Por que a alfabetização no Brasil é falha?

 

Alunas com suas mochilas em São Paulo

Aos 85 anos, Magda Soares ganhou dois prêmios Jabuti pelo livro “Alfabetização: a questão de métodos”. Professora emérita da Faculdade de Educação da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Soares venceu na categoria “não ficção”, o prêmio anunciado no dia 30 de novembro, e na categoria “educação e pedagogia”, reconhecimento concedido no início do mesmo mês.

A obra discute o processo de aprendizagem de leitura e escrita e os métodos usados para alfabetizar no país. Em entrevista concedida ao Nexo por e-mail, Soares afirma que o Brasil ainda não aprendeu a alfabetizar suas crianças. Para ela, há uma preocupação excessiva com “como ensinar” e foco insuficiente em “como a criança aprende”. Assim, a formação do professor foca em métodos de ensino, e não na compreensão do processo de aprendizagem da língua, resultando em uma aprendizagem insuficiente.

Professora Magda Soares, ganhadora de dois prêmios Jabuti

Mas quais são esses métodos de ensino? No livro, Soares explica que a alfabetização no Brasil começou com a soletração, que considera que aprender a ler e escrever depende de aprender os nomes das letras, em fórmulas como b + a = ba. Depois que a criança aprendia o alfabeto, ela unia letras para chegar a sílabas, sílabas para chegar a palavras e palavras para chegar a frases. Entre o final do século 19 e os anos 1980, essa prática foi abandonada. A principal disputa, então, era entre os métodos sintéticos, que partem das unidades menores da língua (fonemas, sílabas) em direção às unidades maiores, e os analíticos, que desmembram essas unidades maiores e que portam sentido (frases, palavras) em partes menores.

Nos anos 1980, esses dois métodos são desafiados pelo novo paradigma construtivista, que rejeita os métodos anteriores e propõe que a criança, pelo convívio intenso com a língua escrita, propiciado na sala de aula, vá construindo sua compreensão da escrita, levantando hipóteses que vão sendo reformuladas e substituídas, sob a orientação do professor. Soares considera que, mal-interpretada, essa concepção construtiva levou frequentemente a uma “desmetodização” do ensino – a ideia de que a criança “se alfabetiza”, não “é alfabetizada” por outra pessoa; assim, não há um “método construtivista”, o que negaria a concepção essencial da teoria construtivista.

Como a criança realmente aprende? Segundo Soares, ocorrem dois processos simultâneos, um linguístico e outro cognitivo. No primeiro, a criança precisa entender que a língua escrita é uma representação dos sons da língua. No segundo, deve estabelecer a relação entre os sons e as letras correspondentes. E, para ser capaz de guiar a criança por esse processo, o professor tem de entender esses dois processos. Leia abaixo a íntegra da entrevista.

No livro, a senhora afirma que a alfabetização demanda processos cognitivos e linguísticos específicos. Quais são esses processos? Ou seja, como uma criança aprende a ler e escrever?

MAGDA SOARES Depois que já aprendemos a ler e escrever, esquecemos como essa aprendizagem foi difícil. Quando falamos, pensamos nas coisas sobre as quais estamos falando, não prestamos atenção no som das palavras que estamos usando. Mas quando escrevemos, temos de marcar no papel esses sons, não o conteúdo do que estamos falando. Por isso é que a criança inicialmente desenha achando que está escrevendo: você pede “escreva boneca”, ela desenha uma boneca. É difícil para uma criança passar a prestar atenção nos sons das palavras e compreender que escrever é representar esses sons com letras. Letras são outra dificuldade, é preciso aprender 26 sinais diferentes e os sons que correspondem a cada um deles. Nessa aprendizagem há um processo linguístico, o de entender que a língua escrita é uma representação dos sons da língua, e há um processo cognitivo, que é estabelecer relações entre os diferentes sons da língua e as letras correspondentes a cada som.

Qual o papel do professor no processo de alfabetização?

MAGDA SOARES O professor precisa compreender como a criança se apropria da língua escrita, o que significa que ele deve conhecer a fonologia da língua – como se organizam os sons da língua, e deve dominar a ortografia – a relação dos sons com as letras. E também deve compreender o processo cognitivo da criança na aprendizagem dessas relações. Só tendo essa compreensão ele saberá o que fazer, como orientar a criança, como entender as dificuldades dela em aprender a ler e a escrever e como agir para ajudá-la a vencer essas dificuldades.

Qual a sua avaliação da alfabetização no Brasil, do ponto de vista do método e dos resultados?

MAGDA SOARES  Infelizmente, o Brasil é um país que ainda não aprendeu a alfabetizar suas crianças. Os resultados das avaliações externas, estaduais e nacionais, mostram repetidamente baixos níveis de alfabetização no 3º ano [do ensino fundamental], que é o ano em que se espera que a criança esteja alfabetizada. A responsabilidade disso não está em métodos de alfabetização, mas na formação que se tem dado aos futuros alfabetizadores, uma formação que não tem se voltado a levar à compreensão do processo de aprendizagem do objeto linguístico, que é a língua escrita. Isso dificulta ensinar com compreensão, e resulta em aprendizagem insuficiente.

O que é letramento, definido pela senhora como “o outro lado da alfabetização”?

MAGDA SOARES Não basta aprender a ler e a escrever, é necessário também aprender a usar com competência a língua escrita: a ler compreendendo, interpretando, a escrever com clareza, correção. Quanta gente há que sabe ler  – é alfabetizada – mas tem dificuldade de entender o que leu; quanta gente há que sabe escrever – é alfabetizada – mas sente dificuldade em escrever um ofício, uma carta, até um bilhete. Letramento é o nome que se dá à capacidade de usar com competência a leitura e a escrita, saber ler sem dificuldade os textos que circulam no meio social e saber escrever aquilo que o meio social frequentemente exige das pessoas.

Qual é a disputa existente entre os diferentes métodos de alfabetização, e o que é a “alfabetização com método” que a senhora sugere?

MAGDA SOARES Há anos e anos que a alfabetização é tratada como uma questão de método: “que método usar” é a pergunta frequente, como se o mais importante fosse como ensinar. O mais importante é como a criança aprende. O alfabetizador que compreende o processo cognitivo de aprendizagem da língua escrita pela criança sabe que deve usar diferentes procedimentos, sabe que não é possível usar um único caminho – um determinado método – mas que é preciso usar vários caminhos: deve alfabetizar com método, o que significa alfabetizar tendo clareza do processo de aprendizagem da criança, o que é diferente de ter um método de alfabetização. O foco do alfabetizador não é o ensino, mas a aprendizagem da criança.

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