RECRIANDO AS FOLIAS DE REIS

RESUMO:

O presente artigo se propõe a esclarecer a noção de patrimônio cultural imaterial e os
conceitos de cultura popular e do folclore, por meio da aproximação entre a Geografia e
a Antropologia, numa perspectiva Geográfico-cultural, a fim de compreender como se
dá a recriação das manifestações dos complexos culturais espontâneos. Tomo por objeto
de estudo a recriação da Folia de Reis no Município de São Carlos -SP, procurando
ressaltar as adaptações necessárias à sua manutenção, bem como as ações do Poder
Público voltadas à revitalização de manifestações culturais representativas.

Palavras-chave: patrimônio. tradição. complexo cultural espontâneo.

INTRODUÇÃO

O interesse pelos estudos referentes às manifestações culturais encontra-se cada
vez mais em evidência na Ciência Geográfica. A retomada a corrente denominada
Geografia Cultural deu-se especialmente devido à acentuação das diferenças culturais
no mundo. (CORRÊA, 1997)

Diante da atual configuração mundial caracterizada por interações globais
crescentes, a revitalização de culturas populares e tradicionais busca garantir a
manutenção da diversidade cultural no cerne de cada comunidade.

Neste contexto, busco desenvolver, em minha proposta de trabalho, um estudo
sobre a recriação das Folias de Reis nas comunidades brasileiras, devido à importância
da preservação da memória e das manifestações culturais representadas pelas tradições,
pelos valores, saberes, e, especialmente, pelas festas populares.
É importante enfatizar que estas manifestações transmitidas oral e gestualmente,
recriadas coletivamente e modificadas ao longo do tempo, constituem o fundamento da
vida em comunidade, estando envoltas por um sentimento identitário e de
pertencimento ao lugar, possibilitando, assim, a espacialização das mesmas.

Este estudo se dedica à elucidação de conceitos-chave para a compreensão do
tema, tais como: cultura popular e folclore, baseando-se em leituras das obras do
pesquisador Carlos Rodrigues Brandão, que dedicou grande arte de seus estudos à
temática de territorialidades e processos sociais.

Visando o enriquecimento deste trabalho, tomo como estudo de caso a Folia de
Reis no município de São Carlos, interior de São Paulo, por intermédio da “Companhia
de Reis Estrela Guia”. Esta festa popular e religiosa se mostra altamente elucidativa em
relação às teorias que serão desenvolvidas ao longo do trabalho, já que constitui-se em
exemplo privilegiado para a compreensão da complexidade de símbolos e de práticas do
catolicismo popular:

“Um ritual praticado num contexto camponês pode ser modificado
substancialmente quando os seus praticantes migram para a periferia da
cidade e saem do trabalho com a terra para um trabalho operário.”
(BRANDÃO, 1981, p. 40)

Para tanto, me dediquei à leitura de folcloristas, antropólogos, cientistas sociais e
outros tantos pesquisadores que me auxiliaram sobremaneira na compreensão de
categorias e conceitos fundamentais para o estudo pormenorizado da questão. Recorri
também a Geógrafos que me instruíram, de certa forma, a estabelecer relações entre as
culturas espontâneas e o espaço em que as mesmas se manifestam, analisando-os
segundo o viés interpretativo da Geografia Cultural.

Para justificar o presente estudo, recorro ao pensamento de Roberto Lobato
Corrêa, em seu livro “Trajetórias Geográficas”, no qual aponta a necessidade de os
Geógrafos “ampliarem a sua contribuição para a compreensão da sociedade brasileira
através das diversas facetas da cultura em suas dimensões espaciais”.

O desenvolvimento da pesquisa baseou-se no método histórico-comparativo.
Dessa forma, foi possível a análise aprofundada do complexo cultural espontâneo em
estudo por meio da observação de suas relações com aqueles ocorridos em outro
contexto histórico e espacial, bem como as adaptações que aconteceram através de
processos de aculturação.

Considerando as dimensões e objetivos deste artigo, não cabe aqui discutir de
modo exaustivo sobre as múltiplas dimensões do conceito de patrimônio e cultura.
Procuro, assim, refletir sobre as políticas de salvaguarda do patrimônio cultural
imaterial no Brasil; além de desenvolver uma apreciação sobre as distinções e
semelhanças entre os conceitos de Cultura Popular e Folclore, e também sobre a
criação do termo Complexos Culturais Espontâneos.

Em seguida, inicio a explanação acerca das Folias de Reis, esclarecendo sobre a
estrutura e organização do ritual e sobre sua recriação nas comunidades brasileiras. Por
fim, apresento o estudo de caso desenvolvido a partir do contato direto com a população
envolvida, considerando, especialmente, o papel do Poder Público na revitalização deste
complexo cultural espontâneo.

PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL

De acordo com a “Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural
Imaterial”, realizada pela Conferência Geral das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura (UNESCO) no ano de 2003 em Paris – FR, o conceito de
“patrimônio cultural imaterial” é entendido como:

“… práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto
com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são
associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os
indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural.”
(IPHAN, 2006, p. 15)

E acrescenta:

“Esse patrimônio cultural imaterial, transmitido de geração em geração, é
constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função do seu
meio, da sua interação com a natureza e da sua história, incutindo-lhes um
sentimento de identidade e de continuidade, contribuindo, desse modo, para
a promoção do respeito pela diversidade cultural e pela criatividade
humana.” (IPHAN, 2006, p. 15)

Segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), o
patrimônio cultural imaterial se manifesta por meio de tradições, expressões orais,
práticas sociais, rituais, eventos festivos, artesanato tradicional, entre outras formas. A
fim de assegurar sua viabilidade, as estratégias de salvaguarda desse patrimônio incluem
“a identificação, documentação, pesquisa, preservação, proteção, promoção,
valorização, transmissão, essencialmente através da educação formal e não formal, bem
como a revitalização dos diferentes aspectos desse patrimônio.” (IPHAN, 2006)

As políticas de salvaguarda do patrimônio cultural imaterial se pautam em
premissas gerais e princípios de atuação que devem ser elucidados para a compreensão
integral de sua complexidade.

Primeiramente, o patrimônio cultural configura-se como uma construção social
que diz respeito a toda a sociedade e, especialmente, àqueles sujeitos sociais que
produzem e perpetuam esse patrimônio. Em outras palavras, o patrimônio cultural
imaterial é composto pelas principais referências culturais de um grupo e só terá
continuidade enquanto lhe for atribuído sentido por parte dessas pessoas -sujeitos de
seu patrimônio.

Em segundo lugar, a natureza desses bens culturais imateriais é fluida, mutável,
podendo ser constantemente reinventados ou reafirmados de acordo com o interesse de
seus produtores. Isso permite afirmar que a noção de autenticidade, diante desse
contexto, perde sentido. Ainda neste sentido, para ser considerado como patrimônio
cultural imaterial pelo governo brasileiro, o critério de representatividade se sobrepõe ao
da excepcionalidade.

Com relação aos princípios de atuação, espera-se que haja adesão e participação
ativa dos atores responsáveis pela produção e manutenção de bens culturais durante
todo o processo de salvaguarda, passando pela identificação, valorização e gestão do
patrimônio. Além disso, o reconhecimento e a valorização dos saberes dessas pessoas e

o conhecimento detalhado sobre as manifestações, baseado em pesquisa etnográfica, são
fundamentais para fortalecer sua capacidade de permanência.
No que tange à Ciência Geográfica, um dos mais importantes princípios de
atuação das políticas de salvaguarda do patrimônio cultural imaterial é a visão
abrangente da expressão cultural em estudo, considerando os atores sociais que
protagonizam a manifestação e o território em que se desenvolve. Assim, é possível agir
de forma estratégica, identificando os problemas que a enfraquecem e atuando de forma
a subsidiar a melhoria e o funcionamento das condições sociais, materiais e ambientais
que propiciam a existência e continuidade dos bens culturais imateriais.

CULTURA, FOLCLORE E COMPLEXOS CULTURAIS ESPONTÂNEOS

A questão cultural esteve presente desde os primeiro estudos geográficos.
Entretanto, a abordagem cultural passou a ser priorizada a partir no início do século XX,
especialmente na Alemanha, na França e nos Estados Unidos, sendo denominada
Geografia Cultural.

A cultura esteve presente desde os primórdios dos estudos Geográficos até a
atualidade. Entretanto, estes estudos podem ser diferenciados pelas distintas
abordagens: no período inicial os estudos baseavam-se no positivismo ou na
fenomenologia, sendo meramente empiristas; ao passo que recentemente podemos
considerar a “nova Geografia Cultural” como responsável pela reaproximação efetiva da
Ciência Geográfica com o conceito de cultura, bem como com os valores simbólicos
presentes nas sociedades. Tais perspectivas são de extrema importância para a
compreensão das sociedades, contribuindo para o enriquecimento da produção do
conhecimento geográfico.

A terminologia “cultura popular” não constitui-se em conceito bem definido
pelas Ciências Humanas. São inúmeros os seus significados e extremamente
heterogêneos e variáveis as ocorrências que essa expressão abrange. Por muitos autores
a cultura popular é tida como sinônimo de “folclore”. Luís da Câmara Cascudo, por
exemplo, mescla os conceitos definindo folclore como “a cultura do popular tornada
normativa pela tradição”. Outros acreditam que ao considerar o folclore como tudo que

o homem do povo faz e reproduz, o domínio do conceito passa a ser tão amplo quanto o
de cultura e, por isso, deve ser chamado de cultura popular aquilo que alguns
denominam como folclore.
A palavra folclore, fruto da junção de “folk” (povo) e “lore” (conhecimento),
significando, assim, “sabedoria popular”, surgiu pela primeira vez em uma carta que o
inglês William John Thoms escreveu para a revista The Atheneum, de Londres, em
agosto de 1856. Em 1878 um grupo de pesquisadores formado por antropólogos,
etnógrafos, filósofos, entre outros, fundou a Sociedade de Folclore, sediada na capital
inglesa. Seus fundadores tinham como objeto de estudo os costumes tradicionais, os
sistemas populares de crenças e as formas populares de linguagem.

Com o passar dos anos, a noção de folclore foi se ampliando, deixando de ser
entendido apenas como tradição e sobrevivência de manifestações populares,
estendendo-se a outras dimensões:

“Dimensões mais atuais, mais associadas à vida do povo, à sua capacidade
de criar e recriar. Tudo aquilo que, existindo como forma peculiar de sentir e
pensar o mundo, existe também como costumes e regras de relações sociais.
Mais ainda como expressões materiais do saber, do agir, do fazer
populares.” (BRANDÃO, 2006, p. 30)

Ainda segundo Brandão:

“Mas de um ponto de vista mais dinâmico, o folclore pode abrir-se a campos
mais amplos da cultura popular (a cultura feita e praticada no cotidiano e nos
momentos cerimoniais da vida do ‘povo’, ou dos diferentes ‘povos’ que há
no povo) e incorporar aquilo que, sendo ainda de um autor conhecido, já foi
coletivizado, incluído no “vivido e pensado” do povo, às vezes até de todos
nós, gente “erudita” cuja vida e pensamento estão, no entanto, tão
profundamente mergulhados nesse ancestral anônimo que nos invade o
mundo de crenças, saberes, falares e modos de viver.” (BRANDÃO, op. cit.,
p.36)

Sendo assim, pode-se afirmar que o folclore é fruto da coletivização do que se
cria, se conhece e reproduz. Por ser aceita e coletivizada, a memória oral modifica
elementos originais e os retraduz como popular. Além disso, quando o povo aceita um
fato tomando-o para si, transforma-o, originando variantes. Ou em outras palavras:

“Aquilo que se reproduz entre pescadores, índios e camponeses como saber,
crença ou arte reproduz-se enquanto é vivo, dinâmico e significativo para a
vida e a circulação de trocas de bens, de serviços, de ritos e símbolos entre
pessoas e grupos sociais. Enquanto resiste a desaparecer e, preservando uma
mesma estrutura básica, a todo momento se modifica. O que significa que a
todo momento se recria.” (BRANDÃO, op. cit., p.38)

Dentre as inúmeras razões para isso, destaca-se a capacidade inventiva e
recriadora dos artistas populares que, segundo o autor, “refazem, inovam, recuperaram,
retomam o antigo e a tradição, de novo inovam, incorporam o velho no novo e
transformam um com o poder do outro”.
A característica crucial do folclore é a tradicionalidade, sendo a mesma
recorrente nas pesquisas das manifestações populares. Por vezes criticada pelo caráter
conservador e defasado que a palavra traz em si, a tradicionalidade adquire novo sentido
em estudos mais recentes. Dessa forma, longe de parecer inerte, a “cultura popular
tradicional” demonstra ser um instrumento ativo de resistência às inovações impostas
pelos colonizadores, bem como pelas classes detentoras do poder.
Além de ser socialmente coletivizado e dinâmico, recriando-se, o folclore tem
como característica a persistência. O fato folclórico é duradouro, pois o que é criado ou
recriado incorpora-se aos costumes da comunidade e são transmitidos por gerações.
Dessa forma, é possível constatar a raridade de “modismos” no folclore:

“Ao contrário do que acontece com a cultura erudita ou popularizada através
de meios de comunicação de massa, onde os produtos culturais exibem
padrões de curta duração, os do folclore, mesmo quando renovados por
necessidade de adaptação a novos contextos, ou pela iniciativa criadora de
seus praticantes, preservam por muito tempo os mesmos elementos dentro
de uma mesma estrutura.” (BRANDÃO, op. cit., p. 42)

Neste contexto, é importante discutir sobre a existência de centros controladores
de produção da cultura que buscam homogeneizá-la, impondo padrões por meio de uma
‘indústria cultural’. Trata-se de uma vertente na qual vinculam-se ‘produtos culturais’
de valor comercial em detrimento da “arte, devoção ou ritual”.

Contrapondo-se à indústria cultural e em defesa do folclore, Marius Barbeau
assegura:

“Sempre que, por hábito ou inclinação, a gente se entregue a cantos e
danças, a jogos antigos, a folguedos, para marcar a passagem do ano e as
festividades usuais (…) aí veremos o folclore em seu próprio domínio,

sempre em ação, vivo e mutável, sempre pronto a agarrar e assimilar novos
elementos em seu caminho. (..) é o adversário do número em série, do
produto estampado e do padrão patenteado.” (In: BRANDÂO, op. cit., p 23,
grifo nosso)

Os fenômenos do folclore correspondem a uma realidade dinâmica que se adapta
sempre que julga necessário às novas formas que a sociedade adquire. Sendo assim:

“Melhor do que envolvê-la com o clorofórmio de algumas teorias
imobilistas do Folclore, para investigar no corpo inerte da cultura o que é
‘folclore’ e o que não é, deveria ser a cuidadosa e persistente preocupação de
compreender, em cada pequeno ou grande “sinal” do folclore, em cada um
dos seus momentos e situações, o que eles significam ‘na’ cultura (no todo
da cultura de que são um ‘modo’ e uma ‘parte’) e ‘para’ a vida das pessoas,
grupos, classes sociais e comunidades que os criam.” (BRANDÃO, op. cit.,p. 75)
Rossini Tavares Lima, em sua obra intitulada “Ciência do Folclore”, esclarece
conceitos relevantes pra o estudo de manifestações culturais. A fim de melhor designar
o objeto de estudo desta ciência, foi preciso recorrer à Antropologia Cultural para
emprestar a denominação “complexo cultural”, adicionando-lhe, ainda, a palavra
“espontâneo”. Dessa forma, passou-se a utilizar a noção de “complexo cultural
espontâneo”, cuja metodologia deve basear-se no critério histórico-comparativo,
geográfico, sociológico, funcional e de aculturação.

Estudando o processo de aculturação, que corresponde às mudanças na cultura
de um grupo social sob a influência de outro com que entra em contato, de dinâmica e
estrutura na amplitude da expressão ‘cultura’, é possível afirmar que “o folclore não
estuda a cultura, mas uma cultura, a espontânea, que coexiste com a cultura erudita,
popularesca, de massas, na dinâmica do mundo letrado”.

LIMA (2003) nos faz refletir sobre a moderna ciência do folclore, explicando
que o termo sobrevivência é erroneamente empregado em alguns estudos antropológicos
sobre fatos culturais. Segundo ele, os complexos e traços culturais podem ser
observados por possuírem função e vida, quer tenham pertencido historicamente a
outras sociedades ou não. Ainda neste sentido, o autor afirma que o anonimato, o
tradicional e a transmissão oral não caracterizam, necessariamente, o fato folclórico; o
que o define é a aceitação coletiva espontânea: constada a aceitação, comprova-se o
folclore.

Constituindo complexos culturais espontâneos, a religião, a festa, a cantoria e o
ritual estudados do folclore apresentam com clareza seus traços culturais espontâneos,
que dinamicamente se transformam:

“Todo folclore é um ser e um vir-a-ser e, portanto, se acha em processo de
mudança, o que na existência humana constitui-se em ato constante. Por isso

o chamamos dinâmico, claro, porque é funcional para o grupo social ou
coletividade em que é observado. A dinâmica cultural espontânea,
folclórica, como a dinâmica cultural no sentido amplo, é a mudança que se
traduz através de diferentes processos.” (LIMA, 2003, p. 23)
RECRIANDO AS FOLIAS DE REIS

Considerando as Folias de Reis como produções culturais de grupos portadores
de tradições e costumes, é importante esclarecer que no presente trabalho as Folias serão
consideradas como um costume, no sentido de HOBSBAWN (1984), no qual “é
possível identificar um conjunto de bens materiais e simbólicos preservados do passado
e repassados de uma geração à outra por meio dos relatos orais e da revificação do
ritual, num movimento constante de reatualização”. (CASSIANO, 1988, p. 46, grifo
nosso).

A Folia de Reis é a manifestação popular mais difundida no Brasil e mais rica de
ritos e crenças próprias. Há, por todo o território, variações no ritual, nas funções das
personagens envolvidas, além de diferenças de estilos de cantoria ou mesmo no que diz
respeito à condução do rito.

As Companhias de Reis, grupos de foliões organizados que saem em jornada,
percorrem um caminho que corresponde a um espaço conhecido e nominado: as casas
que recebem os foliões são previamente contratadas, sendo comumente morada de
parentes, vizinhos, companheiros de trabalho, que compartilham crenças e práticas
religiosas. Dessa forma, constitui-se também num espaço simbolicamente reconstruído.

Dentro da produção coletiva, a possibilidade de improvisação permite a criação
individual. Dessa forma, o ritual se renova constantemente, pois se as inovações
elaboradas por um folião forem aceitas pela comunidade, elas passam a ser incorporadas
ao repertório coletivo da tradição. Nas palavras de Maia (2001), “o grupo seleciona ou
descarta o que não é memorável”.

A partir dessas considerações faz-se necessário recorrer à hipótese elaborada por
Brandão:

“Quando um grupo de foliões migra para a periferia das cidades e quando
ele consegue repetir ali o que se fazia na roça de onde veio, alguma coisa se
perdeu. Perdeu-se o ‘espaço social camponês’ que agora não pode ser mais
retraduzido do mesmo modo, de maneira que todos juntos, moradores e
foliões, sejam como uma comunidade, uma gente do lugar e, ao mesmo
tempo, de Belém. Perdeu-se a disponibilidade de um ‘tempo de jornada’,
porque agora os atores são empregados e só dispõem de pedaços dos seus
dias para dedicá-los ao ritual e a Santos Reis. Perdeu-se, finalmente, a
‘integridade de um sistema agrário’, de trocas de dádivas que exige formas
de posse e de uso de bens cada vez mais inaceitáveis na cidade.”
(BRANDÂO, 1981, p. 51)

Considerada válida em alguns casos de nossa cultura popular, essa hipótese, com
a qual corroboro, é verificada no estudo do caso da Folia de Reis no município de São
Carlos-SP.

A RECRIAÇÃO DA FOLIA DE REIS NO MUNICÍPIO DE SÃO CARLOS-SP

Os deslocamentos populacionais são uma constante em toda a história brasileira.
Entretanto, é a partir da década de 50 que o movimento migratório se intensifica,
especialmente o da população rural em direção aos prósperos centros urbanos. Esse
deslocamento se dá devido aos processos de desagregação de pequenas unidades
produtivas agrícolas em conjunto com a industrialização de algumas cidades do sudeste
brasileiro, como São Carlos, localizada na região central do estado, a 250 km ao norte
da capital paulista, próxima a cidades de considerável importância econômica como Rio
Claro, Araraquara e Ribeirão Preto, fazendo desta região uma das mais desenvolvidas
do estado.

“Longe do contexto camponês onde a Folia de Reis ganhou dimensão
comunitária, perdeu elementos urbanos e incorporou os da cultura de cada
região rural para onde foi, os “ternos de Reis” voltaram à cidade e ali
readaptaram uma série de elementos. Eles vão desde a composição do grupo
até a estrutura do ritual.” (BRANDÃO, 2006, p. 66)

A Cia de Reis Estrela Guia, expressiva organização de foliões da cidade de São
Carlos, constitui-se em exemplo claro de manifestação cultural que recria seus rituais
adaptando-se ao contexto em que inserem, sempre procurando manter o que lhes é
importante: o fundamento religioso.

A extensa seqüência ritual seguida pelos foliões consiste, basicamente, numa
cantoria guiada pelo embaixador, na qual os foliões cantam diante do dono da casa
pedindo licença para adentrar e ou pousar, entregam a bandeira com a imagem da
Sagrada Família para a família que os recebe em sua casa, cumprem promessas, cantam
pedindo bençãos aos moradores, pedem ofertas, agradecem os bens ofertados, pedem
licença para se retirar da casa e, então, se preparam para a partida.

Como já dito anteriormente, a Folia de Reis é um exemplo privilegiado da
complexidade de símbolos e de práticas do catolicismo popular. Respeitando as
variações de cada lugar, podemos afirmar que, em linhas gerais, cada personagem
envolvida no ritual da Folia de Reis exerce uma função. Ao mestre ou embaixador cabe
a função de organizar e manter a coesão do grupo. É ele quem detém o mais alto posto
na hierarquia dentro da Companhia. Sendo conhecedor dos fundamentos da Folia, é
responsável pela transmissão dos saberes relacionados à origem do grupo. Além disso, o
embaixador é o encarregado da palavra, improvisando versos e puxando a cantoria. A
função dos músicos e dos cantadores não deve ser diminuída em detrimento da do
mestre. Cada um deles busca se aperfeiçoar em determinado instrumento -viola, violão,
pandeiro, acordeão, caixa, bandolim, entre outros -e na cantoria, compondo a toada
característica da Companhia. O bandeireiro é a figura que segue à frente da Companhia
conduzindo o símbolo que legitima o grupo, a bandeira. Sua função é cuidar da
bandeira, contando com a proteção dos bastiões. O festeiro, por sua vez, é a pessoa que
se oferece e é escolhida para preparar a festa da chegada da bandeira.

O caso que convém ser discutido com maior propriedade é o da figura do
bastião. A presença do palhaço mascarado tem diferentes significados nos grupos
foliões brasileiros. Em algumas Companhias de Reis, os bastiões são associados ao rei
Herodes, perseguidor implacável dos Três Reis, em busca do Menino Jesus. Entretanto,
no estado de São Paulo os bastiões são comumente associados à figura dos soldados de
Herodes que seguiram os Três Reis Magos do Oriente a mando do rei, mas ao
encontrarem a Sagrada Família, se converteram. Depois de abandonar a missão real, os
soldados passaram a usar as máscaras para que não fossem reconhecidos pelo rei, e
também para brincar e agitar o povo nas ruas e, assim, distrair os outros soldados,
contribuindo com a fuga da Família Santa para o Egito. A personagem do bastião tem,
dentro desse ritual, uma função bastante complexa. É ele quem improvisa e recita versos
louvando os Três Reis, a Sagrada Família e o presépio. Além disso, a figura do bastião é
responsável pelas brincadeiras com os outros foliões e com as pessoas que participam e
assistem ao ritual, sendo exigidos dele capacidade de improviso e habilidades corporais.

A noção de costume elaborada por Hobsbawn (In: CASSIANO, 1988, p. 46) é
nitidamente percebida nas palavras do embaixador da Companhia, que relata a
transmissão de bens simbólicos de geração a geração por meio da oralidade. O mestre-
embaixador da Cia de Reis Estrela Guia, senhor Azenildo, começou a participar dos
rituais das Folias de Santos Reis desde criança e hoje, com 56 anos, se orgulha por
nunca ter abandonado o ritual. De família tradicional de sertanejos, segundo ele, e
morador de fazendas da região de São Carlos o embaixador, então menino, via o
interesse do pai pelas Folias que apesar de não ser cantador de Reis, recebia todo ano
duas ou três Companhias de Reis na fazenda em que moravam. Seu trabalho em São
Carlos começou em 1986, montando um pequeno grupo com seus dois irmãos. Segundo
ele, “a gente daqui não tinha essas coisas, então foi difícil montar um grupo”. Hoje,
como embaixador da Cia de Reis Estrela Guia, que em 2006 completou 20 anos, é
responsável pela organização do grupo formado por 18 membros, entre eles familiares,
amigos, crianças, jovens e idosos.

Sobre as adaptações que se fizeram necessárias à condução do ritual, o mestre
conta:

“O certo é sair da véspera do Natal até dia 06/jan. Nas fazendas a gente fazia
isso, era direto: doze dias sem parar. De noite você pedia pouso, pousava,
descansava, continuava; agora hoje aqui não. Todo mundo tem seu emprego
independente, as firmas não liberam. É por esse motivo que fazemos sempre
à noite: começamos em setembro pra fazer de sábado pra domingo à noite,
pra que não atrapalhe o emprego de ninguém e nós continuamos com nosso
trabalho religioso. Hoje é diferente, então nós temos que fazer assim porque
não tem como mais… Pra não se perder.” (Azenildo, 2006)

O embaixador resume o propósito da Companhia: “Nosso trabalho é esse: levar
parte da religiosidade para esses lares pra que essa tradição se mantenha como uma
cultura popular religiosa, porque eu levo mais pelo lado religioso”. Sendo assim, o
trajeto percorrido pelos membros da Cia de Reis Estrela Guia durante a jornada abrange
todos os bairros da cidade, inclusive a área central. Os foliões ultrapassam também os
limites do Município, levando a bandeira às fazendas da região e às cidades de
Araraquara, Américo Brasiliense, Santa Lúcia e Boa Esperança do Sul.

“A gente caminha muito porque a gente é muito chamado e não pode
dispensar. Quando o pessoal convida a gente vai fazer uma noitada ou duas.
A peregrinação da festa da bandeira é em toda a região.” (Azenildo, 2006)

É possível afirmar que integrados à cultura urbana os grupos de migrante rurais
se viram inseridos em novo contexto, caracterizado pela presença de diferentes jornadas
de trabalho e também dos meios de comunicação de massa, tornado necessária a criação
de instrumentais técnicos de preservação e transmissão da memória e da cultura. Dessa
forma, discutiremos sobre o papel do poder público de São Carlos, no que diz respeito à
revitalização de manifestações populares, em especial, a Folia de Reis.

Ao estudarmos as políticas públicas para manutenção de manifestações culturais
espontâneas, é preciso ter em mente que:

“A memória oral das sociedades sem escrita que é transmitida de geração a
geração através da fala e dos gestos, é vivida e constantemente reconstruída
no interior da coletividade tendo como suporte fundamental e forma de
expressão oral. No caso das Folias de Reis (…) percebemos que, à medida
que as descontinuidades espaço-temporais dominam as relações entre as
pessoas, e os rearranjos intergrupais são muito intensos e acelerados,
surgiram novos tipos de suportes para registrar o presente, com a função de
guardar a memória do passado para um futuro incerto.” (CASSIANO, 1988,p. 183)
Em São Carlos foram desenvolvidos mecanismos junto ao Poder Público a fim
de garantir a manutenção das Folias de Reis no município, incentivando também esse
tipo de iniciativa perante as companhias da região.

A existência do Conselho Municipal de Cultura, órgão deliberativo consultivo e
fiscalizador das ações culturais do município e que tem por objetivo a participação
democrática dos segmentos da sociedade que integram a ação cultural, permitiu que a
Companhia de Reis Estrela Guia manifestasse seu interesse pela criação de uma Lei
Municipal que garantisse a realização do “Encontro Regional de Companhias de Santos
Reis” todos os anos na cidade.

O Encontro tem por objetivo justamente celebrar a complexidade de símbolos e
de práticas desse ritual do catolicismo popular, já que não há, entre foliões e
pesquisadores, quem negue a existência de estilos diferentes entre as Companhias, seja
com relação às toadas, às cantorias ou às intervenções dos bastiões.

A promulgação desta lei é tida como uma conquista pelos membros da Cia
Estrela Guia, pois agora, independente da sucessão de prefeitos e partidos políticos, o

Encontro ocorrerá com o apoio da Prefeitura. Dessa forma, as Folias de Reis passam, de
certa forma, a ser amparadas pela lei.

Existe ainda um outro projeto já aprovado na Prefeitura e que está em vias de
implantação que defende a criação de uma “Escolinha de Folias de Reis”. Trata-se de
um plano voltado para as crianças e adolescentes de 8 a 16 anos com o intuito de
transmitir os conhecimentos sobre Folia de Reis para aqueles que se interessarem.
Segundo um folião da Estrela Guia, “no dia de amanhã a gente pára e eles dão
continuidade ao trabalho”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Norteada pela abordagem Geográfico-cultural, foi possível, na presente
pesquisa, esclarecer sobre a noção de patrimônio cultural imaterial e os princípios que
orientam sua política de salvaguarda em nosso país, estabelecer relações entre conceitos
fundamentais para a pesquisa de fenômenos culturais e, principalmente, compreender
como se dá a recriação da Folia de Reis no Município de São Carlos -SP.

Recorrendo a trabalhos de Geógrafos e Folcloristas, e em constante contato com
a Companhia de Reis Estrela Guia, verificou-se a hipótese de que as mudanças de
significado são inevitáveis quando se altera o contexto em que os eventos culturais são
produzidos. Sendo assim, as manifestações culturais espontâneas constituem-se eventos
vivos e mutáveis, receptivos à assimilação de novos elementos, desde que haja aceitação
coletiva dos mesmos por parte da comunidade.

As variações no ritual, nos estilos de cantoria e nas funções das personagens
envolvidas ocorrem no cerne de uma estrutura básica comum. Dessa forma, é a todo o
momento modificada, recriada, sem que se perca o fundamento religioso, responsável
pelo caráter identitário das mesmas.

As manifestações populares que, até então, tinham a oralidade como principal
forma de transmissão dos conhecimentos de uma geração a outra, se deparam com a
necessidade de criar mecanismos capazes de registrar a memória do passado, bem como
auxiliar a manutenção das manifestações que hoje ocorrem, já que passam a ser
inseridas em novo contexto no qual centros controladores de produção da cultura
buscam impor padrões a fim de homogeneizá-la. Neste sentido, o Poder Público é tido
pelos complexos culturais espontâneos como aliado, cabendo a ele a garantia legal da
revitalização dos mesmos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRANDÃO, C. R. Sacerdotes de viola: rituais religiosos do catolicismo popular em
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BRANDÃO, C. R. O que é folclore. 13ª edição. São Paulo: Brasiliense, 2006. (Coleção
Primeiros Passos)

CASSIANO, C. M. Memórias Itinerantes: um estudo sobre a recriação das Folias
de Reis em Campinas. Dissertação de Mestrado, Unicamp -Instituto de Artes,
Campinas, 1988.

CORRÊA, R. L. Trajetórias Geográficas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

CORRÊA, R. L.; ROZENDAHL, Z. (organizadores) Geografia: temas sobre cultura
espaço. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2005.

LIMA, R. T. A ciência do folclore. 2ª edição, São Paulo: Martins Fontes, 2003.
(Coleção Raízes)

MAIA, D. S. A Geografia e o estudo dos costumes e das tradições. Revista Terra
Livre, São Paulo-SP, v. 16, p. 71-98, 2001.

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