Resenha do Livro “O Campo da Antropologia no Brasil”

 

O Livro O Campo da Antropologia no Brasil é um dos produtos do projeto “Formação
acadêmica, pesquisa e mercado de trabalho em antropologia no Brasil”, elaborado pela
direção da ABA, gestão 2002-2004. Entre os objetivos do projeto estavam: “a) a análise das condições de formação dos antropólogos e da pesquisa desenvolvida no âmbito dos
programas de pós-graduação em antropologia no Brasil; e b) o estudo das inserções
profissionais dos egressos da pós-graduação” (pág. 13). O grande esforço de pesquisa levado a cabo pela direção da ABA e por uma equipe de investigadores, cumpriu a tarefa de “realizar um levantamento, o mais extenso até hoje, das características da antropologia tal como ela é praticada no Brasil” (pág. 7). A massa de dados gerados pela pesquisa, como em outras iniciativas desse porte, possibilita diversos recortes analíticos. Este material será disponibilizado pela ABA, como indicado na “apresentação” do livro, assinada por Gustavo Lins Ribeiro e Antonio Carlos de Souza Lima.
Na “Introdução” faz-se um breve histórico da pesquisa e das diretrizes que assumiu ao
longo do seu processo de realização, além de informações fundamentais na compreensão dos termos de referência que estruturam os capítulos do livro. O referido projeto foi encaminhado a Wilson Trajano Filho, que conduziu a pesquisa ao lado de Carlos Benedito Martins, especialista na investigação sobre a pós-graduação no Brasil. De modo a dar conta dos objetivos traçados, elegeram-se como fontes privilegiadas de dados os relatórios anuais dos programas de mestrado e doutorado em antropologia social, enviados a CAPES, os bancos de dados das agências governamentais de apoio à pesquisa e dos programas, e a busca de informações junto aos egressos dos programas, através de questionário aplicado. O recorte temporal dos dados da pesquisa abrangeu de 1996 a 2001, para o caso dos relatórios da CAPES, isto é, a partir do ano de implantação de uma nova metodologia de avaliação por aquela instituição, e de 1992 a 2001, para o levantamento junto aos egressos dos programas, cobrindo uma década. Portanto, foram considerados 10 programas de mestrado (UFF, UFPA, UFPE, UFPR, UFRGS, UFRJ, UFSC, UnB, UNICAMP e USP) e 6 de doutorado (UFPE, UFRGS, UFRJ, UFSC, UnB e USP). Ficaram de fora o programa de mestrado profissionalizante da UCGO e os doutorados da UFF e UNICAMP, pois foram constituídos após o recorte temporal estabelecido; e programas mistos como os de Sociologia e Antropologia do IFCS/UFRJ e de Ciências Sociais, da PUC-SP, UERJ e UNICAMP, pois não era possível selecionar, nos relatórios enviados a CAPES desses programas, as informações requisitadas na pesquisa. É importante destacar que este recorte no tempo abrange um período de significativas mudanças nas políticas de pós-graduação, particularmente no que diz respeito ao financiamento da pesquisa, à redução do Tempo Médio de Titulação (TMT) e ao expressivo aumento no número de egressos, mestres e doutores, entre outros aspectos.
O núcleo do livro propriamente dito consiste em 9 capítulos de análise dos dados oriundos da pesquisa, para o que foram selecionados antropólogos atuantes no Brasil com expressivo reconhecimento acadêmico, seguido de “um olhar de fora”, isto é, um comentário do antropólogo português João de Pina Cabral. Os temas dos capítulos foram sugeridos pela equipe de direção da pesquisa: “presidiu a escolha um princípio de unidade formal que
garantisse uma visão totalizante do campo, suas questões e sua dinâmica, e um
questionamento antropológico fundado na complementaridade entre uma abordagem
quantitativa a um enfoque qualitativo” (pág. 20). Para cada autor(a) foi dada uma lista de
termos de referência, informações organizadas em tabelas, relatórios e listas de publicações, e um elenco de questões consideradas pertinentes à análise, à luz do estado das artes de cada um dos temas escolhidos. Esta forma de proceder, fundamental para se lançar um olhar analítico sobre uma vasta gama de dados, permitiu que se tivesse, ao mesmo tempo, uma idéia ampliada do campo da antropologia no Brasil e enfoques em questões e debates específicos, embora sempre relacionados à totalidade. A seqüência de análises permite ao leitor, na medida em que avança na leitura, configurar um quadro ampliado e detalhado da profissão no Brasil, ao mesmo tempo em que lança novas perguntas e hipóteses, ou imagina possíveis recortes analíticos que surgem dos dados e interpretações apresentados.
No capítulo sobre os egressos dos programas de pós-graduação, Miriam Pillar Grossi
destaca a expansão da pós-graduação em antropologia no país e particularmente do número de egressos na última década. O aumento da oferta de cursos, mais comum no mestrado que no doutorado, a implantação do sistema de avaliação da CAPES e a aceleração do TMT, aliado à crescente procura por antropólogos no mercado de trabalho, são os principais fatores atribuídos pela autora para este aumento. É significativa a redução da idade de conclusão do mestrado e do doutorado, mas não tão acentuada quanto se poderia prever, pois muitos optam por intervalos entre graduação e mestrado, e mestrado e doutorado. Isto faz aumentar a média de idade de conclusão mais do que o prolongamento do TMT. Entre os dados que mais chamam a atenção, estão os que indicam que a maioria dos egressos atua em Instituições de Ensino Superior (IES) e está em plena atividade. Contudo, entre os mestres apresenta-se maior variação nas opções de trabalho, como ONGs, Institutos de Pesquisa, administração pública, empresas e organizações sindicais e políticas, onde tendem a ganhar mais do que na academia. Quanto aos doutores, há maior presença na academia, sobretudo em IES públicas, ao contrário dos mestres, que ocupam nichos de trabalho em IES privadas, decorrentes da recente e crescente expansão do ensino superior privado no Brasil. A maioria procura manter
atividades de pesquisa, mesmo sem financiamento, além de participar com regularidade das reuniões da área. Estas reuniões tornam-se importantes elos de afirmação da identidade profissional, uma vez que grande parte dos egressos que atuam no ensino, sobretudo mestres, não estão vinculados a departamentos específicos de antropologia.
É a partir da constatação da ampliação do campo de atuação profissional e de novas
inserções no mercado, que Cláudia Fonseca lança a pergunta: formar antropólogos para quê?
Além da tradicional demanda pelo saber antropológico em IES, a autora identifica a presença de novas perspectivas de atuação em círculos extra-disciplinares e extra-acadêmicos. Numerosos contingentes de profissionais têm procurado programas de pós-graduação (lato e stricto sensu) em antropologia, a fim de agregar valor a currículos e atividades profissionais.
Por outro lado, a disciplina e seus profissionais têm estado presentes em diversos
departamentos e cursos fora da área específica das ciências sociais. Assim, na segunda parte do capítulo, Claudia Fonseca dá início a um instigante exercício de investigação, ao recorrer a depoimentos de profissionais que atuam nesses novos nichos de mercado, a fim de identificar quais as competências aí exigidas dos antropólogos. O dado qualitativo que emerge das entrevistas nos faz pensar, como o faz a autora, em estratégias e cautelas voltadas à promoção de uma formação que venha a dialogar de maneira mais eficaz, e crítica, frente às demandas contemporâneas. Ao lado disto, fica a impressão de que o saber antropológico tem sido exigido, numa tendência crescente, como instrumental direcionado à aplicação em iniciativas de planejamento e intervenção social. Talvez desta tendência venham a emergir futuros debates ou mesmo linhas de pesquisa preocupadas em examinar a relação entre interdisciplinaridade e trabalho profissional.
As políticas de financiamento e o sistema de avaliação e seus efeitos na constituição
da antropologia como campo disciplinar, é assunto tratado por Giralda Seyferth em seu
capítulo. Como nas demais áreas de conhecimento, os resultados da avaliação implantada por agências financiadoras influenciam na forma de distribuição de recursos e atribuição de bolsas e recursos vinculados. Neste sentido, a autora propõe o criticismo em relação aos critérios universalistas adotados por algumas agências. Em linhas gerais, seu principal argumento é o de que sejam observadas algumas peculiaridades, em conformidade com a configuração do campo da antropologia no Brasil e do saber antropológico. Com relação ao primeiro aspecto da questão, a autora argumenta, por exemplo, que a antropologia no Brasil é uma área consolidada e com projeção no exterior, o que pode ser atestado nas notas altas recebidas nas avaliações dos programas. Por outro lado, alguns dos critérios do qualis vêm a privilegiar a publicação em periódicos “internacionais” (leia-se “estrangeiros”) em detrimento de algumas publicações nacionais, assim como a divulgação em revistas científicas sobrepõe-se à divulgação dos resultados de pesquisa através de livros e capítulos de livros. Isto se deve à fixação de critérios válidos para se identificar o reconhecimento científico em outras áreas que não a antropologia. A hierarquização com base em critérios quantitativos também é vista como problemática, em decorrência da especificidade do saber antropológico, que exige, em grande parte das vezes, demorados e complexos relacionamentos sociais. Em atendimento a essa demanda quantitativa pode-se perder não apenas rigor científico como vir a ocorrer a banalização na apresentação e divulgação de resultados. A autora destaca que não é contra a avaliação, e que seus efeitos positivos podem ser aferidos. Contudo, constata que “o sistema de avaliação, tal como ele existe hoje, não contempla a diversidade das áreas de conhecimento, fato que interfere principalmente nas atividades de pesquisa…” e emenda: “não defendo a inexistência de prazos, mas sim sua flexibilização, de modo a não prejudicar o desenvolvimento reflexivo do trabalho acadêmico” (pág. 101). Assim, o que Seyferth vem a chamar a atenção é para a importância da avaliação e do financiamento como instrumentos geradores da dinâmica e ampliação do campo disciplinar e não para o contrário: “daí o posicionamento cauteloso relacionado à ´naturalização` dos indicadores quantitativos” (pág. 101).
A dinâmica temática da antropologia no Brasil é justamente o assunto tratado a seguir,
por Paula Montero. Apesar das limitações de dados de que dispunha, a autora buscou cruzar
informações de modo a identificar quais os principais interesses de pesquisa e “problemas que organizam o campo da disciplina no país e como eles evoluíram ao longo dos últimos dez anos” (pág. 117). Entre as tendências apontadas pela autora estão a crescente dispersão regional e institucional da pesquisa e uma inversão em processo: a perda de força na predominância de escolha de “objetos reais” sobre objetos teoricamente construídos. Outra parte de sua análise é voltada para se pensar sobre as continuidades ou rupturas com a clivagem entre “etnologia indígena e indigenismo” e “antropologia da sociedade nacional”.
Apesar de representar uma parcela minoritária em termos de contingentes de pesquisadores, a “etnologia indígena” mantém grupos e linhas de pesquisa consolidados há mais de décadas no Brasil, e com forte interlocução internacional. Já a expressão “antropologia da sociedade nacional” talvez não seja mais suficiente para dar conta da multiplicidade de interesses e modos de recortar objetos. Por fim, a autora identifica, ainda, tendências como a emergência de alguns temas, a longevidade de outros – como “religião” e “família e relações de gênero” -, a mudança na abordagem de alguns tópicos e, por fim, a diminuição na freqüência de alguns assuntos. Outras variáveis são exploradas neste capítulo que apresenta, em anexo, uma listagem, formulada pela autora, resultante do cruzamento de linhas e grupos de pesquisa, e que nos oferece uma visão bastante razoável dos múltiplos temas de interesse de antropólogos atuantes no Brasil.
Os capítulos sobre Formação e Ensino e sobre a disseminação da antropologia no nordeste e norte lançam mão de dados de outros programas de pós-graduação e instituições de pesquisa, para além dos PPGA, a fim de ampliar o quadro de abordagem sobre o campo
disciplinar em nível nacional e regional. No primeiro caso, Guita Debert traça um histórico do sistema de pós-graduação e do ensino de antropologia no Brasil para, em seguida, observar algumas tendências e diferenças na formação de antropólogos no país. Entre os elementos em comum estão o modo de se estruturar a passagem dos alunos pelos programas, como o processo seletivo e as etapas de cursos, pesquisa, qualificação e defesa. Outros fatores estão relacionados à presença de disciplinas que ganham o estatuto de “obrigatórias”, como as de História e Teoria Antropológica, ou as de Parentesco e Organização Social. Por outro lado, algumas disciplinas ou são “tradicionais”, ou “emergentes” – e neste caso é relevante alguma variação regional – ou, ainda, estão “em queda livre”, por raramente serem ministradas, apesar de serem constantes entre as optativas. Outros dados deste capítulo referem-se à diversidade de linhas de pesquisa e à presença ou não de formas de financiamento. A autora encerra o texto com a sugestão de uma lista de questões a serem discutidas entre os profissionais da área como, por exemplo, a política de financiamento da pesquisa, a expansão do ensino superior e seus efeitos na antropologia, a finalidade do doutorado no exterior ou no país, o ensino na graduação e a relação entre a pesquisa em ciências sociais e o setor público.
Já as relações entre antropologia e ciências sociais são destacadas nos dois capítulos
seguintes, de autoria de Antonio Motta e Maria do Carmo Brandão (sobre a antropologia no
Nordeste) e Jane Felipe Beltrão (sobre “Amazônia e Antropologia”). Nas duas regiões,
sobretudo no Nordeste, a antropologia encontra-se disseminada em diversos programas de
ciências sociais ou de sociologia. O levantamento histórico demonstra a significativa presença da antropologia em alguns Estados como, por exemplo, o Rio Grande do Norte e a Bahia, onde não se estabeleceram programas de pós-graduação em antropologia. O único programa específico da área na região Nordeste encontra-se em Pernambuco. Assim, os autores levam adiante um esforço de identificar onde se pratica a antropologia, através das linhas de pesquisa de programas de sociologia e ciências sociais da região, O texto ainda assinala a problemática de se estar “sitiado” pelas ciências sociais, com efeitos em políticas de financiamento, no registro da produtividade e na própria dinâmica do campo disciplinar. Por fim, destaca-se a importância das reuniões regionais de antropologia, como lugar de
visibilidade, interlocução e identificação profissional. Através das informações sobre essas
reuniões foi que os autores puderam desvelar algumas linhas e interesses de pesquisa nas
regiões Norte e Nordeste. Jane Beltrão aborda, ainda, o fato de a “Amazônia” ser um tema
recorrente na antropologia praticada no Brasil e na interlocução de muitos antropólogos
atuantes no país com outros, estrangeiros. Por outro lado, a presença desses interlocutores nas universidades do Norte é esporádica, o que atribui ao legado “colonial” no modo de se pensar a região. Através de diversas fontes, a autora nos oferece um detalhamento sobre a o campo de trabalho do antropólogo no norte do país e sobre a ampla diversidade de interesses temáticos dos últimos anos, para além dos referenciados estudos etnológicos.
No capítulo sobre “a reprodução da antropologia no Brasil”, Ruben Oliven traça um
histórico sobre a dinâmica da constituição da antropologia no país, observa o significativo
aumento do número de alunos e titulados nos últimos anos e identifica a tendência à
endogenia no tocante à composição do corpo docente dos PPGA. Adiante, destaca a crescente diversificação dos temas pesquisados. Por outro lado, o autor pondera que os currículos dos programas “correspondem a uma visão bastante tradicional” (pág. 219) e destaca, também, a necessidade de se ampliar a “Tabela de áreas de conhecimento” do CNPq, de modo a aproximar-se melhor às especificidades da antropologia que se faz no país. A maior parte da produção antropológica é divulgada através de periódicos científicos ou capítulos de livros e embora haja uma tendência no aumento do número de antropólogos atuando fora da academia, esta ainda é a maior empregadora: “atualmente, a reprodução da antropologia no Brasil se dá pela e para a universidade” (pág. 226).
Por fim, Peter Fry trata de analisar a internacionalização da disciplina. Os primeiros
dados apontam ainda para o reforço da idéia de que os antropólogos da “comunidade
brasileira de antropólogos” preferem temas nacionais. A tendência em contrário cresce pouco.
A seguir, o autor pondera que não tem dados suficientes para identificar o alcance da
produção antropológica brasileira: “os dados dizem mais sobre as redes sociais, conteúdo e
lugar de produção (…), pouco ou nada sobre seus efeitos” (pág. 229). Diante do material que dispõe, o autor observa a relação existente entre o lugar de formação e a futura sociabilidade, demarcando afinidades intelectuais e podendo levar a laços duradouros. Assim, pergunta-se se a redução na porcentagem de doutorados no exterior tem sido substituída por outras formas de interlocução com o estrangeiro como, por exemplo, a bolsa sanduíche. Adiante, ao identificar que muitas são as viagens ao exterior e que há um viés europeu na composição das redes de sociabilidade, o autor destaca que poucos são os docentes responsáveis pelas publicações e apresentações de trabalho fora do país e comprova que há correlação entre as visitações, contatos pessoais e publicações. Estas relações são contextualizadas adiante, quando traça um histórico do desenvolvimento de relações entre a “comunidade brasileira de antropólogos” com antropólogos e/ou instituições estrangeiras.
O “olhar de fora” de João de Pina Cabral destaca uma “história de sucesso” e o “papel
cívico” da antropologia praticada no Brasil. O comprometimento com as populações ou
problemáticas estudadas aqui dão vitalidade ao campo disciplinar, ao contrário da crise
vivenciada em outros países. Em sua opinião, aqui se encontrou “o sábio equilíbrio entre
isenção científica e relevância cívica” e aponta como conseqüências disto a consolidação da
pós-graduação, de instituições e meios de divulgação científica. Por outro lado, o autor
contextualiza seu estranhamento com a “divisão interna” sub-disciplinar entre “etnologia
brasileira” e “antropologia da sociedade nacional”. Nas linhas finais, contudo, identifica um
“alargamento da abrangência temática” e conclui com a afirmação de que a antropologia
brasileira encontra-se “em condições únicas para intervir ativamente no sentido de contribuir para essa tal quinta tradição, a qual, reivindicando-se dos frutos da modernidade científica, não se sente identificada com qualquer dos projetos imperiais que, historicamente, moveram o desenvolvimento científico”

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