia o plano da luz para um determinado valor, o seu par o desvia, na mesma proporção, na direção exatamente oposta, anulando o resultado final. Este é o caso em que uma substância quiral é inativa opticamente5.

O poder rotatório específico4 depende de condições experimentais e foi definido pelo físico francês Biot em 1860, como sendo propriedade intrínseca de uma molécula opticamente ativa e é tão significativo na caracterização de um dado composto, quanto o são o ponto de fusão e a densidade, por exemplo, sendo definido pela seguinte equação:

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sendo [α]: rotação específica; α: a rotação observada; c: concentração da amostra em g/ml de solução e l: o comprimento do tubo do polarímetro, em dm.

As configurações das estruturas indicam a disposição dos átomos ou grupos de átomos ao redor do centro estereogênico. Estas são indicadas pelo sistema de Cahn-Ingold-Prelog e não tem nenhuma relação com o desvio da luz polarizada. Este método permite determinar dois enantiômeros distintos: R e S. Se um enantiômero possui a configuração R, seu estereoisômero possui consequentemente a configuração S 6.

Um outro sistema particular de nomenclatura utiliza D ou L para a determinação da configuração relativa dos amino-ácidos, açúcares e substâncias análogas, em projeção de Fischer6.

Estes isômeros apresentam as mesmas propriedades químicas e físicas, exceto quanto à rotação específica [α]. Entretanto, eles podem apresentar diferenças extraordinárias naqueles fatores que dependem de seu rearranjo no espaço, mostrando seguidamente diferentes propriedades farmacodinâmicas e farmacocinéticas (reconhecimento quiral)5,8. O termo reconhecimento quiral 5,8 tem sido empregado para processos onde algum receptor quiral (ou mesmo reagente quiral) interage seletivamente com um dos enantiômeros da molécula quirale depende do grau de interação exibido entre cada enantiômero e o sítio de ligação quiral. Em processos biológicos, altos níveis de reconhecimento quiral são bastante comuns. Dois outros termos podem ser usados para comparar as diferenças farmacológicas entre dois enantiômeros: eutômeros e distômeros 9,10,11. Chama-se de eutômero o isômero que apresenta a atividade desejada e distômero aquele que é inativo ou não-desejado. A partir disto, a proporção eudísmica é a razão das potências entre os dois enantiômeros e pode ser usada para descrever a razão de potência tanto in vitro como in vivo, sendo uma indicação do grau de estereosseletividade11. Pequenas proporções eudísmicas são observadas quando o eutômero tem baixa afinidade pelo receptor10. O aumento na proporção eudísmica com o aumento da potência do eutômero é conhecido como a Regra de Pfeiffer 10, cuja importância está na tentativa de estabelecer uma relação proporcional entre a potência e atividade de um enantiômero quando comparado com seu antípoda óptico.

Patrick12, no seu livro “An Introduction to Medicinal Chemistry”, resume muito bem as duas importantes características dos enantiômeros: “Existem somente duas diferenças detectáveis entre dois enantiômeros de um composto quiral: eles desviam o plano da luz polarizada em direções opostas e ainda interagem diferentemente com outros sistemas quirais, como as enzimas. Isso tem sido de grande importância para a indústria farmacêutica”.

 

4. DIASTEREOISOMERIA – CONSEQÜÊNCIAS DA PRESENÇA DE DOIS OU MAIS ELEMENTOS DE QUIRALIDADE

Cada estrutura com n elementos de quiralidade existe sob a forma máxima de 2n isômeros opticamente ativos. Portanto, dois centros de quiralidade podem fornecer até 4 compostos ativos: o número de estereoisômeros pode diminuir quando for possível a forma meso, que é aquiral e opticamente inativa.

Os diastereoisômeros por não apresentarem, em geral, a mesma energia interna, podem apresentar propriedades químicas e físicas diferentes4,6:

• ponto de fusão
• ponto de ebulição
• momento dipolar (µ)
• solubilidade
• índice de refração (αD): em sinal e magnitude
• velocidade de reação

Os diastereoisômeros, diferentemente dos enantiômeros, podem ser facilmente identificados pelos métodos espectroscópicos usuais: difração de Raios X, Infravermelho, RMN e Espectrometria de massas, permitindo assim determinar a configuração relativa destes estereoisômeros13. O mesmo pode-se dizer para os métodos de separação, onde os processos comuns de cromatografia ou cristalização fracionada permitem uma boa separação dos diastereoisômeros.

 

5. INSTRUMENTOS ANALÍTICOS PARA DETERMINAR OS ENANTIÔMEROS

Como os enantiômeros não apresentam diferenças físicas e nem químicas, como citado anteriormente, não podem ser analisados pelos métodos comuns. Estes estereoisômeros necessitam ser analisados por técnicas analíticas especiais, tanto do ponto de vista quali quanto quantitativos. Este é um capítulo extenso e bastante importante, sendo apenas apontado nesta publicação alguns métodos empregados na análise de enantiômeros14:

5.1 Rotação óptica (α)

É ainda o mais simples e mais utilizado para se determinar a pureza óptica11 de um líquido, gás ou solução de um composto opticamente ativo. Mede-se empregando o polarímetro que consiste basicamente em dois prismas de Nicol, um atuando como polarizador e o outro como analisador. Essa técnica possui o inconveniente de exigir uma quantidade relativamente grande de amostra (da ordem de mg), o que às vezes não é disponível. Também pode ser usado para a análise qualitativa de um dado composto.

5.2 Ressonância Magnética Nuclear (RMN)

Diferentemente do que foi citado anteriormente para os diastereoisômeros, a RMN convencional não possibilita em geral distinguir entre dois enantiômeros. Os experimentos em RMN15,16,17 prevêem o uso de solventes quirais (por exemplo: (+) ou (-)-1-feniletanol), reagentes quirais e matrizes como α-, β – e γ-ciclodextrinas. A separação dos sinais pelo uso de solventes opticamente ativos17 dependerá do grau de assimetria ou quiralidade do solvente escolhido, do grau de associação e da temperatura. A inclusão de amostras em matrizes quirais pode conduzir a uma duplicação de certos sinais, permitindo medir a proporção dos isômeros presentes. Com a separação e isolamento de enantiômeros por Cromatografia Líquida de Alta Eficiência quiral e posterior análise por RMN, pode-se determinar a configuração absoluta dos estereoisômeros.

5.3 Cromatografia: Cromatografia Líquida de Alta Eficiência (CLAE) e Cromatografia Gás-Líquido (CGL)

A cromatografia é o método de resolver enantiômeros mais empregado atualmente e que teve considerável avanço tecnológico nos últimos anos15,16,18,19. A CLAE e a CGL podem ser empregadas tanto para resoluções analíticas quanto para preparativas de um grande número de substâncias e dependem principalmente da seleção de uma fase estacionária quiral, permitindo ainda uma resolução direta. Exemplos de fases estacionárias11,17,18 são os carbohidratos e proteínas, ésteres láuricos de amino-ácidos, polisiloxanos quirais, ciclodextrinas modificadas.

As principais aplicações da CLAE quiral encontram-se na determinação da pureza óptica, no isolamento dos estereoisômeros e, uma grande vantagem devido a alta sensibilidade analítica, no isolamento de pequenas quantidades de enantiômeros necessários para estudos pré-clínicos.

5.4 Birrefringência circular e dispersão óptica rotatória (ORD: Optical Rotatory Dispersion)

Método que se baseia nas diferentes velocidades de propagação da luz existente entre dois enantiômeros dextrógiro e levógiro. O princípio deste método9 é a variação do poder rotatório específico [α] em função do comprimento de onda λ. Esta técnica fornece gráficos onde as curvas dos enantiômeros são a imagem uma da outra no espelho plano, permitindo assim a análise quantitativa de uma mistura de enantiômeros e determinar a configuração absoluta de um estereoisômero.

5.5 Dicroismo Circular (CD: Circular Dichroism)

Esta técnica (medida física) permite a determinação da configuração absoluta de enantiômeros e se baseia na medida da diferença de intensidade de absorção entre a luz polarizada dextro e levo. Para execução desta metodologia, a substância a analisar deve absorver no ultra-violeta e ser comparada com uma substância de configuração conhecida que tenha os substituintes semelhantes (ou próximos) ao redor do centro estereogênico.

 

6. QUIRALIDADE E ATIVIDADE BIOLÓGICA E FARMACOLÓGICA

A existência de enzimas e receptores estereoespecíficos no organismo conduz às caraterísticas biológicas diferentes para as estruturas quirais. O resultado desta ação estereosseletiva pelos receptores protéicos é devido a uma ocupação preferencial de um sítio receptor por um dos enantiômeros8,11. Como conseqüência direta teremos as mais diversas respostas biológicas para os estereoisômeros.

No que diz respeito aos compostos quirais em geral postula-se, de maneira resumida, que existam quatro tipos de comportamentos biológicos esperados4: a) a atividade biológica desejada é atribuída a apenas um dos enantiômeros, enquanto que o outro é inativo; b) os enantiômeros possuem propriedades farmacológicas idênticas (ou próximas), tanto do ponto de vista quali como quantitativo; c) a atividade é qualitativamente idêntica, mas quantitativamente diferentes entre os estereoisômeros e d) as atividades dos dois enantiômeros são qualitativamente diferentes. Na tabela 1 podem ser visualizados alguns exemplos de fármacos com suas diferentes atividades devido a sua estereoquímica6,11.

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Contudo, esta estreita relação existente entre a atividade farmacológica e a enantiomeria das substâncias ativas é muito forte, pois o grau de estereosseletividade dos receptores biológicos e das enzimas a estas substâncias é igualmente forte. Com o grande avanço das técnicas de separação dos enantiômeros, houve a possibilidade de realização de estudos farmacológicos destes isômeros isolados de sua mistura racêmica. Este fato permitiu arrolar dados farmacocinéticos, conduzindo, de forma um tanto didática e resumida, aos seguintes exemplos de comportamentos, complementando um pouco a classificação anteriormente citada:

6.1. Um dos estereoisômeros apresenta atividade farmacológica e o outro é inativo

Esta é uma situação extremamente desejada, contudo bastante incomum. Um dos raros casos encontrados é o antihipertensivo a-metildopa 2, onde sua atividade é atribuída ao seu isômero L8,9. Este é um dos poucos fármacos comercializados na forma enantiomericamente pura.

 

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6.2. Ambos os enantiômeros apresentam potência e atividades similares

Esta é outra situação extremamente rara9, uma vez que espera-se que os receptores e as enzimas atuem seletivamente frente a diferentes arranjos espaciais. Os isômeros da prometazina 33,9,20 apresentam esta característica, quando comparados separadamente, no que diz respeito à atividade anti-histamínica, embora seja conhecida a alta estereosseletividade aos antagonistas dos receptores H1.

 

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Um anti-histamínico H1 que não apresenta ação colinérgica como efeito secundário é a terfenadina. Embora possua um centro assimétrico em sua estrutura, estudos recentes20 realizados in vivo com seus isômeros puros, revelaram que estes possuem a mesma atividade que a mistura racêmica.

Estes são dois casos típicos onde a produção (com subseqüente administração) do isômero puro não oferece nenhuma vantagem frente à forma de racemato.

6.3. Enantiômeros com atividades similares mas potências diferentes

Contrariamente aos casos anteriores, esta é uma situação bastante comum9. A nimodipina, um potente antagonista do cálcio, mostrou estereosseletividade de ação para seus enantiômeros em estudos realizados in vivo 21. Os resultados mostram que o isômero puro S (-) foi duas vezes mais potente que a forma racêmica e que esta foi igualmente mais potente que o antípoda R (+). Este trabalho revela a existência de outro fator extremamente importante: a farmacocinética do fármaco, que pode variar de acordo com o estado físico do paciente, como doentes renais ou hepáticos e que podem apresentar enormes diferenças quando comparados com voluntários sadios9.

A warfarina 4 inclui-se nesta categoria. A potência do isômero S (-) in vivo é cerca de 2 a 5 vezes maior que seu antípoda R (+). Essa diferença é devido aos perfis farmacocinéticos/farmacodinâmicos diferentes de seus dois pares enantioméricos8,9.

 

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Os β-bloqueadores, e nessa classe inclui-se o propranolol 5, ligam-se seletivamente aos receptores β, sendo que o enantiômero S (-) é o maior responsável por esta atividade β-bloqueadora3. Como a warfarina, as diferenças na farmacocinética deste fármaco são as responsáveis por este comportamento diferenciado dos enantiômeros9, onde a forma R (+) liga-se mais às proteínas plasmáticas que a forma S (-).

 

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Inclui-se neste item ainda o verapamil 1, onde ambos os estereoisômeros são equivalentes na potência para os efeitos vasodilatadores, mas o R (+) é cerca de 8 a 10 vezes menos potente no que diz respeito a sua ação cárdio-depressora8,9.

6.4. Um estereoisômero antagoniza o efeito secundário de outro

A indacrinona8,9,10 6 possui uma ação diurética, apresentando como efeito secundário principal a retenção de ácido úrico. Neste caso, o eutômero é o enantiômero (+), isto é, o responsável pela atividade diurética e também pelo efeito secundário enquanto que seu par (-) atua reduzindo os níveis de ácido úrico (agente uricosúrico). Estudos indicam8 que variações nas proporções enantioméricas podem oferecer becefícios terapêuticos.

 

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6.5. Um estereoisômero pode ser o responsável principal pela ação terapêutica desejada e o outro pelos efeitos secundários

Devido a estas características, estes isômeros são comercializados nas suas formas enantiomericamente puras. Podendo ser citados: L-Dopa, α-dextropropoxifeno e o S (-)-timolol9. No caso do L-Dopa 7 , usado como antiparksoniano, a maioria dos efeitos colaterais, como granulocitopenia, é devida ao isômero D.

 

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6.6. A atividade existe para os dois isômeros, enquanto que o efeito indesejado é atribuído a apenas um deles

Pode-se exemplificar10 esta situação com a prilocaína 8, cuja ação anestésica local é atribuída a ambos os isômeros, sendo sua toxicidade devida a apenas um dos enantiômeros.

 

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Outro exemplo bastante interessante9 é a ciclofosfamida 9, cujo centro de assimetria é devido ao átomo de fósforo, contrariamente à esmagadora maioria onde tem-se o carbono assimétrico. Existem relatos que mostram que a atividade antitumoral deste fármaco é duas vezes mais efetiva para o isômero (-), apresentando os mesmos níveis de toxicidade que seu antípoda (+). Neste caso, talvez o desenvolvimento de formas enantiomericamente puras trouxesse vantagens terapêuticas.

 

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Para o anestésico cetamina, que é administrado como racemato, existem relatos de que a forma S (+) possui cerca de 3 a 4 vezes mais potência que a forma R (-) e ainda que este isômero R (-) é o responsável pelos efeitos colaterais pós-operatórios (alucinações e outras sequelas psicóticas) observados com o uso da forma racêmica deste isômero puro 3,8,9,10.

6.7. Cada estereoisômero possui diferentes tipos de atividade de interesse terapêutico

Neste caso9,10 encontra-se o medicamento conhecido como Darvon® 10, (2S,3R)-(+)-dextropropoxifeno que possui atividade analgésica, enquanto que seu antípoda Novrad® 11, (2R,3S)-(-)-levopropoxifeno é um antitussígeno, atividade totalmente distante dos efeitos analgésicos. Como conseqüência direta destes efeitos, estes medicamentos são comercializados isoladamente, possuindo logicamente especialidades farmacêuticas diferentes.

 

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Alguns derivados n-metilbarbituratos apresentaram diferenças devido à estereoquímica de seus representantes9,22. Estudos realizados in vivo mostraram que, para dois compostos sintetizados, dois de seus enantiômeros atuaram como depressores do SNC, enquanto que seus respectivos antípodas ópticos atuaram como convulsivantes.

6.8. Um mistura de diastereoisômeros pode levar a efeitos benéficos

Existem situações em que a mistura de isômeros pode beneficiar o paciente, podendo ser comercializada como tal. É o caso do agente antihipertensivo labetalol (Figura 2), que é comercializado em iguais proporções dos 4 estereoisômeros9. Este fármaco é considerado um “pseudo-híbrido”, porque múltiplas formas isoméricas estão envolvidas na atividade biológica. Seu isômero RR possui atividade b-bloqueadora e o isômero SR é predominantemente a-bloqueador; os outros 50% dos isômeros são inativos, podendo ser considerados como impureza10, que não são separadas pois consiste em um processo caro.

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Mesmo não sendo um diastereoisômero, pois possui apenas um carbono assimétrico na estrutura, citaremos aqui a bupivacaína 12 como um exemplo de mistura de isômeros benéfica ao paciente10. Ambos os isômeros da bupivacaína possuem atividade anestésica local, porém apenas a forma levo apresenta um efeito vasoconstritor.

 

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7. QUIRALIDADE, METABOLISMO E FARMACOCINÉTICA

Muitos são os caminhos percorridos por um medicamento até sua completa eliminação do organismo. Contudo, este fármaco (quiral ou não) pode ser conduzido ao sítio de ação por diferentes meios de transporte e ser metabolizado por diversos mecanismos. No caso de transporte do tipo passivo, que depende basicamente das propriedades físico-químicas do fármaco, a estereosseletividade dos enantiômeros não é importante pois, como vimos anteriormente, suas propriedades físico-químicas são idênticas. Ao contrário, se o transporte for do tipo ativo, que implica no envolvimento de uma enzima transportadora, uma alta estereosseletividade dos enantiômeros é observada.

Como consequência desta importante estereoseletividade e especificidade pronunciadas das proteínas, teremos conseqüências importantes durante o processo farmacocinético: absorção, distribuição, metabolismo e excreção dos fármacos. Algumas relações entre estereosseletividade e farmacocinética foram apontadas nos ítens anteriores e pode-se constatar a partir dos exemplos fornecidos, que a administração de um enantiômero puro conduz a extraordinárias diferenças farmacocinéticas9,11. Portanto, é de extrema importância uma abordagem crítica acerca destes efeitos e as reais necessidades entre a comercialização de fármacos enantiomericamente puros e racematos.

 

8. INVERSÃO QUIRAL

A possibilidade de um enantiômero racemizar em solução permite que ocorra o fenômeno da inversão quiral. Esta característica justificaria a comercialização do racemato4. Como exemplos deste fenômeno, podemos citar a (S)-(-)-hiosciamina (agente anticolinérgico), atropina e os agentes antiinflamatórios não esteroidais (AINES) da série dos 2-arilpropiônicos.

Embora a atividade antiinflamatória dos AINES22-26 seja atribuída ao enantiômero S (+), estes fármacos são comercializados na sua grande maioria sob a forma de racematos. Esse fato ocorre porque no organismo os AINES sofrem uma inversão quiral unidirecional, envolvendo a conversão do isômero inativo R (-) ao seu enantiômero farmacologicamente ativo S (+). Na figura 3, encontra-se o mecanismo provável desta transformação, empregando o ibuprofeno como exemplo:

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Este mecanismo23,25 começa, numa primeira etapa, com o R-(-)-ibuprofeno sendo estereoespecificamente ativado em R-(-)-ibuprofeno-CoA por uma acil-CoA sintetase. Esta forma ativada é racemizada em S-(+)-ibuprofeno-CoA por uma epimerase. Este tioéster é então hidrolisado através de uma via enzimática, para regenerar o ácido livre. A coenzima A possui um papel essencial neste processo, mas não deve ser a única enzima responsável pela formação do tio-éster. Este mecanismo de inversão foi demonstrado em ratos, sendo possível a extrapolação ao homem. Muitos autores11 consideram o isômero R-(-)-ibuprofeno um pró-fármaco do seu antípoda S-(+). Estes resultados foram obtidos graças aos recentes desenvolvimentos em separações estereoespecíficas por CLAE que permitiram acesso aos dados farmacocinéticos.

A existência do fenômeno da inversão quiral conduz a uma aceitação da comercialização de fármacos estereoisoméricos na forma de racemato. No entanto, esta justificativa é bastante controversa, existindo na literatura opiniões antagônicas a respeito27. Retomando o ibuprofeno como exemplo que, como afirmado anteriormente, é comercializado na forma racêmica e com uma determinada posologia, seu uso poderia ser melhor racionalizado. Essa racionalização seria relacionada à dose prescrita, onde com o racemato a quantidade do fármaco necessária para exercer ação é maior que se fosse administrado o eutômero puro S (+), uma vez que essa inversão não ocorre totalmente.

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