O que é uma teoria?

 

Teoria é uma palavra com significados totalmente diferentes na linguagem popular a na linguagem científica. Vamos examinar isso em detalhes?

“Aquele que ama a prática sem teoria é como o navegante que embarca em um navio sem um remo e uma bússola e nunca sabe aonde vai parar.” – Leonardo da Vinci

É importante distinguir teoria no sentido científico e no popular. No popular, chama-se de teoria (ou tiuria, em carioquês, rs) qualquer idéia para a qual não se tem evidências concretas. Geralmente a palavra teoria é usada popularmente com uma conotação negativa para se referir a especulação. Quando se diz teoria com uma conotação positiva, o conceito popular tem mais a ver com o conceito científico de hipótese. Contudo, na ciência, teoria é algo muito mais amplo.

Uma teoria científica é um conjunto de conhecimentos relacionados a um determinado problema de interesse, seja ele acadêmico ou prático. A estrutura de uma teoria é formada pelos seguintes elementos principais: problema, evidências, postulados, axiomas, perguntas, hipóteses, previsões, teses, regras e leis. Vamos ver em detalhes o que cada um deles significa.

Parêntese. Em tempos de #PostTruth, #AltFacts e #FakeNews, atenção aos termos técnicos é fundamental. Na ciência, toda discussão intelectualmente honesta começa apenas depois que se tem um conjunto de dados confiáveis, sobre os quais é possível tecer diferentes interpretações. E, para participar de uma discussão técnica, uma pessoa precisa de qualificação técnica para interpretar os dados. Infelizmente, hoje em dia, políticos despreparados ou simplesmente desonestos, quando se vêem incapazes de debater um tema técnico que gera comoção social, optam por desacreditar os dados ou os cientistas que os coletaram. Por isso vivemos crises geradas pela estupidez e a desinformação, como a desconfiança nas vacinas, que está fazendo doenças previamente erradicadas, como o sarampo, voltarem a ser um problema no Brasil e outros países.

Voltando ao tema. Tudo começa com um problema de interesse. Pode ser tanto um problema acadêmico, quanto um problema prático da sociedade. Ele, no fundo, é a grande curiosidade que você quer saciar. Pode ser, por exemplo, que você queira muito saber como as aves escolhem os alimentos que consomem.

As evidências (também conhecidas como dados) são os fatos concretos que observamos na natureza, sempre no contexto do problema de interesse. Por exemplo, podemos observar uma ave comendo os frutos de uma planta. A partir de uma observação como essa geralmente queremos tecer interpretações.

interacoes Maritaca comendo um fruto de jerivá em Ubatuba, SP. Foto por Marco Mello.

Podemos supor que essa ave seja primariamente frugívora. Ou seja, ela é especializada em se alimentar de frutos. Para testar uma suposição como essa, criada a partir de uma observação concreta feita à luz de um problema de interesse, seria necessário fazer deduções e previsões e correr atrás de mais evidências para, ao final, contrastar expectativa contra realidade. Por exemplo, poderíamos examinar o aparelho digestivo da ave, a fim de testar se sua morfologia condiz com uma dieta frugívora especializada.

Quando estamos interessados em fenômenos complexos, geralmente precisamos juntar várias observações e cruzá-las com uma série de interpretações diferentes, sucessivamente e sob várias condições, até podermos alcançar um entendimento satisfatório do fenômeno de interesse. Os dados são fundamentais em uma teoria, pois permitem que testemos se nossas ideias batem com a realidade, a fim de avaliarmos seu poder explicativo e preditivo.

Partindo para o lado mais abstrato, um postulado (também chamado de princípio ou axioma em algumas áreas) é parte da espinha dorsal de uma teoria no sentido estrito (veja explicação mais para frente). Trata-se de uma idéia central, bem ampla, no formato de  hipótese, que visa explicar um determinado fenômeno.

Pensando na ave frugívora do exemplo e outros animais, poderíamos proposta o seguinte: “animais, na busca e processamento de alimentos, otimizam a relação entre a energia gasta e a energia adquirida”. Esse é o postulado central da Teoria do Forrageio Ótimo. Um postulado não é testado diretamente. Os cientistas presumem que o postulado é verdadeiro e, assim, derivam perguntas e hipóteses a partir dele.

A partir das hipóteses derivam-se previsões, que são de fato testadas através de observação ou experimentação. Se a maioria das previsões nascidas a partir de um postulado acaba sendo rejeitada, ou o postulado é reformulado ou a teoria cai em desuso.

Por sua vez, uma pergunta é uma curiosidade relacionada a um determinado aspecto do tema de interesse. Vamos usar o exemplo mais amplo, que vale para animais em geral, e não apenas aves frugívoras: “se animais otimizam seu forrageio, então alimentos com uma melhor relação custo-benefício são preferidos?”. Na primeira parte da pergunta, presume-se que o postulado é verdadeiro e daí deriva-se uma curiosidade válida.

Uma hipótese é uma possível resposta para a pergunta proposta. Continuando com o mesmo exemplo, uma possível hipótese seria: “o alimento preferido de uma espécie de animal que otimiza seu forrageio deve ser aquele, dentre os que ela pode obter e processar, que tem a melhor relação custo-benefício”. Quanto mais complexo for o tema da pergunta, mais hipóteses alternativas podem ser levantadas a partir dela.

Uma previsão é um fato concreto que se espera observar, caso a hipótese em questão seja mesmo uma boa resposta à pergunta proposta. Por exemplo, caso a hipótese levantada no parágrafo anterior seja verdadeira, se estudarmos a dieta das aves frugívoras de uma dada localidade, devemos observar que as espécies de frutos mais frequentemente consumidas devem ser aquelas em que a diferença entre a energia em calorias gasta na busca e processamento e a energia obtida com seu consumo deve ser máxima, comparada à diferença observada para outros frutos.

As previsões são testadas através da comparação com as evidências, que são os fatos concretos registrados através de observação, experimentação ou simulação. Os fatos geram dados, que são imutáveis. As interpretações sobre eles (hipóteses) é que são provisórias. São as previsões que nos permitem operacionalizar as nossas ideias na ciência.

Quando uma hipótese é testada exaustivamente e a maioria das previsões derivadas dela se confirma (ou todas), passamos a dizer que hipótese virou uma tese, pois tem poder explicativo comprovado. A tese passa a ser aceita como uma resposta à pergunta proposta, até que se prove o contrário. Teses relativamente fracas podem até ser abandonadas por completo, depois de muitas previsões não serem confirmadas. Porém teses boas são apenas modificadas com o tempo, sendo acrescidas de condições contorno.

Caso uma tese continue se mantendo válida após vários testes, sendo capaz de explicar a maioria dos casos observados, ela passa a ser chamada de regra. Pode-se chamar também de regra um fato que se repete com muita freqüência (por exemplo, a Regra de Bergmann). Uma regra que praticamente não tem exceções pode vir a ser chamada de lei (por exemplo, a Lei da Relação Espécies-Área ou a Lei da Seleção Natural).

Leis são mais fáceis de serem descobertas nas ciências que lidam com sistemas mais elementares, como a Física e a Química, do que nas ciências que lidam com sistemas altamente complexos, como a Biologia e a Psicologia.

Contudo, é importante ressaltar que a diferença filosófica entre regra e lei é maior, porque a primeira seria um padrão repetido muitas vezes como fruto de processos desconhecidos, enquanto a segunda seria um padrão repetido muitas vezes como consequência lógica de uma teoria no sentido estrito.

Chegando a este ponto, cabe dizer que há uma diferença entre teoria no sentido estrito e teoria no sentido de arcabouço conceitual.

Por um lado, quando estamos falando de um conjunto de conhecimentos que relacionam-se entre si apenas por estarem ligados a um mesmo problema de interesse, contudo sem contarem com um espinha dorsal conceitual que lhes dê coerência, trata-se de um arcabouço.

Por outro lado, caso estejamos falando de um conjunto de conhecimentos, cuja coerência interna é mantida por uma espinha dorsal composta por postulados e parâmetros, isso sim é uma teoria no sentido estrito.

A teoria mais importante na biologia é a Teoria da Evolução, que serve de pano de fundo para todas as demais teorias. Ela é uma teoria tão ampla, que engloba até mesmo outras teorias, como a Teoria da Seleção Natural e a Teoria da Hereditariedade, formando um campo conceitual gigantesco, conhecido como Síntese Evolutiva.

Um de seus componentes, a Teoria da Seleção Natural, pode ser chamada de teoria no sentido estrito, pois atende todos os requisitos. Ela é composta de três postulados: (i) há variação na frequência de caracteres entre indivíduos de uma mesma população; (ii) algumas dessas variantes aumentam a aptidão do indivíduo; e (iii) algumas dessas variantes vantajosas são herdáveis). Como os três postulados anteriores são, no fundo, as premissas de um argumento dedutivo, caso eles sejam atendidos em uma população natural, as variantes vantajosas e herdáveis tendem a aumentar de frequência nas próximas gerações. Além disso, essa teoria contém uma constante (herdabilidade) e dois parâmetros livres (frequência e aptidão).

Na verdade, a Seleção Natural pode ser considerada uma das únicas leis conhecidas na Biologia. Isso porque sua estrutura lógica é a de um argumento dedutivo: ou seja, caso as três premissas mencionadas sejam atendidas, o resultado necessariamente é um processo de seleção natural na evolução do grupo de organismos estudado.

Dessa maneira, somente trabalhando dentro do contexto de uma teoria é possível entender o sentido dos fatos que observamos na natureza. Trabalhos descritivos, ou seja, sem hipóteses, também têm sua importância, porque ajudam a formar o arcabouço de evidências empíricas que podem ser usadas para examinar a veracidade das teorias. Porém, eles são importantes como um primeiro passo dentro de um processo de construção do conhecimento.

O que faz mesmo o conhecimento avançar é a simbiose entre os trabalhos teóricos e os trabalhos empíricos por eles orientados. Os primeiros tentam extrair um sentido maior dos fenômenos que observamos, fazendo generalizações e abstrações, enquanto os segundos visam testar essas idéias, contrastando previsões e evidências.

Quando os fatos contradizem as previsões freqüentemente, é hora de mudar as hipóteses ou o postulado e ajustar a teoria. Por isso, a teoria e a prática se retro-alimentam.

Teorias fracas, ou seja, mal-estruturadas logicamente ou cujas previsões nunca se confirmam, acabam sendo descartadas com o tempo. Já as teorias fortes, que conseguem explicar uma boa parte dos casos estudados, nunca morrem, apenas vão sendo aperfeiçoadas.

“A teoria sem evidência é vazia, a evidência sem teoria é cega” – Immanuel Kant

A principal diferença entre a ciência e outras formas de conhecimento é justamente esse contraste entre expectativa e realidade e o pingue-pongue intelectual entre teoria e prática.

Esse processo de criação, modificação, destruição e substituição de teorias é estudado há séculos pelos filósofos da ciência. Há diferentes visões sobre como ele funciona na prática. Para saber mais, leia os trabalhos de Bacon, Kant, Popper, Kuhn, Lakatos e Feyerabend, entre outros.

Por fim, vale a pena ressaltar que o argumento ridículo dos pseudocientistas contemporâneos, que dizem que a evolução não deve ser levada a sério porque “é apenas uma teoria”, mostra o quanto eles são ignorantes sobre ciência. Menosprezar a evolução porque ela é “apenas uma teoria” é uma atitude tão estúpida quanto pular de um prédio e acreditar que você vai sobreviver, porque a gravidade “é apenas uma teoria”.

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