O de Trinitate de Santo Agostinho – Alguns detalhes circunstanciais

 

O De Trinitate não é simplesmente uma obra, mas um verdadeiro monumento. E como todo monumento, possui uma história de sua construção, detalhes que, às vezes, estão ocultos aos olhos dos admiradores que contemplam o monumento terminado.

O presente trabalho pretende contar um pouco da história dessa grandiosa construção do pensamento teológico cristão. Não se trata de um comentário, nem mesmo de uma introdução; senão de uma atenção aos detalhes circunstanciais que, de alguma maneira, marcam sua composição, tais como os motivos, do que trata e de alguns episódios da vida de Agostinho no momento da redação.

O trabalho se divide, portanto, em três partes. A primeira trata do sentido da busca da Trindade. Agostinho herda o problema da eudaimonia da filosofia grega e o repensa à luz da perspectiva cristã. A segunda parte trata de uma breve contextualização da obra e do seu objetivo: demonstrar a Trindade considerando a singularidade das Pessoas divinas do Pai, Filho e Espírito Santo em regime de simultaneidade. A terceira parte trata da vida de Agostinho no momento da composição do De Trinitate.

1. O sentido da busca

1.1 A busca da beatitude

Para Agostinho, o homem faz filosofia porque deseja ser beatus (feliz)2 . “… nenhuma é a causa do homem filosofar, senão para ser feliz […] nenhuma é, pois, a causa do filosofar, senão o bem último: e não se poderia denominar escola (secta) filosófica aquela que não buscasse o bem supremo” (De ciu. Dei XIX, i,1).

Segundo Holte (1962, p. 12), Agostinho entendia que o problema do bem supremo (finis boni) – bem final, literalmente – e do mal supremo(3) (finis mali) – era o problema essencial da filosofia antiga: “Os filósofos têm disputado muito diversamente do fim dos bens e dos males, e têm se dedicado a encontrar isso que pode fazer o homem feliz” (De ciu. Dei XIX, i,1).

Na verdade, o pensamento agostiniano também possui este aspecto eudaimonístico, como afirma Gilson (1987, p. 1): “la philosophie fut immédiatement et demeura pour saint Augustin autre chose que la recherche spéculative d’une connaissance désintéressée de la nature; ce qui l’inquiète surtout, c’est le problème de sa destinée”. Ora, a raiz dessa inquietação é justamente o desejo da beatitude inerente a todo ser humano: “todos queremos ser felizes” (De beata uita II, 10)4 . É esta a expressão da vontade comum dos homens: “todos quereis ser felizes e não quereis ser miseráveis” (De trin. XIII, iii, 6)5 . Essa vontade permite um juízo teleológico de um bem procurado por si mesmo, que em todas as circunstâncias deve ser escolhido pelo homem. O papel da filosofia é o de auxiliar o homem na busca da beatitude, apontando em qual direção deve mover deu desejo para encontrar o bem. O problema é a diversidade e a variedade de opiniões acerca dele:

Sendo uma a vontade de todos em alcançar e reter a beatitude, é de admirar quão variadas e diversas são as vontades acerca desta mesma beatitude, não porque haja alguém que não a queira, mas porque nem todos a conhecem (De Trin. XIII, iv, 7).

Contudo, essa Babel de opiniões possui uma unidade fundamental: os filósofos, mesmo que disputassem sobre o bem supremo, pressupunham sempre sua existência(6) . Nem mesmo os céticos acadêmicos discordavam disso, pois, como diz Agostinho, quando o acadêmico Cícero buscou um princípio indubitável, encontrou o desejo da beatitude:

Será falso o princípio do qual não duvidou o acadêmico Cícero – e os acadêmicos duvidavam de tudo – quando, ao pretender partir de uma coisa certa, da qual ninguém duvidasse, começa seu Diálogo Hortensius tendo como exórdio de seu discurso: “Todos certamente queremos ser felizes”? Longe de nós afirmar que isso seja falso (De Trin. XIII, iv, 7).

Assim também com Agostinho, que faz da perspectiva eudaimonística o núcleo do seu pensamento e o sentido mesmo de seu filosofar(7) .

1.2 A busca de Deus

Mas a herança da idéia de beatitude da filosofia antiga é repensada por Agostinho à luz da revelação bíblico-cristã. O relato do contato com o Hortensius de Cícero, em Confissões, permite entender resumidamente o eudaimonismo do jovem Agostinho:

…e seguindo a ordem usada no ensino de tais estudos, cheguei a um livro de um certo Cícero, cuja linguagem quase todos admiravam, ainda que não o coração. Este livro contém uma exortação à filosofia e se chama Hortensius. Este livro mudou meus afetos e o modo de dirigir-me a ti, Senhor, minhas súplicas e fez com que minhas aspirações e desejos fossem outros. De repente, pareceu aos meus olhos desprezível toda vã esperança, e com incrível ardor em meu coração, suspirava pela imortalidade da sabedoria e comecei a levantar-me para voltar a ti (Conf. III, iv, 7).

Ao escrever as Confissões – por volta do ano 400 – Agostinho repensa a experiência da leitura de Hortensius(8) – que ocorreu por volta de 373 – à luz de sua vida cristã. A conversão à filosofia é entendida como conversão ao amor à sabedoria: “o amor à sabedoria tem um nome em grego, que se diz philosophia, ao qual me ascendiam aquelas páginas”(9) . E a sabedoria está em Deus, é o próprio Deus: “Como ardia, meu Deus, como ardia de desejos de revoar das coisas terrenas a ti, sem que eu soubesse o que tu obravas em mim! Porque em ti está a sabedoria (Job 12, 16)”10 .

O De beata uita – escrito em 386, após a conversão de Agostinho – apresenta o bem que nos concede a beatitude como sendo Deus, pois só ele pode satisfazer as condições do bem supremo: permanente, eterno, independente da sorte e não sujeito às vicissitudes da vida(11) . Deus é eterno e imutável; “logo, é feliz o que possui a Deus” (De beata uita II, 11).

Como observa Gilson (1987, p. 01), “est un fait capital pour l’intelligence de l’augustinisme, que la sagesse, objet de la philosophie, se soit toujours confondue pour lui avec la béatitude”. Isso significa que Agostinho deseja a verdade em vista da beatitude, mas jamais concebeu a beatitude como possível sem a verdade. A possessão da verdade é condição necessária à beatitude. Verdade e beatitude são duas faces de um mesmo problema, pois achando a verdade encontramos também a beatitude(12) . E se a beatitude coincide com a sabedoria, a sabedoria, por sua vez, coincide com a própria plenitude(13) . Daí que, buscar a sabedoria e a beatitude seja, no fundo, buscar a plenitude. Ser plenamente significa ser sempre feliz. Por isso, ao retomar o problema da beatitude em De Trinitate XIII, Agostinho trata da imortalidade.

Após afirmar que o homem feliz é aquele que vive como quer e não deseja o mal , Agostinho explica que nada deseja de mal (14) quem deseja a imortalidade, pois para viver feliz, é mister que o homem viva sempre (15) . E esclarece também que aquele que vive como quer, é aquele que sabe o que quer, isto é, aquele que sabe que quer viver bem (16) .

Porém, neste mundo, o homem é feliz na esperança (spe beatus est)17 , pois somente após suportar as misérias desta vida, no exercício das virtudes (18) , passará à beatitude verdadeira ou plenitude e conseguirá “o que agora de nenhuma maneira consegue, isto é, o homem viver como quer. Por isso, a fé em Deus é imprescindível nesta vida mortal, tão cheia de erros e tribulações” (De Trin. XIII, vii, 10)19 , pois se ser bem-aventurado na esperança significa esperar uma beatitude que ainda não se possui, aquele que é atribulado sem essa esperança é, no fundo, infeliz: “Mesmo que proceda com tolerância [aos males], não é deveras bem-aventurado, mas corajosamente miserável. Ora, alguém assim não vive como quer, mas apenas suporta os sofrimentos da vida que não quer” (De Trin. XIII, vii, 10). Na verdade, diz Agostinho: “quer o que pode, porque não pode o que quer”. E acrescenta: “Nisto consiste toda a beatitude ridícula e digna de compaixão dos soberbos mortais, que se vangloriam de viver como querem porque suportam com paciência o que não quereriam que lhes sucedesse”.

A fé promete o futuro imortal ao homem e, como conseqüência, a beatitude verdadeira.

Por isso, quando se diz no Evangelho que Deus deu o poder de se tornarem filhos de Deus aos que o receberam, Jesus explicou brevemente o que significa o receberam, ao dizer: Os que crêem em seu nome; e declara como se tornaram filhos de Deus, acrescentando: Os que não nasceram do sangue nem da vontade da carne nem da vontade do homem, mas de Deus. E a fim de que a fraqueza humana, que vemos em nós e sentimos, não leve a perder esta dignidade tão excelsa, juntou no mesmo lugar: e o Verbo se fez carne e habitou entre nós (Jo 1, 12-14), como que persuadindo o que parecia inacreditável (De Trin. XIII, ix, 12).

Se o desejo da beatitude é buscar a Deus, alcançá-Lo é a própria beatitude. “Mas nós o seguimos amando…” (De moribus Eccl. cath., XI, 18). O seguir amando sem alcançá-Lo significa seguir amando na fé.

Portanto, frente às discussões das escolas filosóficas acerca do bem, Agostinho aponta o Deus da revelação cristã como o bem supremo, a beatitude verdadeira. E se o Deus da fé de Agostinho é o Deus cristão, querer ser feliz e buscar a beatitude significa amar e buscar a Trindade, pois “a Trindade é um só e verdadeiro Deus” (De Trin. I, ii, 4).

1.3 A busca da Trindade

A doutrina trinitária de Agostinho expressa em seus primeiros diálogos era fortemente marcada pelo chamado “círculo de Milão” (20) . Todavia, “il cui contenuto dottrinale è molto più cristiano di quanto comunemente si pensi” (CIPRIANI, 1997, p. 312).

Em De beata uita, por exemplo, após explicar que a sabedoria é a plenitude, Agostinho adverte de que buscar a plenitude significa buscar a medida. A plenitude evita o excesso da alma, como a luxúria, a ambição, a soberba, a ganância, o medo, a tristeza e a crueldade (21) . A medida exclui o excesso e a falta: “É assim que na plenitude há medida. Logo, a medida da alma está na sabedoria”. (De beata uita IV, 32). É, portanto, a mesma coisa possuir a sabedoria, a beatitude, a plenitude e a medida; porque isso significa possuir a Deus:

Mas que sabedoria será digna desse nome, a não ser a Sabedoria de Deus? Pela divina autoridade sabemos que o Filho de Deus é a Sabedoria de Deus (1 Cor 1, 24); e o Filho de Deus, certamente, é Deus. É feliz, pois, quem possui a Deus, segundo estamos todos de acordo desde o primeiro dia deste banquete. Mas o que é a Sabedoria de Deus senão a Verdade? Com efeito, também está dito: Eu sou a Verdade (Jo 14, 6). Mas a verdade encerra uma Suprema Medida, da qual procede e à qual retorna inteiramente. E essa Suprema Medida é por si mesma, não por algo extrínseco. E sendo perfeita e suprema, é também verdadeira Medida. E tal como a Verdade procede da Medida, assim também a Medida se manifesta pela Verdade. Nunca houve Verdade sem Medida, nem Medida sem Verdade. Quem é o Filho de Deus? Já o dissemos e está escrito: a Verdade. Quem é aquele que não possui Pai, senão a Suprema Medida? Logo aquele que vem à Suprema Medida pela Verdade é feliz. Isto é possuir a Deus, isto é gozar de Deus (De beata uita IV, 33).

Além disso, o desejo de buscar a Deus tem sua origem no próprio Deus: “Mas certo aviso que nos admoesta a recordarmos de Deus, a buscá-lo, a desejá-lo sem indiferença, nos vem da fonte mesma da verdade. Aquele sol escondido irradia esta claridade em nossos olhos interiores” (De beata uita IV, 35) 22.

Segundo Cipriani (1997, p. 278), admonitio é a ação do Espírito Santo (23) . Desse modo, pode-se dizer que Agostinho nos apresenta a Trindade, pois o Filho de Deus é a verdade e a sabedoria, o Pai é a suprema medida, e o apelo interior que nos admoesta a buscar a Deus, o Espírito Santo. Essa dinâmica da busca de Deus é expressa por Agostinho de maneira célebre em Confissões: “Porque fizeste-nos para ti, o nosso coração está inquieto até que descanse em ti” (Conf. I, i, 1).

A busca do Deus cristão significa a busca da Trindade verdadeira. Por isso, Agostinho enfrenta o problema das inflexões acerca da Trindade e procura mostrar o Deus Uni Trino na obra intitulada De Trinitate. Nela o autor busca uma melhor compreensão do mistério trinitário cristão, isto é, mostrar que “é a Trindade suprema que nós buscamos, quando buscamos a Deus” (De Trin. XV, ii, 3).

2. Contexto e objetivo do De Trinitate

O De Trinitate se situa na busca de uma melhor compreensão do mistério trinitário cristão, como já dissemos. Agostinho enfrenta o problema de demonstrar a Trindade – isto é, o Deus Uni Trino -, considerando a singularidade das Pessoas divinas do Pai, Filho e Espírito Santo em regime de simultaneidade:

Portanto, com a ajuda de nosso Deus e Senhor, empreenderemos a tarefa que nos pedem, o quanto podemos, demonstraremos que a Trindade é um só e verdadeiro Deus, e quão retamente se diz, se crê e se entende que o Pai, o Filho e o Espírito Santo possuem uma só e mesma substância ou essência… (De Trin. I, ii, 4).

O problema fundamental é o de “pensar a unidade da Trindade ao mesmo tempo em que a singularidade das Pessoas divinas” (CARON, 2004, p. 25), motivo de perturbação para alguns. O mesmo autor afirma: “Alguns ficam perturbados quando ouvem falar que Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo, ou seja, a Trindade, não são três deuses, mas um só Deus”.

As perturbações são aumentadas pelas inflexões acerca do Deus Uni Trino (24) . Ainda que o Concílio de Nicéia (325) houvesse afirmado a consubstancialidade (homoousion), a co-naturalidade e a co-eternidade do Pai e do Filho, e o concílio de Constantinopla (381), estendido essa consubstancialidade ao Espírito Santo (CONGAR, 1991, p. 467), quatro principais heresias são novamente enfrentadas em De Trinitate:

1. o triteísmo, que privilegia cada uma das Pessoas divinas as compreendendo como centros independentes de atividade;
2. o modalismo, que considera a multiplicidade das pessoas divinas como três modos de manifestação de Deus, três modos da nossa inteligência se relacionar a Deus;
3. o sabelianismo, que retoma as teses do modalismo e afirma a indiferenciação das três Pessoas: só haveria o Pai; o Filho e o Espírito Santo seriam duas manifestações do Deus único;
4. o arianismo, que afirmava que o Filho havia sido engendrado pelo Pai. Somente o Pai é Deus, sendo o Filho uma criatura, a primeira das criaturas superior a todas as outras, mas criatura (25) ;

Segundo Booth (1978, p.184), outro problema era a doutrina das hipóstases do neoplatonismo (26) , pois os arianos se apropriaram de parte dessa doutrina e Agostinho via nisso a possibilidade de uma grande reação pagã contra as Igrejas cristãs (27) . Se os hereges se apropriavam e remodelavam o pensamento filosófico à disposição, o enfrentamento das inflexões acerca da Trindade pressupõe, no pensamento agostiniano, o diálogo entre fé e razão: “Que essa seja a Trindade, devemos demonstrar agora, não só para os que crêem apoiados na autoridade da Escritura divina, mas também para os homens dotados de entendimento, apoiados em argumentos de razão, isso se pudermos” (De Trin. XV, i, 1).

2.1 O diálogo entre fé e razão como pressuposto interpretativo

No início do livro I do De Trinitate, Agostinho afirma que: “… nosso escrito está vigilante contra as calúnias daqueles adversários que, desprezando os princípios da fé, se deixam enganar por um imaturo e perverso amor à razão” (De Trin. I, i, 1).

Chega a identificar três grupos de indivíduos que são levados pelo desprezo da fé, a modos incorretos de buscar a Deus: a) os que aplicam às coisas incorpóreas noções adquiridas sobre coisas corpóreas, atribuindo acidentes a Deus como se ele fosse um corpo; b) os que se apóiam na natureza da alma humana para pensar Deus, o pensando de maneira antropomórfica; c) os que elaboram opiniões sem se apoiar nas criaturas nem em Deus. Estes comportam, segundo Agostinho, duas atitudes intoleráveis no erro humano: a presunção e a obstinação no erro, fruto dela (28) . Ora, aquele que busca compreender algo acerca de Deus deve, primeiramente, reconhecer as dificuldades:

Começo agora a falar de coisas que não podem ser expressas nem cogitadas por homem algum, nem certamente por nós mesmos, pois nosso cogitar, quando cogitamos acerca de Deus Trindade, sente-se distanciado daquele em quem cogita, nem compreenda tal como ele é, senão que, tal como o apóstolo Paulo, o vê, segundo está escrito, em espelho e em enigma… (De Trin. V, i, 1)

Santo Agostinho afirma que o homem deve buscar a Deus pela inteligência, mas deve também saber que Ele supera todo pensamento humano: “…de quem sempre devemos cogitar e de quem não podemos cogitar dignamente”. Insuficiente é também a linguagem humana, pois ela não pode expressar o mistério inefável: “…a quem a todo tempo devemos render louvor o bendizendo, sem que haja palavra alguma capaz de dá-lo a conhecer”. É preciso, portanto, uma vontade consciente de suas limitações: “Tenho seguramente na lembrança não só minha vontade, mas também minha fraqueza” (29) .

A situação do homem é paradoxal: ele deve falar de Deus (30) , mas, a rigor, não pode: “Pois, como poderá o homem compreender com sua inteligência a Deus, se ainda não compreende sua inteligência, com a qual quer compreendê-lo?” (De Trin. V, 1, 2).

A consciência da limitação da inteligência e da linguagem humana diante do inefável mistério trinitário, se une à necessidade humana de não guardar silêncio acerca de Deus, pois o homem quer louvá-lo (31) e, no fundo, “o homem deve ser inteligente para buscar a Deus” (Conf. XV, ii, 2). Aqueles que se deixam enganar por um perverso amor à razão perscrutam o mistério de maneira presunçosa. Não entendem que Deus resiste aos soberbos. O que se busca, na investigação acerca de Deus é, paradoxalmente, compreender o incompreensível. E o modo de se buscar compreender o incompreensível é também paradoxal: “Procuremos como se houvéssemos de encontrar, e encontremos como quem ainda há de procurar” (Conf. IX, i, 1). Aquele que busca Deus deve saber que Ele é buscado para ser encontrado, e encontrado para ser buscado com mais ardor (32). Por isso, a investigação acerca de Deus deve ser piedosa: “Quem desse modo cogita acerca de Deus, embora não chegue a conhecer o que ele é, evita, sem embargo, como piedosa diligência e quanto lhe é possível, sentir dele o que ele não é” (Conf. V, 1, 2).

Não se trata aqui de uma teologia negativa ou, antes, “trata-se de uma teologia negativa distinta da oriental, pois Agostinho não exclui, mas cede lugar à tentativa de dizer algo do que Deus é” (SOUZA NETO, 1993, p. 42). O núcleo dessa teologia é a missão reveladora do Verbo encarnado (33) : é o Filho, consubstancial e coeterno ao Pai, que garante ao homem o conhecimento da Trindade. A exegese agostiniana sobre o duplo nome de Deus em Êxodo permite uma melhor compreensão.

Segundo Agostinho, há nas Escrituras dois nomes divinos (34) . O primeiro nome, nomen incommutabilitatis, revela a transcendência de Deus, revela que Ele é o verdadeiro Ser: “Eu sou o Eu sou… O que É mandou-me até vós” (Ex. 3, 14)  35. O segundo nome, nomen misericordiae (Sermones VII, 7) revela que Deus é também presença: “Eu sou o Deus de Abraão, e o Deus de Isaac, e o Deus de Jacó” (Ex 3, 15) 36. Se o primeiro nome mostra o abismo entre Deus e o homem, o segundo nome possibilita um reencontro entre ambos. Deus se chama a si mesmo por outro nome que o de Ser, de um nome acessível a todos, de um nome de misericórdia que suprime o abismo (37). É Deus mesmo quem suprime a distância e faz entender que Ele “não está longe de nós”, como diz o Apóstolo. E acrescenta: “Nele vivemos, nos movemos e somos” (De Trinitate XIV, xii, 16).

Portanto, a exegese agostiniana do duplo nome divino garante a um só tempo a compreensão da Transcendência e da Presença de Deus, e a construção de uma teologia que guarda a infinidade divina sem esquecer-se de sua presença atenta e misericordiosa na criação e na história. Assim, “um tratado De Trinitate não é outra coisa que um tratado Do Ser […] o problema do ser posto à luz das Escrituras” (CARON, 2004, p. 25) 38.

A partir disso, Agostinho empreende a tarefa de mostrar que Deus é Uni Trino, apresentando um programa a ser seguido:

Pelo que, com a ajuda do Senhor nosso Deus, atendendo os pedidos dos daqueles já referidos tentarei, quanto possível, dar razão de que a Trindade é um só e verdadeiro Deus, e quão retamente se diz, se crê e se entende que o Pai, o Filho e o Espírito Santo possuem uma só e mesma substância ou essência (De Trinitate I, ii, 4, grifos meus).

As palavras dicatur, credatur e intelligatur designam seu programa: recolher o que diz a Escritura, se assegurar de seu sentido pela verdade da fé, e buscar entender aquilo em que se crê.

Com efeito, enfrentar aqueles que desprezam os princípios da fé não significa opor fé e razão, senão, ao contrário, instaurar o diálogo entre ambos. Dizer, crer e entender designa o programa agostiniano de um intellectus fidei. Por isso, o apoio nas Escrituras e na tradição, mas também nas coisas criadas – já que por meio delas conhecemos quem as criou:

…tornou-se ele inteligível, desde a criação do mundo, através das criaturas (Rm 1, 20). Por isso, o livro da Sabedoria repreende aqueles que pelos bens visíveis não chegaram a conhecer aquele que é […] porque pela grandeza e formosura da criatura se pode visivelmente chegar ao conhecimento do seu Criador (Sb 13, 1-5) (De Trinitate XV, ii, 3).

Agostinho se inspira no conceito de participação (méthexis) usado por Platão para exprimir a relação entre o sensível e as Idéias (39), conservada na tradição neoplatônica, sobretudo quando Plotino trata do mundo como vestígio (íchnos) do Uno (40) , e reinterpretada agora como Idéias da Inteligência Divina (41) . Se tudo é por participação em Deus, pode-se mostrar a presença de Deus em toda criação (42) e “ascender por degraus, às coisas divinas e sublimes” (De Trinitate I, i, 2).

Dessa maneira, fé e razão se unem na busca: “A fé busca, o entendimento encontra; por isso diz o profeta: se não crerdes, não entendereis (Is 7, 9). Por outro lado, o entendimento prossegue buscando Aquele que a fé encontrou…” (De Trin. XV, ii, 2).

A fé busca para que o entendimento encontre. Do ponto de vista inquiridor, a necessidade da fé se dá pelo fato dela colocar o que deve ser buscado pela razão. A razão, entregue a si mesma, corre o risco de paralisar-se diante das inúmeras possibilidades. Pela fé a razão sabe, ao menos, o que procura. Isso significa que em Agostinho, “a fé não é fiadora de asserções dogmáticas que pretendem encerrar problemas, mas, antes, fiadora da busca incessante” (NOVAES, 1993, p. 44). Em outras palavras, a fé garante que a procura não seja errática: “Se não crerdes, não entendereis” (Is 7, 9).

Assim, “é a certeza da fé que, de certa maneira, está na origem do conhecimento” (De Trin.., IX, i, 1), pois “ninguém pode amar algo totalmente desconhecido” (De Trin. X, i, 1), só buscando o que de alguma maneira já se conhece. Por isso, a busca do Deus Uni Trino é apoiada pela fé.

Contudo, caminhamos pela fé, não pela visão (2Cor 5, 7), ainda não vemos a Deus, como disse o mesmo Apóstolo, face a face (1Cor 13, 12); se não o amarmos agora, nunca o veremos. Mas quem ama o que ignora? Algo pode ser conhecido e não ser amado; mas é possível ser amado o que é desconhecido? […] Ninguém é capaz de amar a Deus, antes de o conhecer” (De Trin. VIII, iv, 6).

“Entretanto, deve-se cuidar de que a alma ao crer no que não vê, não imagine coisas irreais, e dê um falso objeto à sua esperança e a seu amor” (De Trin. VIII, iv, 6). Agostinho adverte aqui para o cuidado de não se recorrer a fictitio, isto é, a fé deve cumprir a condição de não ser falsa. É, portanto, a fé instruída pela autoridade (Escrituras) que coloca o que deve ser buscado pela razão. Ela não é uma proibição à razão de tentar alcançar algo que nunca alcançará, mas a garantia de uma busca aprofundante – e não errática – de algo que ultrapassa a própria razão, mas não a nega. E assim, permitir a razão penetrar, dentro de seus limites, o mistério insondável.

2.2 A data de composição do De Trinitate

Ao abrir o De Trinitate, o leitor depara com uma carta de Agostinho enviada ao bispo Aurélio, datada de 416, em que é relatado o surpreendente episódio do furto de seus livros: “Cessei minha obra ao comprovar que haviam sido furtados meus livros antes de finalizá-los e retratá-los, como era minha disposição” (Epístola CLXXIV). Conforme Retractationes, o furto aconteceu após o término do esboço dos livros Iº ao XIIº: “Mas sem completar ainda o duodécimo livro […] me foram furtados…” (Retract. II, xv, 1).

Agostinho soube do furto porque a obra incompleta chegou às suas mãos (43) . Conta também que havia desistido de continuá-la, preferindo relatar o ocorrido em algum opúsculo posterior; só não o fez, por causa da insistência dos pedidos dos irmãos (fratibus) 44 .

A partir desse episódio, estabelecer de maneira precisa o momento da composição do De Trinitate, depois de revisado por Agostinho, é tarefa difícil. As opiniões entre as edições que utilizamos divergem. Segundo a edição bilíngüe publicada pela Biblioteca de Autores Cristianos (BAC), a obra é composta em 400 e terminada em 416 (45) ; Já a edição bilíngüe da Bibliothéque Augustinienne (BA) sugere a composição de 398 a 426 (46) , enquanto a edição brasileira da Paulus sugere o início em 399 e o término em 419 (47).

Também é o caso dos comentadores: Trapé (apud TEIXEIRA, 2003, p. 30), propõe o início da redação dos livros I-XII por volta de 399 e o término de toda a obra (I-XV) em aproximadamente 420-426; Caron (2004, p. 25) coincide com a data proposta pela BA; Brown (2005, p. 226) sugere o início em 399, a publicação das obras furtadas em 414 e a publicação corrigida por Agostinho, em 419; Mandouze (1968, p. 157) propõe o início em 404 e o término entre 420/426.

O certo é que a obra exigiu vários anos: “Jovem dei início a elaboração destes meus livros acerca da Trindade, que é Deus sumo e verdadeiro, e velho os edito” (Epistola CLXXIV).

A Carta CLXIX, datada de 415, permite entrever o De Trinitate ainda sendo redigido por Agostinho: “Neste momento, nem sequer quero continuar os livros acerca da Trindade que há tempo trago nas mãos e que ainda não concluí (Epistola CLXIX, i, 1). E a Carta CLXXIV é explícita sobre uma primeira edição antes de 416 e a publicação corrigida, completada e editada, feita pelo próprio Agostinho, após essa data.

O fato é que, se a redação se estende até 419, 420 ou 426 – conforme alguns comentadores -, poderíamos supor a publicação de edições do De Trinitate revisadas pelo próprio Agostinho (48) . A data do início da redação (399) parece mais segura, pois coincidiria com o livro XIII das Confissões, em que Agostinho acena a uma explicação psicológica da Trindade (49) .

Ainda que não haja um consenso acerca da data precisa da redação e publicação do De Trinitate, partindo das posições relacionadas acima e do fato de que a obra foi completada em dois momentos (livros I-XII e XII-XV), adotaremos o seguinte: o início da redação teria ocorrido em 399/400; a publicação dos livros furtados em 414; publicações corrigidas e completadas por Agostinho, a partir de 416 até 426. Portanto, podemos dizer que o De Trinitate foi escrito entre os anos de 399 a 426.

3. A vida de Agostinho no período de composição do De Trinitate

Outro episódio surpreendente na vida de Agostinho é narrado por seu biógrafo e amigo Possídio:

Nesse tempo, havia um funcionário público desses que chamam agentes de negócios, estabelecido em Hipona, bom cristão e temeroso de Deus, a quem havia chegado a boa fama e a doutrina de Agostinho, vindo-lhe o desejo de conhecê-lo e vê-lo, prometendo abandonar todos os desejos mundanos, se alguma vez tivesse a felicidade de ouvir de seus lábios a palavra de Deus (uita Augustini III).

Agostinho decide ir até Hipona para converter o “agente de negócio” e trazê-lo ao seu mosteiro em Tagaste, pois em Hipona não tinha o que temer:

Eu tinha tanto medo do ofício de bispo que, tão logo minha reputação veio a ter algum peso entre os servos de Deus, recusava-me a ir a qualquer lugar em que soubesse não haver bispo. Precavia-me contra isto: fazia todo o possível para buscar a salvação numa posição humilde, em vez de correr o perigo dos altos cargos. Mas, como afirmei, um escravo não pode contradizer seu Senhor. Cheguei a esta cidade para visitar um amigo a quem julgava poder conquistar para Deus, a fim de que ele pudesse viver conosco no mosteiro. Sentia-me seguro, pois já havia um bispo no local. (Sermo 335, 2).

Entretanto, Possídio conta que Agostinho foi surpreendido:

“Então regia a igreja católica de Hipona o santo bispo Valério que, movido pela necessidade de sua igreja, falou e exortou aos fiéis para a provisão e ordenação de um sacerdote idôneo para a cidade do povo de Deus; os católicos, que já conheciam o gênero de vida e a doutrina de Santo Agostinho, arrastaram-lhe, porque se achava em meio à multidão, sem prever o que podia acontecer – pois, como nos dizia ele mesmo quando laico, evitava as igrejas que não tinham bispo -, o apressaram e, como ocorre em tais casos, o apresentaram a Valério para que o ordenasse, segundo exigiam o clamor unânime e os desejos de todos, embora ele chorasse copiosamente” (uita Augustini IV).

Agostinho confirma o abrupto do ocorrido: “Fui agarrado. Ordenaram-me presbítero…” (Sermo 335, 2).

Segundo Brown (2005, p. 171), “esse era um tipo de incidente comum no baixo Império Romano”. Quanto às necessidades da igreja de Valério, ele era “grego de origem e pouco perito em língua e literatura latinas, e era pouco apto para este fim” (uita Augustini V). Sua igreja “precisava desesperadamente de uma voz”, pois além da igreja rival donatista – que gozava do reconhecimento das autoridades locais – os maniqueístas haviam se instalado na periferia da congregação, tendo Fortunato como presbítero, a quem Agostinho conhecera em Cartago (BROWN, 2005, p. 172).

Agostinho foi ordenado sacerdote em janeiro de 391, “fundou um mosteiro ao lado da igreja…” (uita Augustini V), conhecido como o mosteiro do jardim. Além disso, fazia pregações – o que infringia um costume tradicional das Igrejas da África – pois somente o bispo devia expor às Escrituras (50) . Também derrotou, num debate público, o maniqueísta Fortunato (51).

Em 393, participou do Sínodo plenário dos bispos da África, “realizado em Hipona, quebrando a tradição de que padres não participavam desses eventos (NUNES COSTA, 1999, p. 126) 52 . Temeroso de perder Agostinho para outra diocese, Valério escreve ao Primaz de Cartago, alegando que se encontrava em avançada idade, rogando para que ele fosse nomeado seu bispo auxiliar. Em junho de 395, é sagrado bispo coadjutor. Em 396, com a morte de Valério, Agostinho se torna bispo titular de Hipona (53).

Hipona, chamada de Hippo Regius pelos latinos, era uma comunidade de algumas famílias abastadas, homens de negócios e patrícios. Conforme Hamman (1989, p. 155): “A grande massa, porém, reunia marinheiros e pescadores, soldados e comerciantes, artesãos e funcionários, ascetas e religiosos”. A maioria dos fiéis da comunidade de Agostinho era composta de analfabetos e também de muitos interesseiros: mudavam de igreja conforme alguma vantagem que vislumbrassem. Como os donatistas eram maioria e sua relação com os católicos era de rivalidade (54) , ameaçavam seguir a igreja que mais lhes agradasse.

Em 399, data do início da redação do De Trinitate, Agostinho já exercia todas as funções de bispo: atividades pastorais, proteger a comunidade com sua influência política, visitar prisioneiros, intervir em execuções e, também, servir de árbitro em processos judiciais. Segundo Trapè (2002), as atividades pastorais visavam:

1. Igreja de Hipona: a pregação (duas vezes por semana – sábado e domingo – às vezes por mais dias consecutivos ou ainda duas vezes ao dia), a audientia episcopalis, que ocupava também o dia todo, o cuidado com os pobres e os órfãos, a formação do clero, a organização dos mosteiros masculinos e femininos; a administração dos bens eclesiásticos de que não gostava, mas tolerava, a visita aos enfermos;
2. Igreja Africana: participação nos concílios programados anualmente, freqüentes viagens para responder ao convite dos colegas ou para atender às necessidades eclesiásticas;
3. Igreja Universal: controvérsias dogmáticas, resposta a muitas interpelações, livros e livros sobre as mais variadas questões que lhe eram propostas e impostas.

As funções diversas faziam com que Agostinho chamasse sua vida de “fardo episcopal” (MANDOUZE, 1968, p. 143). Mas era da rotina da arbitragem de processos judiciais “de que ele se ressentia mais amargamente” (BROWN, 2005, p. 237). É que esses processos mantinham-no ocupado toda manhã e, por vezes, tardes inteiras. Além disso, freqüentemente tratava-se de questões pouco relevantes:

O bispo exerce a justiça também em questões profanas: heranças, tutelas, direito à sucessão, propriedade e demarcação. Questões embrulhadas muitas vezes à toa, em que se enfrentam as paixões, especialmente quando se trata de testamento ou herança: raramente dois irmãos estão de acordo quanto às propriedades. Mas freqüentemente trata-se de questões sem importância: muros de separação entre duas propriedades, uma janela a ser aberta ou uma construção muito alta, que priva o vizinho de luz (HAMMAN, 1989, p. 216).

Nos dias comuns, em que não concedia audiência, Agostinho era assediado por visitantes: pedintes, hóspedes, pobres etc. “É considerado como um homem que tem resposta para qualquer necessidade, que mantém suas portas sempre abertas e que permite a qualquer um que vá encontrá-lo e incomodá-lo” (HAMMAN, 1989, p. 217). Isso sem contar o cuidado com o mosteiro, o atendimento das correspondências que lhe chegavam de toda parte, e os pedidos para que escrevesse ou terminasse suas obras. E há, ainda, as viagens, as pregações fora de Hipona, as conferências e concílios, sobretudo, durante as controvérsias com o donatismo.

O admirável é que, apesar disso, Agostinho, “no período de 395 a 410 escreveu cerca de 33 livros e cartas extensas” (BROWN, 2005 p. 344). Como podia produzir tanto? É que sua rotina se estendia noite adentro, como observa Mandouze (1968) p. 156:

…la série de ce qu’Augustin apelle des negotia, des occupationes ou des necessitates rendrait inexplicable l’élaboration des grandes oeuvres augustiniennes s’il n’y avait les ressources exténuantes des lucubrationes au cours de longues nuits où le temps est moins morcelé.

Ao anoitecer, após a ceia com os irmãos, Agostinho retoma a redação de seus livros, corrige algum capítulo, recoloca questões etc.

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