Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes

 

 

 

RESUMO

Na primeira parte do ensaio, o autor argumenta que as linhas cartográficas “abissais” que demarcavam o Velho e o Novo Mundo na era colonial subsistem estruturalmente no pensamento moderno ocidental e permanecem constitutivas das relações políticas e culturais excludentes mantidas no sistema mundial contemporâneo. A injustiça social global estaria portanto estritamente associada à injustiça cognitiva global, de modo que a luta por justiça social global requer a construção de um pensamento “pós-abissal”.

O pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal2. Consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis, sendo que estas últimas fundamentam as primeiras. As distinções invisíveis são estabelecidas por meio de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o “deste lado da linha” e o “do outro lado da linha”. A divisão é tal que “o outro lado da linha” desaparece como realidade, torna-se inexistente e é mesmo produzido como inexistente. Inexistência significa não existir sob qualquer modo de ser relevante ou compreensível3. Tudo aquilo que é produzido como inexistente é excluído de forma radical porque permanece exterior ao universo que a própria concepção de inclusão considera como o “outro”. A característica fundamental do pensamento abissal é a impossibilidade da co-presença dos dois lados da linha. O universo “deste lado da linha” só prevalece na medida em que esgota o campo da realidade relevante: para além da linha há apenas inexistência, invisibilidade e ausência não-dialética.

Para dar um exemplo baseado em meu próprio trabalho, venho caracterizando a modernidade ocidental como um paradigma fundado na tensão entre a regulação e a emancipação sociais4. Essa distinção visível fundamenta todos os conflitos modernos, tanto em termos de fatos substantivos como de procedimentos. Mas a essa distinção subjaz uma outra, invisível, na qual a anterior se funda: a distinção entre as sociedades metropolitanas e os territórios coloniais. De fato, a dicotomia “regulação/emancipação” se aplica apenas a sociedades metropolitanas. Seria impensável aplicá-la aos territórios coloniais, aos quais se aplica a dicotomia “apropriação/violência”, por sua vez inconcebível de aplicar a este lado da linha. Contudo, a inaplicabilidade do paradigma “regulação/emancipação” aos territórios coloniais não comprometeu sua universalidade. O pensamento abissal moderno se destaca pela capacidade de produzir e radicalizar distinções. Por mais radicais que sejam essas distinções e por mais dramáticas que possam ser as conseqüências de estar em um ou outro de seus lados, elas pertencem a este lado da linha e se combinam para tornar invisível a linha abissal na qual estão fundadas. As distinções intensamente visíveis que estruturam a realidade social deste lado da linha se baseiam na invisibilidade das distinções entre este e o outro lado da linha.

O conhecimento e o direito modernos representam as manifestações mais cabais do pensamento abissal. Dão-nos conta das duas principais linhas abissais globais dos tempos modernos, as quais, embora distintas e operando de modo diferenciado, são interdependentes. Cada uma cria um subsistema de distinções visíveis e invisíveis de tal modo que as últimas se tornam o fundamento das primeiras. No campo do conhecimento, o pensamento abissal consiste na concessão do monopólio da distinção universal entre o verdadeiro e o falso à ciência, em detrimento de dois conhecimentos alternativos: a filosofia e a teologia. Esse monopólio está no cerne da disputa epistemológica moderna entre as formas de verdade científicas e não-científicas. Já que a validade universal da verdade científica sempre é reconhecidamente muito relativa — pois só pode ser estabelecida em relação a certos tipos de objetos em determinadas circunstâncias e segundo determinados métodos —, de que modo ela se relaciona com outras verdades possíveis que até podem reclamar um estatuto superior mas que não podem ser estabelecidas conforme o método científico, como é o caso da razão como verdade filosófica e da fé como verdade religiosa5? Essas tensões entre a ciência, de um lado, e a filosofia e a teologia, de outro, vieram a se tornar altamente visíveis, mas todas elas, como defendo, têm lugar deste lado da linha. Sua visibilidade assenta na invisibilidade de formas de conhecimento que não se encaixam em nenhuma dessas modalidades. Refiro-me aos conhecimentos populares, leigos, plebeus, camponeses ou indígenas do outro lado da linha, que desaparecem como conhecimentos relevantes ou comensuráveis por se encontrarem para além do universo do verdadeiro e do falso. É inimaginável aplicar-lhes não só a distinção científica entre verdadeiro e falso, mas também as verdades inverificáveis da filosofia e da teologia, que constituem o outro conhecimento aceitável deste lado da linha6. Do outro lado não há conhecimento real; existem crenças, opiniões, magia, idolatria, entendimentos intuitivos ou subjetivos, que na melhor das hipóteses podem se tornar objeto ou matéria-prima de investigações científicas. Assim, a linha visível que separa a ciência de seus “outros” modernos está assente na linha abissal invisível que separa, de um lado, ciência, filosofia e teologia e, de outro, conhecimentos tornados incomensuráveis e incompreensíveis por não obedecerem nem aos critérios científicos de verdade nem aos critérios dos conhecimentos reconhecidos como alternativos, da filosofia e da teologia.

No campo do direito moderno, este lado da linha é determinado por aquilo que se reputa como legal ou ilegal de acordo com o direito oficial do Estado ou o direito internacional. Distinguidos como as duas únicas formas de existência relevantes perante a lei, o legal e o ilegal acabam por constituir-se numa distinção universal. Tal distinção central deixa de fora todo um território social onde essa dicotomia seria impensável como princípio organizador, isto é, o território sem lei, fora da lei, o território do a-legal, ou mesmo do legal e ilegal de acordo com direitos não reconhecidos oficialmente7. Assim, a linha abissal invisível que separa o domínio do direito do domínio do não-direito fundamenta a dicotomia visível entre o legal e o ilegal que deste lado da linha organiza o domínio do direito.

Em cada um dos dois grandes domínios — a ciência e o direito — as divisões levadas a cabo pelas linhas globais são abissais no sentido de que eliminam definitivamente quaisquer realidades que se encontrem do outro lado da linha. Essa negação radical de co-presença fundamenta a afirmação da diferença radical que deste lado da linha separa o verdadeiro do falso, o legal e o ilegal. O outro lado da linha compreende uma vasta gama de experiências desperdiçadas, tornadas invisíveis, assim como seus autores, e sem uma localização territorial fixa. Na verdade, como já apontei, existiu originalmente uma localização territorial, a qual coincidiu historicamente com um território social específico: a zona colonial8. Tudo o que não pudesse ser pensado em termos de verdadeiro ou falso, de legal ou ilegal, ocorria na zona colonial. A esse respeito, o direito moderno parece ter alguma precedência histórica sobre a ciência na criação do pensamento abissal. De fato, foi a linha global que separava o Velho Mundo do Novo Mundo que tornou possível a emergência, deste lado da linha, do direito moderno e em particular do direito internacional moderno9.

A primeira linha global moderna foi provavelmente a do Tratado de Tordesilhas entre Portugal e Espanha (1494)10, mas as verdadeiras linhas abissais emergem em meados do século XVI com as amity lines (“linhas de amizade”)11. Seu caráter abissal se manifesta no elaborado trabalho cartográfico investido em sua definição, na extrema precisão exigida a cartógrafos, fabricantes de globos terrestres e pilotos, no policiamento vigilante e nas duras punições às violações. Na sua constituição moderna, o colonial representa não o legal ou o ilegal, mas o sem lei. Uma máxima que então se populariza, “Não há pecados ao sul do Equador”, ecoa na famosa passagem dosPensamentos de Pascal, escritos em meados do século XVII: “Três graus de latitude subvertem toda a jurisprudência. Um meridiano determina a verdade […]. Singular justiça que um rio delimita! Verdade aquém dos Pirineus, errado além”12. De meados do século XVI em diante, o debate jurídico e político entre os Estados europeus acerca do Novo Mundo concentra-se na linha global, isto é, na determinação do colonial, e não na ordenação interna do colonial. O colonial é o estado de natureza, onde as instituições da sociedade civil não têm lugar. Hobbes refere-se explicitamente aos “povos selvagens em muitos lugares da América” como exemplares do estado de natureza, e Locke pensa da mesma forma ao escrever em Sobre o governo civil: “No princípio todo o mundo foi América”13.

O colonial constitui o grau zero a partir do qual são construídas as concepções modernas de conhecimento e direito. As teorias do contrato social dos séculos XVII e XVIII são tão importantes por aquilo que dizem como por aquilo que silenciam. O que dizem é que os indivíduos modernos, ou seja, os homens metropolitanos, entram no contrato social abandonando o estado de natureza para formar a sociedade civil14. O que silenciam é que com isso se cria uma vasta região do mundo em estado de natureza — um estado de natureza a que são condenados milhões de seres humanos sem quaisquer possibilidades de escapar por via da criação de uma sociedade civil. A modernidade ocidental, em vez de significar o abandono do estado de natureza e a passagem à sociedade civil, significa a coexistência de sociedade civil e estado de natureza separados por uma linha abissal com base na qual o olhar hegemônico, localizado na sociedade civil, deixa de ver e declara efetivamente como não-existente o estado de natureza. O presente que vai sendo criado do outro lado da linha é tornado invisível ao ser reconceitualizado como o passado irreversível deste lado da linha. O contato hegemônico converte simultaneidade em não-contemporaneidade, inventando passados para dar lugar a um futuro único e homogêneo. Assim, o fato de que os princípios legais vigentes na sociedade civil deste lado da linha não se aplicam ao outro lado não compromete sua universalidade.

A mesma cartografia abissal é constitutiva do conhecimento moderno. Mais uma vez, a zona colonial é por excelência o universo das crenças e dos comportamentos incompreensíveis, que de forma alguma podem ser considerados como conhecimento e por isso estão para além do verdadeiro e do falso. O outro lado da linha alberga apenas práticas mágicas ou idolátricas, cuja completa estranheza conduziu à própria negação da natureza humana de seus agentes. Com base nas suas refinadas concepções de humanidade e de dignidade humana, os humanistas dos séculos XV e XVI chegaram à conclusão de que os selvagens eram subumanos. A questão era: os índios têm alma? Quando o papa Paulo III respondeu afirmativamente em sua bula Sublimis Deus, de 1537, fê-lo concebendo a alma dos povos selvagens como um receptáculo vazio, uma anima nullius, muito semelhante à terra nullius15, o conceito de vazio jurídico que justificou a invasão e a ocupação dos territórios indígenas. Com base nessas concepções abissais de epistemologia e legalidade, a universalidade da tensão entre regulação e emancipação, aplicada a este lado da linha, não entra em contradição com a tensão entre apropriação e violência, aplicada ao outro lado da linha.

A apropriação e a violência assumem formas diferentes nas linhas abissais jurídica e epistemológica, mas em geral a apropriação envolve incorporação, cooptação e assimilação, enquanto a violência implica destruição física, material, cultural e humana. Na prática, é profunda a ligação entre a apropriação e a violência. No domínio do conhecimento, a apropriação vai desde o uso de habitantes locais como guias e de mitos e cerimônias locais como instrumentos de conversão até a pilhagem de conhecimentos indígenas sobre a biodiversidade, ao passo que a violência é exercida mediante a proibição do uso das línguas próprias em espaços públicos, a adoção forçada de nomes cristãos, a conversão e a destruição de símbolos e lugares de culto e a prática de todo tipo de discriminação cultural e racial.

No tocante ao direito, a tensão entre apropriação e violência é particularmente complexa em virtude de sua relação direta com a extração de valor: tráfico de escravos e trabalho forçado, uso manipulador do direito e das autoridades tradicionais por meio do governo indireto (indirect rule), pilhagem de recursos naturais, deslocação maciça de populações, guerras e tratados desiguais, diferentes formas de apartheid e assimilação forçada etc. Enquanto a lógica da regulação/emancipação é impensável sem a distinção matricial entre o direito das pessoas e o direito das coisas, a lógica da apropriação/violência reconhece apenas o direito das coisas, sejam elas humanas ou não. A versão extrema desse tipo de direito, irreconhecível deste lado da linha, é o direito de propriedade pessoal do Estado Livre do Congo pelo rei Leopoldo II da Bélgica [a partir de 1885]16.

Existe portanto uma cartografia moderna dual nos âmbitos epistemológico e jurídico. A profunda dualidade do pensamento abissal e a incomensurabilidade entre os termos da dualidade foram implementadas por meio das poderosas bases institucionais — universidades, centros de pesquisa, escolas de direito e profissões jurídicas — e das sofisticadas linguagens técnicas da ciência e da jurisprudência. O outro lado da linha abissal é um universo que se estende para além da legalidade e da ilegalidade e para além do verdade e da falsidade. Juntas, essas formas de negação radical produzem uma ausência radical: a ausência de humanidade, a subumanidade moderna. Assim, a exclusão se torna simultaneamente radical e inexistente, uma vez que seres subumanos não são considerados sequer candidatos à inclusão social (a suposta exterioridade do outro lado da linha é na verdade a conseqüência de seu pertencimento ao pensamento abissal como fundação e como negação da fundação). A humanidade moderna não se concebe sem uma subumanidade moderna17. A negação de uma parte da humanidade é sacrificial, na medida em que constitui a condição para que a outra parte da humanidade se afirme como universal (e essa negação fundamental permite, por um lado, que tudo o que é possível se transforme na possibilidade de tudo e, por outro, que a criatividade do pensamento abissal banalize facilmente o preço da sua destrutividade).

Meu argumento é que essa realidade é tão verdadeira hoje quanto era no período colonial. O pensamento moderno ocidental continua a operar mediante linhas abissais que separam o mundo humano do mundo subumano, de tal modo que princípios de humanidade não são postos em causa por práticas desumanas. As colônias representam um modelo de exclusão radical que permanece no pensamento e nas práticas modernas ocidentais tal como no ciclo colonial. Hoje, como então, a criação e a negação do outro lado da linha fazem parte de princípios e práticas hegemônicos. Atualmente, Guantánamo representa uma das manifestações mais grotescas do pensamento jurídico abissal, da criação do outro lado da fratura como um não-território em termos jurídicos e políticos, um espaço impensável para o primado da lei, dos direitos humanos e da democracia18. Contudo, seria um erro considerá-la exceção. Existem muitas Guantánamos, desde o Iraque até a Palestina e Darfur. Mais do que isso, existem milhões de Guantánamos nas discriminações sexuais e raciais, quer na esfera pública, quer na privada: nas zonas selvagens das megacidades, nos guetos, nas prisões, nas novas formas de escravidão, no tráfico ilegal de órgãos humanos, no trabalho infantil, na exploração da prostituição.

Neste artigo, começo por argumentar que a tensão entre regulação e emancipação continua a coexistir com a tensão entre apropriação e violência, e de tal maneira que a universalidade da primeira tensão não é questionada pela existência da segunda. Em seguida, sustento que as linhas abissais ainda estruturam o conhecimento e o direito modernos e são constitutivas das relações e interações políticas e culturais que o Ocidente protagoniza no interior do sistema-mundo. Em suma, meu argumento é o de que a cartografia metafórica das linhas globais sobreviveu à cartografia literal das linhas que separavam o Velho do Novo Mundo. A injustiça social global está assim intimamente ligada à injustiça cognitiva global, de modo que a luta pela justiça social global também deve ser uma luta pela justiça cognitiva global. Para ser bem-sucedida, essa luta exige um novo pensamento — um pensamento pós-abissal, cujas características apresento na parte final do artigo.

 

A DIVISÃO ABISSAL ENTRE REGULAÇÃO/EMANCIPAÇÃO E APROPRIAÇÃO/VIOLÊNCIA

A permanência das linhas abissais globais ao longo de todo o período moderno não significa que elas tenham se mantido fixas, já que historicamente sofreram deslocamentos. No entanto, em cada momento histórico elas são fixas e sua posição é fortemente vigiada e preservada, assim como sucedia com as “linhas de amizade”. Nos últimos sessenta anos essas linhas sofreram dois grandes abalos. O primeiro teve lugar com as lutas anticoloniais e os processos de independência das antigas colônias19. O outro lado da linha sublevou-se contra a exclusão radical à medida que os povos que haviam sido sujeitos ao paradigma da apropriação/violência se organizaram e reclamaram o direito à inclusão no paradigma da regulação/emancipação20 . Durante algum tempo o paradigma da apropriação/violência parecia estar chegando ao fim, bem como a divisão abissal entre este lado da linha e o outro lado da linha. Os deslocamentos das linhas globais epistemológica e jurídica pareciam convergir para o encolhimento e finalmente para a eliminação do outro lado da linha, mas não foi isso o que aconteceu, como mostram a teoria da dependência, a teoria do sistema-mundo moderno e os estudos pós-coloniais21.

O segundo abalo das linhas abissais — no qual concentro minha atenção neste texto —vem ocorrendo desde os anos 1970 e segue na direção oposta. Desta feita, o movimento das linhas globais se dá de tal forma que o outro lado da linha parece estar se expandindo enquanto este lado da linha parece se encolher. A lógica da apropriação/violência passa a ganhar força em detrimento da lógica da regulação/emancipação numa extensão tal que o domínio desta última não só se encolhe, como também se contamina internamente pela primeira. A complexidade desse movimento nos é difícil de divisar se não conseguimos nos abstrair do fato de que o estamos olhando desde este lado da linha. Para captar sua totalidade é necessário um grande esforço de descentramento, e nenhum estudioso pode fazê-lo sozinho, como indivíduo. Com base num esforço coletivo para desenvolver uma epistemologia das regiões periféricas e semiperiféricas do sistema-mundo22, argumento que esse movimento é composto de um movimento principal, que designo como “regresso do colonial e do colonizador”, e por um contramovimento que designo como “cosmopolitismo subalterno”.

REGRESSO DO COLONIAL E DO COLONIZADOR Nesse movimento, o “colonial” é uma metáfora daqueles que entendem que suas experiências de vida ocorrem do outro lado da linha e se rebelam contra isso. O regresso do colonial é a resposta abissal àquilo que é percebido como uma intromissão ameaçadora do colonial nas sociedades metropolitanas. Esse regresso assume três formas principais: a do terrorista, a do imigrante indocumentado e a do refugiado23. De maneiras distintas, cada um deles traz consigo a linha abissal global que define a exclusão radical e a inexistência jurídica. A nova onda de leis de imigração e de legislação antiterrorismo, por exemplo, segue a lógica reguladora do paradigma “apropriação/violência” em muitas de suas disposições24. O regresso do colonial não significa necessariamente sua presença física nas sociedades metropolitanas. Basta que tenha uma ligação relevante com elas. No caso do terrorista, essa ligação pode ser estabelecida pelos serviços secretos. No caso do trabalhador imigrante indocumentado, basta que seja um subempregado numa das muitas centenas de sweatshops, as manufaturas subcontratadas por corporações metropolitanas multinacionais que operam no Sul global25. No caso dos refugiados, a ligação é estabelecida mediante a solicitação do status de refugiado numa dada sociedade metropolitana.

O colonial que regressa é de fato um novo colonial abissal. Desta feita, o colonial retorna não só aos antigos territórios coloniais mas também às sociedades metropolitanas. Aqui reside a grande transgressão, pois o colonial do período colonial clássico não podia ingressar nas sociedades metropolitanas, a não ser por iniciativa do colonizador (como escravo, por exemplo). Os espaços metropolitanos que se encontravam demarcados desde o início da modernidade ocidental deste lado da linha estão sendo invadidos ou perpassados pelo colonial. Mais ainda, o colonial demonstra um nível de mobilidade imensamente superior ao dos escravos fugidos26. Nessas circunstâncias, o abissal metropolitano se vê confinado a um espaço cada vez mais limitado e reage remarcando a linha abissal. Na sua perspectiva, a nova intromissão do colonial tem de ser confrontada com a lógica ordenadora da “apropriação/violência”. Chegou ao fim o tempo de uma divisão nítida entre o Velho e o Novo Mundo, entre o metropolitano e o colonial. A linha tem de ser desenhada a uma distância curta o bastante para garantir a segurança. O que costumava pertencer inequivocamente a este lado da linha é agora um território confuso, atravessado por uma linha abissal sinuosa. O muro segregativo erguido por Israel na Palestina27 e a categoria “combatente inimigo ilegal”28, criada pela administração norte-americana após o 11 de Setembro, possivelmente constituem as metáforas mais adequadas da nova linha abissal e da cartografia confusa que ela gera.

Uma cartografia confusa não pode deixar de levar a práticas confusas. A “regulação/emancipação” é cada vez mais desfigurada pela presença e pela crescente pressão da “apropriação/violência” em seu interior. Mas nem a pressão nem a desfiguração podem ser percebidas por inteiro, precisamente pelo fato de que o outro lado da linha foi desde sempre incompreensível em seu atributo de território subumano29. De formas distintas, o terrorista e o trabalhador imigrante indocumentado são ambos ilustrativos da pressão da lógica da apropriação/violência e da inabilidade do pensamento abissal para se aperceber dessa pressão como algo estranho à “regulação/emancipação”. Cada vez se torna mais evidente que as legislações antiterrorismo promulgadas em muitos países — seguindo a Resolução 1.566 do Conselho de Segurança da ONU, de 8/10/200430, e sob forte pressão de Washington — esvaziam o conteúdo civil e político dos direitos e das garantias básicas das constituições nacionais. Visto que tudo isso ocorre sem que haja uma suspensão formal desses direitos e garantias, estamos assistindo à escalada do estado de exceção, que, à diferença do estado de sítio ou do estado de emergência, restringe os direitos democráticos sob o pretexto da sua salvaguarda ou mesmo expansão31.

De forma mais ampla, parece que a modernidade ocidental só poderá se expandir globalmente na medida em que viole todos os princípios sobre os quais fez assentar a legitimidade histórica do paradigma da regulação/emancipação deste lado da linha. Assim, direitos humanos são violados para que possam ser defendidos, a democracia é destruída para que se garanta sua salvaguarda e a vida é eliminada em nome da sua preservação. Linhas abissais são traçadas tanto no sentido literal quanto no metafórico. No sentido literal, são linhas que demarcam fronteiras como vedações32 e campos de morte; dividem cidades em zonas civilizadas (condomínios fechados em profusão33) e zonas selvagens, e distinguem prisões como locais de detenção legal e à margem da lei34.

O outro lado do movimento em questão é o “regresso do colonizador”, que implica o ressuscitamento de formas de governo colonial tanto nas sociedades metropolitanas — agora incidindo sobre a vida dos cidadãos comuns — como naquelas anteriormente sujeitas ao colonialismo europeu. A expressão mais saliente desse movimento pode ser concebida como uma nova forma de governo indireto35, que emerge em diversas situações em que o Estado se retira da regulação social e os serviços públicos são privatizados, de modo que poderosos atores não-estatais adquirem controle sobre a vida e o bem-estar de vastas populações. A obrigação política que ligava o sujeito de direito ao Rechtstaat, o Estado constitucional moderno, antes prevalecente neste lado da linha, passou a ser substituída por obrigações contratuais privadas e despolitizadas, nas quais a parte mais fraca se encontra mais ou menos à mercê da parte mais forte. Essa forma de governo apresenta algumas semelhanças perturbadoras com o governo da apropriação/violência que historicamente prevaleceu do outro lado da linha.

Tenho descrito essa situação como a ascensão do fascismo social, um regime social de relações de poder extremamente desiguais, que concedem à parte mais forte poder de veto sobre a vida e o modo de vida da parte mais fraca. Noutro lugar distingui cinco formas de fascismo social36. Aqui me refiro a três delas, que refletem mais claramente a pressão da lógica da apropriação/violência sobre a lógica da regulação/emancipação. A primeira forma é o fascismo do apartheid social. Trata-se da segregação social dos excluídos por meio de uma cartografia urbana dividida em zonas selvagens e zonas civilizadas. As zonas selvagens são as zonas do estado de natureza hobbesiano, as zonas de guerra civil interna existentes em muitas megacidades em todo o Sul global. As zonas civilizadas são as zonas do contrato social, e vivem sob a constante ameaça das zonas selvagens. Para se defenderem, transformam-se em castelos neofeudais, os enclaves fortificados que caracterizam as novas formas de segregação urbana (cidades privadas ou condomínios fechados). A divisão entre zonas selvagens e civilizadas está se transformando em um critério geral de sociabilidade, em um novo espaço-tempo hegemônico que perpassa todas as relações sociais, econômicas, políticas e culturais e que por isso é comum aos âmbitos estatal e não-estatal.

A segunda forma é o fascismo contratual. Ocorre nas situações em que a diferença de poder entre as partes do contrato de direito civil (seja ele um contrato de trabalho ou um contrato de fornecimento de bens ou serviços) é de tal ordem que a parte mais fraca, vulnerabilizada por não ter alternativa ao contrato, aceita as condições que lhe são impostas pela parte mais poderosa, por mais onerosas e despóticas que sejam. O projeto neoliberal de transformar o contrato de trabalho num contrato de direito civil como qualquer outro configura uma situação de fascismo contratual. Essa forma de fascismo ocorre hoje freqüentemente nas situações de privatização de serviços públicos como os de saúde, segurança social, abastecimento de água etc.37. Nesses casos, o contrato social que orientava a produção de serviços públicos no Estado-Providência e no Estado desenvolvimentista é reduzido ao contrato individual do consumo de serviços privatizados. À luz das deficiências da regulação pública, essa redução preconiza a eliminação do âmbito contratual de aspectos decisivos para a proteção dos consumidores, de modo que esses aspectos se tornam extracontratuais e ficam à mercê da benevolência das empresas. Ao assumirem poderes extracontratuais, as agências de serviços privadas ou paraestatais assumem as funções de regulação social anteriormente exercidas pelo Estado. Este, implícita ou explicitamente, subcontrata a essas agências o desempenho dessas funções, e ao fazê-lo sem a participação efetiva e mesmo o controle dos cidadãos torna-se conivente com a produção social de fascismo contratual.

A terceira forma de fascismo social é o fascismo territorial. Ocorre sempre que atores sociais com forte capital patrimonial tomam do Estado o controle do território onde atuam ou neutralizam esse controle, cooptando ou violentando as instituições estatais e exercendo a regulação social sobre os habitantes do território sem a participação destes e contra os seus interesses. Na maioria dos casos, trata-se de novos territórios coloniais privados dentro de Estados que quase sempre estiveram sujeitos ao colonialismo europeu. Sob diferentes formas, a usurpação original de terras como prerrogativa do conquistador e a subseqüente “privatização” das colônias encontram-se presentes na reprodução do fascismo territorial e, mais geralmente, nas relações entre terratenentes e camponeses sem terra. As populações civis residentes em zonas de conflitos armados também se encontram submetidas ao fascismo territorial38.

O fascismo social é a nova forma do estado de natureza, e prolifera à sombra do contrato social sob duas formas: pós-contratualismo e pré-contratualismo. O pós-contratualismo é o processo pelo qual grupos e interesses sociais são excluídos do contrato social sem nenhuma perspectiva de regresso: trabalhadores e membros das classes populares em geral são expulsos do contrato social em virtude da eliminação dos seus direitos econômicos e sociais, tornando-se assim populações descartáveis. O pré-contratualismo consiste no bloqueamento do acesso à cidadania a grupos sociais que tinham a expectativa fundamentada de nela ingressar: por exemplo, a juventude urbana dos guetos das megacidades do Norte e do Sul globais39. Como regime social, o fascismo social pode coexistir com a democracia política liberal. Ele a banaliza a ponto de não ser necessário, nem sequer conveniente, sacrificar a democracia para promover o capitalismo. Trata-se pois de um fascismo pluralista, e por isso de uma forma de fascismo inédita. De fato, creio que talvez estejamos entrando num período em que as sociedades são politicamente democráticas e socialmente fascistas.

As novas formas de governo indireto constituem também a segunda grande transformação da propriedade e do direito de propriedade na era moderna. Como apontei de início, a propriedade dos territórios do Novo Mundo fundamentou o estabelecimento das linhas abissais modernas. A primeira transformação teve lugar quando a propriedade sobre as coisas se expandiu, com o capitalismo, perante a propriedade sobre os meios de produção. Como bem descreveu Karl Renner, o proprietário das máquinas se tornou proprietário da força de trabalho que nelas operava, de modo que o controle sobre as coisas se converteu em controle sobre as pessoas40. Evidentemente, Renner negligenciou o fato de que essa transformação não ocorreu nas colônias, já que nelas o controle sobre as pessoas era a forma original do controle sobre as coisas, compreendendo tanto as coisas não-humanas como as humanas. A segunda grande transformação da propriedade tem lugar muito além da produção, quando a propriedade de serviços se torna um meio de controlar as pessoas que deles necessitam para sobreviver. Recorrendo aqui à caracterização do governo colonial na África proposta por Mamdani, o novo governo indireto promove um despotismo descentralizado41. O despotismo descentralizado não conflita com a democracia liberal; antes, torna-a cada vez mais irrelevante para a qualidade de vida de populações cada vez mais vastas.

Sob as condições do novo governo indireto, o pensamento abissal moderno, mais do que regular os conflitos sociais entre cidadãos, é solicitado a suprimir os conflitos sociais e a ratificar a impunidade deste lado da linha, como sempre ocorreu do outro lado da linha. Pressionado pela lógica da apropriação/violência, o próprio conceito de direito moderno — uma norma universalmente válida que emana do Estado e é por ele imposta coercitivamente caso necessário — encontra-se em transformação. Entre as mudanças conceituais em curso verifica-se a proposição de uma modalidade de regulamentação eufemisticamente denominada “lei branda” (soft law)42. Apresentada como a manifestação mais benevolente do ordenamento “regulação/ emancipação”, essa forma de regulamentação traz consigo a lógica da apropriação/violência sempre que estejam em jogo relações de poder muito desiguais. Trata-se de uma lei cujo cumprimento é voluntário. Sem surpresa, vem sendo aplicada, em meio a outros âmbitos sociais, no campo das relações capital/trabalho, e sua versão mais cabal é a dos códigos de conduta recomendados às multinacionais metropolitanas na subcontratação de serviços às “suas” sweatshops em todo o mundo. Essa forma de lei — eufemisticamente denominada “branda” por ser branda com aqueles cujo comportamento empreendedor é considerado regular (empregadores) e dura com aqueles que sofrem as conseqüências do seu não-cumprimento (trabalhadores) — apresenta semelhanças intrigantes com o direito colonial, cuja aplicação dependia mais da vontade do colonizador do que de qualquer outra coisa. As relações sociais que ela regula são, se não um novo estado de natureza, uma zona intermédia entre o estado de natureza e a sociedade civil, onde o fascismo social prolifera e floresce.

Em suma, o pensamento abissal moderno, que deste lado da linha era chamado a regular as relações entre cidadãos e entre estes e o Estado, é agora chamado, nos domínios sociais sujeitos a uma maior pressão por parte da lógica da apropriação/violência, a lidar com os cidadãos como se fossem não-cidadãos e com os não-cidadãos como se fossem perigosos selvagens coloniais. Assim como o fascismo social coexiste com a democracia liberal, o estado de exceção coexiste com a normalidade constitucional, a sociedade civil coexiste com o estado de natureza e o governo indireto coexiste com o primado do direito. Longe de ser a perversão de alguma regra normal, fundadora, esse estado de coisas constitui o projeto original da epistemologia e da legalidade modernas, ainda que a linha abissal entre o metropolitano e o colonial tenha se deslocado, transformando o colonial numa dimensão interna do metropolitano.

COSMOPOLITISMO SUBALTERNO À luz do que foi dito anteriormente, ficamos com a idéia de que o pensamento abissal continuará a auto-reproduzir-se — por mais excludentes que sejam as práticas que origina — a menos que se defronte com uma resistência ativa. Assim, a resistência política deve ter como postulado a resistência epistemológica. Como foi dito de início, não existe justiça social global sem justiça cognitiva global. Isso significa que a tarefa crítica que se avizinha não pode ficar limitada à geração de alternativas: ela requer um pensamento alternativo de alternativas. É preciso um novo pensamento, um pensamento pós-abissal. Será isso possível? Existirão as condições que, se devidamente aproveitadas, poderão propiciar sua emergência? A investigação sobre essas condições explica minha especial atenção ao contramovimento acima mencionado, resultante do abalo que as linhas abissais globais vêm sofrendo desde os anos 1970 e o qual designei como “cosmopolitismo subalterno”43.

Apesar de seu caráter por ora claramente embrionário, o cosmopolitismo subalterno contém uma promessa real. De fato, para captá-lo é necessário realizar aquilo que chamo de “sociologia das emergências”44, a qual consiste numa amplificação simbólica de sinais, pistas e tendências latentes que, embora dispersas, embrionárias e fragmentadas, apontam para novas constelações de sentido referentes tanto à compreensão como à transformação do mundo. O cosmopolitismo subalterno se manifesta mediante os diversos movimentos e organizações que configuram a globalização contra-hegemônica, lutando contra a exclusão social, econômica, política e cultural gerada pela mais recente encarnação do capitalismo global, conhecida como “globalização neoliberal”45. Tendo em mente que a exclusão social sempre é produto de relações de poder desiguais, essas iniciativas são animadas por um ethos redistributivo no sentido mais amplo da expressão — compreendendo a redistribuição de recursos materiais, sociais, políticos, culturais e simbólicos —, e como tal baseado simultaneamente nos princípios da igualdade e do reconhecimento da diferença. Desde o início deste século, o Fórum Social Mundial tem sido a expressão mais cabal da globalização contra-hegemônica e do cosmopolitismo subalterno46. Entre as entidades que dele participam, os movimentos indígenas são, do meu ponto de vista, aqueles cujas concepções e práticas representam a mais convincente emergência do pensamento pós-abissal, o que é muito auspicioso para a possibilidade de um tal pensamento, já que os povos indígenas são os habitantes paradigmáticos do outro lado da linha, o campo histórico do paradigma “apropriação/violência”.

A novidade do cosmopolitismo subalterno reside acima de tudo em seu profundo sentido de incompletude, sem contudo ambicionar a completude. Por um lado, defende que a compreensão do mundo excede largamente a compreensão ocidental do mundo, e que a nossa compreensão da globalização, portanto, é muito menos global do que a própria globalização. Por outro lado, defende que quanto mais compreensões não-ocidentais forem identificadas mais evidente se tornará o fato de que ainda restam muitas outras por identificar, e que as compreensões híbridas — com elementos ocidentais e não-ocidentais — são virtualmente infinitas. O pensamento pós-abissal parte da idéia de que a diversidade do mundo é inesgotável e continua desprovida de uma epistemologia adequada, de modo que a diversidade epistemológica do mundo está por ser construída.

A seguir apresento um esquema geral do pensamento pós-abissal. Concentro-me nas suas dimensões epistemológicas, deixando de lado suas dimensões jurídicas.

 

PENSAMENTO PÓS-ABISSAL COMO UM SABER ECOLÓGICO

O pensamento pós-abissal parte do reconhecimento de que a exclusão social, no seu sentido mais amplo, assume diferentes formas conforme seja determinada por uma linha abissal ou não-abissal, e da noção de que enquanto persistir a exclusão definida abissalmente não será possível qualquer alternativa pós-capitalista progressista. Durante um período de transição possivelmente longo, confrontar a exclusão abissal será um pré-requisito para abordar de modo eficiente as muitas formas de exclusão não-abissal que têm dividido o mundo moderno deste lado da linha. Uma concepção pós-abissal do marxismo (em si mesmo um bom exemplo de pensamento abissal) pretende que a emancipação dos trabalhadores seja conquistada em conjunto com a emancipação de todas as populações descartáveis do Sul global, que são oprimidas mas não diretamente exploradas pelo capitalismo global. Da mesma forma, reivindica que os direitos dos cidadãos não estarão assegurados enquanto os não-cidadãos sofrerem um tratamento sub-humano47.

Assim, o reconhecimento da persistência do pensamento abissal é condição sine qua non para começar a pensar e a agir para além dele. Sem esse reconhecimento, o pensamento crítico permanecerá um pensamento derivativo, que continuará a reproduzir as linhas abissais por mais antiabissal que se autoproclame. Pelo contrário, o pensamento pós-abissal é um pensamento não-derivativo, pois envolve uma ruptura radical com as formas de pensamento e ação da modernidade ocidental. No nosso tempo, pensar em termos não-derivativos significa pensar a partir da perspectiva do outro lado da linha, precisamente porque ele é o domínio do impensável no Ocidente moderno. A emergência do ordenamento da apropriação/violência só poderá ser enfrentada se situarmos nossa perspectiva epistemológica na experiência social do outro lado da linha, isto é, do Sul global, concebido como a metáfora do sofrimento humano sistêmico e injusto provocado pelo capitalismo global e pelo colonialismo48. O pensamento pós-abissal pode ser sintetizado como um aprender com o Sul usando uma epistemologia do Sul. Ele confronta a monocultura da ciência moderna com uma ecologia de saberes, na medida em que se funda no reconhecimento da pluralidade de conhecimentos heterogêneos (sendo um deles a ciência moderna) e em interações sustentáveis e dinâmicas entre eles sem comprometer sua autonomia. A ecologia de saberes se baseia na idéia de que o conhecimento é interconhecimento49.

Assim, a primeira condição para um pensamento pós-abissal é a co-presença radical. A co-presença radical significa que práticas e agentes de ambos os lados da linha são contemporâneos em termos igualitários. Implica conceber simultaneidade como contemporaneidade, o que requer abandonar a concepção linear de tempo50. Só assim será possível ir além de Hegel, para quem ser membro da humanidade histórica — isto é, estar deste lado da linha — significava: no século V a.C., ser um grego e não um bárbaro; nos primeiros séculos da era cristã, ser um cidadão romano e não um grego; na Idade Média, ser um cristão e não um judeu; no século XVI, ser um europeu e não um selvagem do Novo Mundo; e no século XIX ser um europeu (incluindo os europeus deslocados da América do Norte) e não um asiático, estagnado na história, ou um africano, que sequer faz parte dela51. Além disso, a co-presença radical pressupõe a abolição da guerra, que, juntamente com a intolerância, constitui a negação mais radical da co-presença.

Como ecologia de saberes, o pensamento pós-abissal tem por premissa a idéia da inesgotável diversidade epistemológica do mundo, o reconhecimento da existência de uma pluralidade de formas de conhecimento além do conhecimento científico52. Isso implica renunciar a qualquer epistemologia geral. Existem em todo o mundo não só diversas formas de conhecimento da matéria, da sociedade, da vida e do espírito, mas também muitos e diversos conceitos e critérios sobre o que conta como conhecimento. No período de transição que se inicia, em que ainda persistem as perspectivas abissais de totalidade e unidade, provavelmente precisamos de uma epistemologia geral residual ou negativa para seguir em frente: uma epistemologia geral da impossibilidade de uma epistemologia geral.

O contexto cultural em que se situa a ecologia de saberes é ambíguo. Por um lado, a idéia da diversidade sociocultural do mundo se fortaleceu nas três últimas décadas, favorecendo o reconhecimento da pluralidade epistemológica como uma de suas dimensões. Por outro lado, se todas as epistemologias partilham as premissas culturais do seu tempo, uma das mais bem consolidadas premissas do pensamento abissal talvez seja, ainda hoje, a da crença na ciência como única forma de conhecimento válida e rigorosa. Ortega y Gasset propôs uma distinção radical entre crenças e idéias, entendendo por estas últimas a ciência ou a filosofia53. A distinção reside em que as crenças fazem parte de nossa identidade e subjetividade, enquanto as idéias nos são exteriores. Enquanto nossas idéias nascem da dúvida e permanecem nela, nossas crenças nascem da ausência de dúvida. No fundo, a distinção é entre ser e ter: somos as nossas crenças, temos idéias. O que é característico do nosso tempo é o fato de a ciência moderna pertencer simultaneamente ao campo das idéias e ao campo das crenças. A crença na ciência excede em muito o que as idéias científicas nos permitem realizar. Assim, a relativa perda de confiança epistemológica na ciência durante a segunda metade do século XX ocorreu de par com a crescente crença popular na ciência. A relação entre crenças e idéias como duas entidades distintas passa a ser uma relação entre duas maneiras de experienciar socialmente a ciência. Essa dualidade faz com que o reconhecimento da diversidade cultural do mundo não signifique necessariamente o reconhecimento da diversidade epistemológica do mundo.

Nesse contexto, a ecologia de saberes é basicamente uma contra-epistemologia. O impulso básico para o seu avanço resulta de dois fatores. O primeiro consiste nas novas emergências políticas de povos do outro lado da linha como parceiros da resistência ao capitalismo global: globalização contra-hegemônica. Em termos geopolíticos, trata-se de sociedades periféricas do sistema-mundo moderno onde a crença na ciência moderna é mais tênue, onde é mais visível a vinculação da ciência moderna aos desígnios da dominação colonial e imperial, onde conhecimentos não-científicos e não-ocidentais prevalecem nas práticas cotidianas das populações. O segundo fator é uma proliferação sem precedentes de alternativas, as quais porém não podem ser agrupadas sob a alçada de uma única alternativa global, visto que globalização contra-hegemônica se destaca pela ausência de uma alternativa no singular. A ecologia de saberes procura dar consistência epistemológica ao pensamento pluralista e propositivo.

Na ecologia de saberes cruzam-se conhecimentos e também ignorâncias. Não existe uma unidade de conhecimento, assim como não existe uma unidade de ignorância. As formas de ignorância são tão heterogêneas e interdependentes quanto as formas de conhecimento. Dada essa interdependência, a aprendizagem de certos conhecimentos pode envolver o esquecimento e em última instância a ignorância de outros. Desse modo, na ecologia de saberes a ignorância não é necessariamente um estado original ou ponto de partida. Pode ser um ponto de chegada. Pode ser o resultado do esquecimento ou da desaprendizagem implícito num processo de aprendizagem recíproca. Assim, num processo de aprendizagem conduzido por uma ecologia de saberes é crucial a comparação entre o conhecimento que está sendo aprendido e o conhecimento que nesse processo é esquecido e desaprendido. A ignorância só é uma forma desqualificada de ser e de fazer quando aquilo que se aprende vale mais do que aquilo que se esquece. A utopia do interconhecimento consiste em aprender outros conhecimentos sem esquecer os próprios. O princípio da prudência que subjaz à ecologia de saberes (do qual falaremos mais adiante) convida a uma reflexão mais profunda sobre a diferença entre a ciência como conhecimento monopolista e a ciência como parte de uma ecologia de saberes.

Como produto do pensamento abissal, o conhecimento científico não se encontra distribuído socialmente de forma equitativa — nem poderia estar, uma vez que o seu desígnio original foi converter este lado da linha em sujeito do conhecimento e o outro lado em objeto de conhecimento. As intervenções no mundo real por ele propiciadas tendem a servir aos grupos sociais que têm maior acesso a esse conhecimento. Enquanto as linhas abissais continuarem a ser traçadas, a luta por uma justiça cognitiva não terá êxito caso se apóie apenas na idéia de uma distribuição mais equitativa do conhecimento científico. Além do fato de que tal distribuição é impossível nas condições do capitalismo e do colonialismo, o conhecimento científico tem limites intrínsecos quanto ao tipo de intervenção que promove no mundo real. Na ecologia de saberes, a busca de credibilidade para os conhecimentos não-científicos não implica o descrédito do conhecimento científico. Implica simplesmente a sua utilização contra-hegemônica. Trata-se, por um lado, de explorar a pluralidade interna da ciência, isto é, as práticas científicas alternativas que têm se tornado visíveis por meio das epistemologias feministas e pós-coloniais54, e, por outro lado, de promover a interação e a interdependência entre os saberes científicos e outros saberes, não-científicos.

Uma das premissas básicas da ecologia de saberes é que todos os conhecimentos têm limites internos, referentes às intervenções no real que eles permitem, e externos, decorrentes do reconhecimento de intervenções alternativas propiciadas por outras formas de conhecimento. Por definição, as formas de conhecimento hegemônicas só conhecem limites internos, de modo que o uso contra-hegemônico da ciência moderna só é possível mediante a exploração paralela de seus limites internos e externos como parte de uma concepção contra-hegemônica de ciência. É por isso que o uso contra-hegemônico da ciência não pode se limitar à ciência. Só faz sentido no âmbito de uma ecologia de saberes.

Para uma ecologia de saberes, o conhecimento como intervenção no real — não como representação do real — é a medida do realismo. A credibilidade da construção cognitiva é mensurada pelo tipo de intervenção no mundo que ela proporciona, auxilia ou impede. Como a avaliação dessa intervenção sempre combina o cognitivo com o ético-político, a ecologia de saberes distingue a objetividade analítica da neutralidade ético-política. Hoje em dia ninguém questiona o valor geral das intervenções no real propiciadas pela ciência moderna por meio de sua produtividade tecnológica. Mas isso não deve nos impedir de reconhecer intervenções propiciadas por outras formas de conhecimento. Em muitas áreas da vida social a ciência moderna tem demonstrado uma indiscutível superioridade em relação a outras formas de conhecimento, mas há outros modos de intervenção no real que hoje nos são valiosos e para os quais a ciência moderna em nada contribuiu. É o caso, por exemplo, da preservação da biodiversidade possibilitada por formas de conhecimento camponesas e indígenas, que se encontram ameaçadas justamente pela crescente intervenção da ciência moderna55. E não deveria nos impressionar a riqueza dos conhecimentos que lograram preservar modos de vida, universos simbólicos e informações vitais para a sobrevivência em ambientes hostis com base exclusivamente na tradição oral? Dirá algo sobre a ciência o fato de que por intermédio dela isso nunca teria sido possível?

Eis o impulso para a co-presença igualitária (como simultaneidade e contemporaneidade) e para a incompletude. Dado que nenhuma forma de conhecimento pode responder por todas as intervenções possíveis no mundo, todas as formas de conhecimento são, de diferentes maneiras, incompletas. A incompletude não pode ser erradicada, porque qualquer descrição completa das variedades de saber não incluiria a forma de saber responsável pela própria descrição. Não há conhecimento que não seja conhecido por alguém para certos objetivos. Todos os conhecimentos sustentam práticas e constituem sujeitos. Todos os conhecimentos são testemunhais porque aquilo que conhecem sobre o real (sua dimensão ativa) é sempre duplicado por aquilo que dão a conhecer sobre o sujeito do conhecimento (sua dimensão subjetiva). Ao questionar a distinção sujeito/ objeto, as ciências da complexidade dão conta desse fenômeno mas o confinam às práticas científicas. A ecologia de saberes expande o caráter testemunhal dos conhecimentos de modo a abarcar igualmente as relações entre o conhecimento científico e o não-científico, ampliando assim o alcance da intersubjetividade como interconhecimento e vice-versa.

Num regime de ecologia de saberes, a busca de intersubjetividade é tão importante quanto complexa. Uma vez que diferentes práticas de conhecimento têm lugar em diferentes escalas espaciais e com diferentes durações e ritmos, a intersubjetividade requer a disposição para conhecer e agir em diferentes escalas (interescalaridade) e com diferentes durações (intertemporalidade). Muitas das experiências subalternas de resistência são locais ou foram localizadas e assim tornadas irrelevantes ou inexistentes pelo conhecimento abissal moderno, o único capaz de gerar experiências globais. Dado porém que a resistência contra as linhas abissais precisa ocorrer em uma escala global, é imperativo desenvolver algum tipo de articulação entre as experiências subalternas por meio de ligações entre o local e o global. Desse modo, a ecologia de saberes tem de ser transescalar56.

Além disso, a coexistência de diferentes temporalidades ou durações em diferentes práticas de conhecimento requer uma expansão da moldura temporal. Na medida em que as modernas tecnologias tendem a favorecer a moldura temporal e a duração da ação estatal, tanto na administração pública como na política (o ciclo eleitoral, por exemplo), as experiências subalternas do Sul global têm sido forçadas a responder tanto à curta duração das necessidades imediatas de sobrevivência como à longa duração do capitalismo e do colonialismo. Mesmo nas lutas subalternas podem estar presentes diferentes durações. A luta pela terra empreendida pelos camponeses empobrecidos no Brasil, por exemplo, pode incluir: a duração do Estado moderno, quando o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) luta pela reforma agrária; a duração da escravatura, quando os afro-descendentes lutam pela recuperação dos quilombos; ou ainda a duração do colonialismo, quando os povos indígenas lutam para reaver seus territórios históricos, dos quais foram esbulhados pelos conquistadores.

A ecologia de saberes não concebe os conhecimentos em abstrato, mas como práticas de conhecimento que possibilitam ou impedem certas intervenções no mundo real. Um pragmatismo epistemológico é justificado acima de tudo pelo fato de que as experiências de vida dos oprimidos lhes são inteligíveis por via de uma epistemologia das conseqüências. No mundo em que vivem, as conseqüências vêm sempre primeiro que as causas.

A ecologia de saberes assenta na idéia pragmática de que é necessária uma reavaliação das intervenções e relações concretas na sociedade e na natureza que os diferentes conhecimentos proporcionam. Centra-se pois nas relações entre saberes, nas hierarquias que se geram entre eles, uma vez que nenhuma prática concreta seria possível sem essas hierarquias. No entanto, em vez de subscrever uma hierarquia única, universal e abstrata entre os saberes, estabelece hierarquias em conformidade com o contexto, à luz dos resultados concretos pretendidos ou atingidos pelas diferentes formas de saber. Hierarquias concretas emergem do valor relativo de intervenções alternativas no mundo real. Entre os diferentes tipos de intervenção pode existir complementaridade ou contradição57. Sempre que há intervenções no real que em princípio podem ser levadas a cabo por diferentes sistemas de conhecimento, as escolhas concretas das formas de conhecimento a privilegiar devem ser informadas pelo princípio da prudência, que no contexto da ecologia de saberes consiste em dar preferência às formas de conhecimento que garantam a maior participação possível dos grupos sociais envolvidos na concepção, execução, controle e fruição da intervenção.

O exemplo a seguir ilustra bem os perigos de substituir um tipo de conhecimento por outro com base em hierarquias abstratas. Nos anos 1960, os milenares sistemas de irrigação dos campos de arroz da ilha de Bali, na Indonésia, foram substituídos por sistemas científicos promovidos pelos prosélitos da Revolução Verde. Os sistemas tradicionais se baseavam em conhecimentos hidrológicos, agrícolas e religiosos ancestrais e eram administrados por sacerdotes de um templo hindu-budista dedicado a Dewi-Danu, a deusa do lago. Foram substituídos precisamente por serem considerados produtos da magia e da superstição, daquilo que foi depreciativamente designado como “culto do arroz”. Só que a substituição teve resultados desastrosos para a cultura do arroz, cuja colheita decresceu drasticamente nos anos subseqüentes. Diante disso, os sistemas científicos tiveram de ser abandonados e os sistemas tradicionais restaurados. Esse caso ilustra a importância do princípio da prudência quando lidamos com uma possível complementaridade ou contradição entre diferentes tipos de conhecimento. A suposta incompatibilidade entre dois sistemas de conhecimento (o religioso e o científico) para a realização da mesma intervenção (a irrigação dos campos de arroz) resultou de uma má avaliação (má ciência) provocada precisamente por juízos abstratos, baseados na superioridade abstrata do conhecimento científico. Trinta anos depois da desastrosa intervenção técnico-científica, a modelagem computacional — uma área das novas ciências ou ciências da complexidade — veio demonstrar que as seqüências da água geridas pelos sacerdotes da deusa Dewi-Danu eram as mais eficientes possíveis, portanto mais eficientes do que as do sistema científico de irrigação58.

Na perspectiva das epistemologias abissais do Norte global, o policiamento das fronteiras do conhecimento relevante é de longe mais decisivo do que as discussões sobre diferenças internas. Assim, em razão do “epistemicídio” em massa perpetrado nos últimos cinco séculos, desperdiçou-se uma imensa riqueza de experiências cognitivas. Para recuperar algumas dessas experiências, a ecologia de saberes recorre ao seu atributo pós-abissal mais característico, a tradução intercultural. Embebidas em diferentes culturas ocidentais e não-ocidentais, essas experiências não só usam linguagens diferentes, mas também diferentes categorias, universos simbólicos e aspirações a uma vida melhor.

As profundas diferenças entre saberes levantam a questão da incomensurabilidade, questão utilizada pela epistemologia abissal para desacreditar a mera possibilidade de uma ecologia de saberes. Um exemplo ajuda a ilustrar essa questão. Será possível estabelecer um diálogo entre a filosofia ocidental e a filosofia africana? Formulada assim, a pergunta parece só permitir uma resposta positiva, uma vez que ambas são filosofia (o mesmo argumento pode ser usado em relação a um diálogo entre religiões). No entanto, para muitos filósofos ocidentais e africanos não é possível referirmo-nos a uma filosofia africana porque existe apenas uma filosofia, cuja universalidade não é posta em causa pelo fato de que até o momento seu desenvolvimento se deu sobretudo no Ocidente. Na África, tal é a posição dos filósofos chamados “modernistas”. Já para os “tradicionalistas” há filosofia africana, mas como ela está embebida na cultura africana é incomensurável com a filosofia ocidental e deve seguir seu desenvolvimento autônomo59. Mas, além dessas duas posições, há perspectivas para as quais existem muitas filosofias e é possível haver entre elas um diálogo, um enriquecimento mútuo. Essas perspectivas se vêem freqüentemente confrontadas com os problemas da incomensurabilidade, da incompatibilidade e da ininteligibilidade recíprocas, os quais procuram resolver explorando formas de complementaridade. Tudo depende do uso de procedimentos adequados de tradução intercultural, mediante os quais é possível identificar preocupações comuns e aproximações complementares, assim como, está claro, contradições intransponíveis60.

O seguinte exemplo ilustra o que está em jogo. O filósofo ganense Kwasi Wiredu afirma que na língua akan (do grupo étnico a que pertence) não é possível traduzir o preceito cartesiano “Cogito, ergo sum”, já que nela não há palavras para exprimir tal idéia. Em akan, “pensar” significa “medir algo”, o que não faz sentido quando ligado à idéia de existir. E o “existo” é igualmente dificílimo de exprimir, porque o equivalente mais próximo é algo semelhante a “estou aí”. O locativo “aí”, segundo Wiredu, seria suicida tanto do ponto de vista da epistemologia como da metafísica do cogito61. Ou seja, a língua permite exprimir certas idéias e não outras. Mas isso não significa que a relação entre a filosofia africana e a filosofia ocidental tenha de ficar por aqui. Como Wiredu tenta demonstrar, é possível desenvolver argumentos autônomos com base na filosofia africana não só sobre o motivo pelo qual ela não poder exprimir o cogito, mas também sobre as muitas idéias alternativas que ela pode exprimir e a filosofia ocidental não pode62.

A ecologia de saberes não ocorre apenas no nível do lógos, mas também no nível do mythos. A idéia de “emergência” ou a noção do “ainda-não-ser” de Bloch lhe são essenciais63. A intensificação da vontade resulta de uma leitura potencializadora de tendências objetivas, que empresta força a uma possibilidade auspiciosa, mas frágil, mediante uma compreensão mais profunda das possibilidades humanas com base em saberes que, ao contrário do científico, privilegiam a força interior em vez da força exterior, a natura naturans em vez da natura naturata64. Por meio desses saberes é possível alimentar o valor intensificado de um empenho, o que é incompreensível do ponto de vista do mecanicismo positivista e funcionalista da ciência moderna. Desse empenho surgirá uma capacidade nova de inquirição e indignação, capaz de fundamentar teorias e práticas novas, umas e outras inconformistas, desestabilizadoras e mesmo rebeldes. O que está em jogo é a criação de uma previsão ativa baseada na riqueza da diversidade não-canônica do mundo e de um grau de espontaneidade baseado na recusa a deduzir o potencial do factual. Dessa forma, os poderes constituídos deixam de ser destino, podendo ser realisticamente confrontados com os poderes constituintes. O que importa, pois, é desfamiliarizar a tradição canônica das monoculturas do saber sem parar aí, como se essa desfamiliarização fosse a única familiaridade possível.

A ecologia de saberes é uma epistemologia desestabilizadora na medida em que se empenha numa crítica radical da política do possível, sem ceder a uma política impossível. Central a uma ecologia de saberes não é a distinção entre estrutura e agência, mas a distinção entre ação conformista e aquilo que denomino “ação-com-clinamen”65. A ação conformista é uma prática rotineira, reprodutiva e repetitiva que reduz o realismo àquilo que existe e apenas porque existe. Para a minha noção de ação-com-clinamen tomo de Epicuro e Lucrécio o conceito de clinamen, entendido como o quiddam inexplicável que perturba a relação entre causa e efeito, ou seja, como a capacidade de desvio que Epicuro atribuiu aos átomos de Demócrito: o clinamen é aquilo que faz com que os átomos deixem de parecer inertes e revelem um poder de inclinação, de movimento espontâneo66. Ao contrário do que se dá na ação revolucionária, a criatividade da ação-com-clinamen não assenta numa ruptura dramática, mas num ligeiro desvio cujos efeitos cumulativos promovem complexas e criativas combinações entre indivíduos e grupos sociais, assim como ocorre entre os átomos67. O clinamen não recusa o passado; pelo contrário, assume-o e redime-o pelo modo como dele se desvia. Seu potencial para o pensamento pós-abissal decorre de sua capacidade de atravessar as linhas abissais.

A ocorrência de ação-com-clinamen é em si mesma inexplicável. O papel de uma ecologia de saberes a esse respeito será somente o de identificar as condições que maximizam a probabilidade de uma tal ocorrência e definir o horizonte de possibilidades em que o desvio virá a “operar”. A ecologia de saberes é ao mesmo tempo constituída por sujeitos desestabilizadores — individuais ou coletivos — e constitutiva deles. A subjetividade capaz da ecologia de saberes é uma subjetividade especialmente dotada de capacidade, energia e vontade para agir com clinamen. A própria construção social de uma tal subjetividade necessariamente implica recorrer a formas excêntricas ou marginais de sociabilidade ou subjetividade dentro ou fora da modernidade ocidental, formas que se recusaram a ser definidas de acordo com os critérios abissais.

 

CONCLUSÃO

A construção epistemológica de uma ecologia de saberes não é tarefa fácil. A título de conclusão, proponho um programa de pesquisa no qual podemos identificar três conjuntos principais de questões.

O primeiro conjunto se refere à identificação de saberes e levanta uma série de questões que têm sido ignoradas pelas epistemologias do Norte global. A partir de qual perspectiva é possível identificar diferentes conhecimentos? Como se pode distinguir o conhecimento científico do não-científico? Como distinguir entre os vários conhecimentos não-científicos? Como se distingue o conhecimento não-ocidental do ocidental? Se existem vários conhecimentos ocidentais e vários conhecimentos não-ocidentais, como distingui-los entre si? Qual a configuração dos conhecimentos que agregam tanto componentes ocidentais como não-ocidentais?

O segundo conjunto levanta questões referentes aos procedimentos que permitem relacionar os diferentes saberes entre si. Como distinguir incomensurabilidade, contradição, incompatibilidade e complementaridade? De onde provém a vontade de traduzir? Quem são os tradutores? Como escolher os parceiros e tópicos de tradução? Como formar decisões partilhadas e distingui-las das impostas? Como assegurar que a tradução intercultural não se transforme numa versão renovada do pensamento abissal, numa versão “suavizada” de imperialismo e colonialismo?

O terceiro questionamento diz respeito à natureza e à avaliação das intervenções no mundo real possibilitadas pelos saberes. Como se pode traduzir tal perspectiva em práticas de conhecimento? Na busca de alternativas à dominação e à opressão, como distinguir entre alternativas ao sistema de opressão e dominação e alternativas dentro do sistema? Mais especificamente, como distinguir alternativas ao capitalismo de alternativas dentro do capitalismo?

Em suma, como combater as linhas abissais usando instrumentos conceituais e políticos que as não reproduzam? E por fim uma questão com especial interesse para educadores: qual seria o impacto de uma concepção de conhecimento pós-abissal (como uma ecologia de saberes) sobre as instituições educativas? Nenhuma dessas perguntas tem respostas definitivas, mas a tentativa de dar-lhes respostas — decerto um esforço coletivo e civilizacional — provavelmente é a única forma de confrontar a nova e mais insidiosa versão do pensamento abissal tal como identificada neste ensaio: a constante ascensão do paradigma da apropriação/violência no interior do paradigma da regulação/emancipação.

É próprio da natureza da ecologia de saberes constituir-se mediante perguntas constantes e respostas incompletas. Aí reside sua característica de conhecimento prudente. A ecologia de saberes nos capacita a uma visão mais abrangente tanto daquilo que conhecemos como daquilo que desconhecemos, e também nos previne de que aquilo que não sabemos é ignorância nossa e não ignorância em geral.

A vigilância epistemológica requerida pela ecologia de saberes transforma o pensamento pós-abissal num profundo exercício de auto-reflexividade. Requer que os pensadores e atores pós-abissais se vejam num contexto semelhante àquele em que Santo Agostinho se encontrava ao escrever suas Confissões, o qual expressou eloqüentemente desta forma: “Converti-me numa questão para mim”. A diferença é que o tópico deixou de ser a confissão dos erros passados para ser a participação solidária na construção de um futuro pessoal e coletivo, sem nunca ter a certeza de não repetir os erros cometidos no passado.

 

Latest articles

Trabalhos Relacionados