O CORPO NA HISTÓRIA 

 

Apresentado como resultado parcial de uma linha de estudo desenvolvida há vários anos, o mais recente livro de José Carlos Rodrigues – O Corpo na História – dá seqüência a outras importantes publicações como Tabu do Corpo e Tabu da Morte. O objeto do autor é evidenciar os movimentos que constituíram a subjetividade contemporânea, elaborando uma história da sensibilidade da cultura ocidental. Para dar liberdade às suas inquietações, assume fugir aos rigores que buscam delimitar disciplinas científicas, como a História e a Antropologia. A necessidade de pensar criativamente a respeito de um problema não obedece às amarras dos pontos de vista e fronteiras disciplinares.

A história da sensibilidade se diferencia da história das mentalidades. O que os homens pensam, suas idéias, nem sempre coincidem com o que sentem, apesar de haver uma interdependência entre ambos. Nossas formas de sentir, aparentemente naturais, têm uma história. Os detalhes e variações que configuraram o passado ainda permanecem presentes. O autor identifica a Idade Média como a época em que ressaltam-se maiores contrastes e antagonismos nos sensos estéticos. A Idade Média constitui “o outro específico da civilização moderna e contemporânea” (p. 17). Justamente por isso, ele escolhe esse período como ponto referencial, pois o contraste é capaz de revelar mais claramente o que se busca renegar. Trazer à lembrança a Idade Média para compreender a subjetividade contemporânea é buscar decifrar o “que somos à luz do que pensamos que não somos mais” (p. 27).

Talvez possamos tentar entender a constituição do processo civilizador no ocidente como conformação histórica de modos de lidar ou mesmo recalcar experiências vividas de forma mais íntegra na sociedade medieval. Como diz José Carlos Rodrigues, é necessário intrepidez e destemor para tratar temas – lixo, fezes, sangue e morte – tão avessos à sensibilidade burguesa.

O distanciamento que hoje conhecemos entre, por um lado, uma cultura de elite e, por outro, uma cultura “baixa” não existia naquele período. Na Idade Média e ainda no Renascimento, tanto os seres, quanto as coisas, eram percebidos como uma continuidade. A proximidade ou vizinhança, por exemplo, indicavam afinidades entres animais, plantas, homem, céu, terra, mar etc. A cosmovisão era inteiramente teocêntrica, como esclarece o autor no capítulo 2. É no século XVII que emerge uma nova forma de conhecimento que dará sentido ao mundo e irá conformar não somente a racionalidade, mas também posturas, representações e sensibilidade do homem ocidental moderno. Nesse século, caracteriza-se uma ruptura indicada por outra maneira de produzir e conceber o saber no mundo ocidental. O saber, a partir de então, separa-se dos seres; distancia-se, dissocia e fragmenta, viabilizando o método analítico. Modifica-se toda forma de relação do pensamento com a cultura, que passa a ancorar-se em oposições: subjetivo x objetivo; natureza x cultura; sociedade x indivíduo; natural x sobrenatural.

A base dessa ruptura é a cisão que divide o homem em corpo e alma, questão trabalhada no capítulo 3 e que traz um ponto polêmico: o autor argumenta que o século XVII é o período que inaugura a divisão entre corpo e alma. Porém, será que a transformação que ocorre nesse período não aprofunda processos que têm uma origem mais remota? A cisão entre corpo e alma não é algo já manifesto em tempos mais antigos?

Se há elementos de profunda descontinuidade entre a Idade Média e a Idade Moderna, há também elementos de continuidade. Se o passado, mesmo renegado, ainda se manifesta presente, é provável que existam também aspectos do presente já sinalizados no passado. Buscando estabelecer diálogo a esse respeito, lembramos a história das formas de intervenção social nos processos epidêmicos. Foi a partir do século XVII e principalmente XVIII, que foram construídas formas mais elaboradas de controle das epidemias: análise dos lugares de acúmulo de lixo, da circulação da água e do ar. Refinaram-se os sentidos – nessa época especialmente o olfato -, aprimoraram-se tecnologias. Todavia, essas práticas não deixaram de ser uma variação de procedimentos de exclusão direcionados aos loucos e leprosos e de isolamento dos doentes de peste – esquema da quarentena -, instituídos no período medieval (Foucault, 1990).

O autor destaca como o mundo medieval tinha uma convivência mais estreita com os mortos e outros elementos, a que nossa sensibilidade atual tem horror e repugnância. O corpo morto não era um dejeto; vivos e mortos não se separavam, ao contrário, “se entrelaçavam em contínua e constante vizinhança” (p. 61). Seriam, entretanto, essas atitudes de proximidade entre vivos e mortos vividas sem conflito? Mesmo vivendo as experiências com mais integridade, não existiam, também naquela época, fortes expressões de medo e angústia diante da ameaça da morte?

O processo civilizador do ocidente, especialmente a partir da ruptura que ocorre no século XVII, talvez tenha sido uma forma cultural específica de tratar situações que expressam conflitos insolúveis, constitutivos da condição humana. A dificuldade de lidar com o paradoxo produziu, no desenvolvimento da cultura, a fragmentação da realidade em oposições, optando-se por privilegiar valores como ordem, limpeza, proteção e controle (Czeresnia, 1997).

Ao recuperarem-se a história e imagens dos tempos medievais, podemos entrar em contato com dimensões que foram negadas e interrogar a pertinência das opções culturais do ocidente. Esse é um dos pontos mais bem desenvolvidos em O Corpo na História. A constituição da individualidade implicou mudanças radicais nos modos de pensar e sentir. O refinamento dos costumes vinculou-se ao desenvolvimento de lógicas e técnicas de proteção do corpo. As fronteiras corporais tenderam a tornar-se progressivamente mais demarcadas e os corpos mais defendidos.

A representação da superfície corporal e dos seus orifícios como extremamente vulneráveis produziu o afastamento e a dessensibilização em relação ao outro. O paroxismo da tendência ao isolamento e assepsia é expresso com força na imagem do menino-bolha utilizada por Baudrillard em A Transparência do Mal. José Carlos Rodrigues interroga: a vida mantida através da desinfecção absoluta do ambiente, impedindo qualquer contato direto com outro ser, “já não seria a morte” (p. 181)?

O corpo individual, limpo, subjetivado e objetivado, afasta-se do cosmos. O autor finaliza seu belo livro convidando à busca do resgate da incontornável dimensão trágica do corpo. Um corpo que possa absorver as ameaças e delas extrair o alimento de sua renovação. Um corpo que “não admite maniqueísmos. Não comete os pecados filosóficos de imaginar que o mal seja extirpável e que a felicidade esteja alhures. Reconhece que as melhores coisas da vida (sobretudo a própria) contêm inexoravelmente um risco de morte. Corpo fluido, que se desfaz ao mesmo tempo em que a vida o constitui. E que se constitui ao mesmo tempo em que a vida o desfaz” (p. 192).

 

Dina Czeresnia
Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde
Escola Nacional de Saúde Pública
Fundação Oswaldo Cruz

 

FOUCAULT, M., 1990. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal.

CZERESNIA, D., 1997. Do Contágio à Transmissão. Ciência e Cultura na Gênese do Conhecimento Epidemiológico. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ.

 

 

BIBLIOTECA VIRTUAL DE DESASTRES. Organización Panamericana de Salud. CD-ROM. 1999. Geneva: OMS.

 

Os desastres sempre acompanharam a história das civilizações humanas, particularmente os desastres naturais, como terremotos, furacões, vulcões, enchentes e secas. A capacidade de prevê-los, controlá-los ou mitigar seus efeitos fez parte do simbolismo de várias culturas ao longo da história humana. A modernidade busca realizar agora este sonho, pelo menos parcialmente, através da produção científica de vários campos do conhecimento científico dedicados a esse tema.

Contraditoriamente, o desenvolvimento econômico, científico e tecnológico é também responsável pelo surgimento de outros tipos de desastres, de origem antropocêntrica, também conhecidos como desastres ambientais tecnológicos. Com o surgimento das grandes cidades, das fábricas de alto risco, como as usinas químicas e nucleares, e as diversas formas de poluição provocadas pela moderna sociedade industrial de consumo, vivemos cercados de desastres em nosso cotidiano: explosões, incêndios, contaminações de rios, baías e mares, fazem parte dos noticiários nacionais e internacionais.

Com a ampliação das formas de produção, ocupação do solo e poluição ambiental, hoje em dia é quase impossível definirmos um local ou ecossistema no planeta totalmente selvagem, e que não sofra, de alguma forma, alguma intervenção de origem humana. Isso fica especialmente claro nos chamados riscos ambientais globais, como o efeito estufa e a redução da camada de ozônio. Em ambos os casos, vários poluentes de diferentes regiões contribuem para afetar ecossistemas que podem levar a mudanças globais de temperatura ou do nível de radiação no planeta.

A amplitude da intervenção humana no planeta é também válida para os desastres naturais clássicos. Por exemplo, as barragens construídas para usinas hidrelétricas podem afetar as conseqüências de regimes intensos de chuvas, agravando as enchentes a jusante da represa (Sevá Filho, 1993). Da mesma forma, as enchentes e os desabamentos nas encostas de morros das cidades do Rio de Janeiro ou de Salvador não são propriamente eventos naturais.

Essa quase inevitável junção de energias naturais e ações humanas nos desastres tem feito com que cada vez mais autores dedicados ao tema trabalhem os desastres naturais, ambientais e tecnológicos de forma integrada, dentro de um mesmo marco conceitual (Funtowicz & Ravetz, 1993).

Por exemplo, a teoria da vulnerabilidade vem sendo desenvolvida por autores que analisam as diferentes conseqüências de desastres semelhantes em diferentes regiões e grupos populacionais, inicialmente a partir dos desastres naturais (Theys, 1987; Winchester, 1992; Horlick-Jones, 1993; Blaikie et al., 1996). Esses estudos revelam como os terremotos e furacões matam muito mais nos países periféricos da Ásia do que nos países europeus ou nos EUA.

O mesmo ocorre com os desastres industriais. Estudos revelam como os países periféricos, apesar do menor número de indústrias instaladas, têm muito mais mortos nos acidentes químicos ampliados do que os países industrializados (Porto & Freitas, 1996). Não foi à toa que o maior acidente industrial da história numa instalação fixa, em termos de número de mortos imediatos, tivesse ocorrido na cidade de Bhopal, na Índia, em 1984, ocasionando a morte imediata de mais de 2.500 pessoas, moradoras de um bairro pobre junto da fábrica de agrotóxicos da multinacional americana Union Carbide.

Para colaborar com o fortalecimento das ações de prevenção, controle e mitigação dos desastres, a OPAS/OMS, por meio de um projeto em cooperação com o Centro Regional de Informação de Desastres (CRID) e o Decênio Internacional para a Redução dos Desastres Naturais (DIRDN), disponibilizou um site intitulado Biblioteca Virtual de Desastres, que pode ser encontrado na Internet em duas línguas:

• inglês (www.paho.org/english/ped/pedhome.htm)

• espanhol (www.paho.org/spanish/ped/pedhome. htm).

Segundo a OPAS, trata-se da mais completa coleção de informações técnicas sobre emergências e desastres, com mais de 250 publicações em formato HTML e PDF. Além da Internet, a OPAS também fornece um CD-ROM com as mesmas informações.

Os documentos estão classificados em 69 temas, que cobrem um amplo espectro de assuntos relacionados aos acidentes tanto naturais, como furacões, enchentes e terremotos, quanto de origem antropocêntrica, como os acidentes químicos e hospitalares. A abordagem feita pelos artigos é bastante abrangente, indo de questões mais ligadas ao setor saúde, como o atendimento emergencial e a administração hospitalar, até questões mais técnicas relacionadas aos campos da engenharia e da avaliação ambiental, ou ainda até os aspectos sociais e humanos relativos aos desastres, como os efeitos psicológicos. A biblioteca virtual possui uma ênfase mais operacional, visando dar suporte às ações em países de menor infra-estrutura institucional, caso da maioria dos países latino-americanos. Isso explica uma certa limitação de uma literatura mais crítica do ponto de vista epistemológico ou social da questão dos desastres.

Apesar de o Brasil não possuir alguns dos desastres naturais que afligem outros países de nosso continente, como terremotos e furacões, a existência de problemas como as enchentes, desabamentos, seca e uma forte presença da indústria química e petroquímica, além das usinas nucleares na cidade de Angra dos Reis, aponta-se para a importância deste tema.

 

Marcelo Firpo de Souza Porto
Centro de Estudos em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana
Escola Nacional de Saúde Pública
Fundação Oswaldo Cruz

 

BLAIKIE, P.; CANNON, T.; DAVIS, I. & WISNER, B., 1996. Vulnerabilidad: el Entorno Social, Político y Económico de los Desastres. Colombia: Tercer Mundo Editores.

FUNTOWICZ, S. & RAVETZ, J., 1993. A framework for the analysis of emergencies. In: Workshop on Emergency Management (A. Amendola & B. de Marchi, eds.), pp. 33-42, Ispra: Joint Research Centre/Institute for Systems Engineering and Informatics.

HORLICK-JONES, T., 1993. Patterns of risk and patterns of vulnerability. In: Workshop on Emergency Management (A. Amendola & B. de Marchi, eds), pp. 113-125, Ispra: Joint Research Centre.

PORTO, M. F. S. & FREITAS, C. M., 1996. Major chemical accidents in industrializing countries: the socio-political amplification of risk. Risk Analysis, 16:19-29.

SEVÁ FILHO, A. O., 1993. Crise Ambiental, Condições de Vida e Lutas Sociais: Dilemas da Passagem dos Séculos XX-XXI. Cadernos da ABRA, no 1, vol. 6 – Série Debate Campinas: Associação Brasileira de Reforma Agrária.

THEYS, J., 1987. La sociéte vulnérable. In: La Société Vulnérable – Évaluer et Maîtriser les Risques (J-L. Fabiani & J. Theys, eds.), pp. 03-35, Paris: Presses de L’École Normale Supérieure.

WINCHESTER, P., 1992. Power, Choice and Vulnerability. London: James&James.

 

 

A EVOLUÇÃO DA DOENÇA DE CHAGAS NO ESTADO DE SÃO PAULO. Luiz Jacintho da Silva. São Paulo: Editora HUCITEC, 1999. 158 pp.

ISBN 852710485-7

 

A tese de doutorado de Luiz Jacintho, defendida em 1981, tem sido leitura tão obrigatória, quanto difícil, para todos os interessados na epidemiologia da doença de Chagas. Circulando nos meios acadêmicos em um sem-número de cópias xerox, a motivação para a leitura do texto completo foi aumentada pela publicação, em 1986, nos Cadernos de Saúde Pública, do artigo-síntese Desbravamento, Agricultura e Doença: A Doença de Chagas no Estado de São Paulo. Já se vão quatorze anos desde aquela publicação, e opta o autor por editar agora a obra original, sem atualização. Feliz opção. O livro testemunha o pioneirismo da abordagem à época e nos faz sentir falta de outros trabalhos que, explorando as mesmas opções metodológicas, aprofundem o conhecimento do processo saúde-doença em sua dimensão histórica. São ainda muito poucos os epidemiologistas que se atrevem a trilhar esse difícil caminho.

A apresentação, de José da Rocha Carvalheiro, orientador da tese, sintetiza o momento e as motivações da pesquisa: a limitação da Teoria dos Focos Naturais, de Pavlovsky, para a compreensão da distribuição da endemia chagásica no Estado de São Paulo; a necessidade de entender o espaço geográfico como um espaço historicamente construído pelo homem; a relação da distribuição das doenças com o processo produtivo e as formas de ocupação do espaço.

O maior mérito do livro é ser um estudo de caso. E o momento de sua edição não poderia ser mais adequado. Comemoramos, no ano passado, os noventa anos da descrição original da doença, por Carlos Chagas. Estamos prestes a comemorar a erradicação do Triatoma infestans. Além das justificadas comemorações, é importante reler com atenção esse livro.

Em trabalho em curso, do qual participamos, no Sudeste do Piauí, onde o principal vetor da doença de Chagas não é, e aparentemente nunca foi, o T. infestans, podemos observar evidências de domiciliação do Triatoma brasiliensis e de persistência da transmissão. Lá, como na situação de São Paulo descrita por Luiz Jacintho, a simples equação: pobreza-más condições de vida-habitação inadequada-doença da Chagas não é suficiente para explicar o que estamos encontrando. É preciso não esquecer, em meio à euforia da erradicação do principal vetor no País, que a infecção chagásica, presente nas Américas há muito mais de quinhentos anos, ainda permanece como ameaça, em muitas áreas, merecendo a atenção de pesquisadores e dos responsáveis pelo controle.

A organização do livro marca a opção do autor pela história que tem como referência um espaço geográfico criado e transformado pelo homem.

Na Introdução é apontada a limitação da maioria dos trabalhos sobre a epidemiologia da doença de Chagas que, apesar de freqüentemente considerarem os fatores sociais como determinantes da endemia, não chegam a mostrar as articulações destes com a situação da doença dentro de um contexto histórico. Em seguida, é apresentada a proposta do autor, de utilização da teoria dos focos naturais, ampliando o conceito de paisagem natural ou modificando-o para o de espaço geográfico, que define um sistema de relações determinadas pelo meio físico e pela sociedade humana, que o organiza. O período analisado é a década de 50, escolhido tanto pelas transformações econômicas e demográficas, como por marcar o início das atividades de campanha contra a doença e proporcionar fontes adequadas, em número e qualidade, para a análise proposta. Sentimos falta, na discussão e na bibliografia, da geografia de Milton Santos e dos historiadores. Mas, há quase vinte anos, o primeiro mal começava a ser conhecido pelos epidemiologistas e historiadores. Já era audácia suficiente recuperar, atualizando, a geografia médica.

Nos três capítulos: A Caracterização do Espaço; A Organização do Espaço; A Desarticulação do Espaço, o estilo do autor, ao mesmo tempo sintético e claro, torna a leitura fácil, apesar da quantidade e diversidade das informações trabalhadas.

No primeiro capítulo, o espaço é caracterizado com a descrição clássica de um foco natural. A possibilidade de ocorrência da endemia é vista em virtude da presença de seu principal vetor. Assim, a presença de Triatoma infestans infectado e domiciliado caracteriza a zona endêmica; a ausência do vetor, infectado ou não, define a zona indene; a presença de T. infestans domiciliado, não infectado, ou a presença de T. infestans infectado em apenas parte dos municípios de uma região caracterizam uma zona de transição. Lembra o autor o pouco que se conhece sobre os fatores ecológicos de distribuição dos triatomíneos, situação ainda verdadeira. Discute a equação clássica: casa de pau-a-pique = doença de Chagas, mostrando que essa relação não se sustenta na área estudada. Aponta como fator mais importante a distribuição dos domicílios e a interação entre seus habitantes. Finalmente, argumenta que as características apresentadas neste capítulo não são suficientes para entender a distribuição da endemia, sendo necessário olhar o processo de organização do espaço.

A opção de apresentar os anexos ao final de cada capítulo facilita a consulta. No entanto, os mapas que constituem o Anexo 1a estão colocados após o Anexo 1b. O título do Anexo 1a – Os Solos do Estado de São Paulo – não é adequado, já que, dos dez mapas, apenas um apresenta os tipos de solo; além disso, a numeração adotada também não facilita a consulta aos mapas a partir do texto. A solução gráfica é muito pobre, aspecto que teria merecido revisão. Sem prejuízo da manutenção do texto original, aproveitar os recursos para apresentação de mapas desenvolvidos nos últimos vinte anos poderia ter facilitado a compreensão da descrição do meio físico e suas relações com a endemia chagásica.

A Organização do Espaço é o capítulo mais extenso e onde vemos como o autor acrescenta à cena estática do primeiro capítulo o movimento da história. Novamente, aqui, a presença dos triatomíneos é o fio condutor da trama. São revistos os trabalhos, principalmente relatos de viajantes, que indicam a presença da doença de Chagas e do T. infestans antes de 1914, quando sua presença é claramente assinalada. A doença é descrita quase sem dúvida no início do século XIX, no entanto as descrições do vetor domiciliado são raras na área estudada. Propõe o autor três momentos distintos da evolução da doença de Chagas no Estado de São Paulo: antes de 1914, com vetores com baixo grau de domiciliação; um segundo, mais recente, com predomínio do Triatoma infestans; o atual, correspondendo à ocupação por P. megistus e T. sordida, do vazio ecológico criado pela eliminação do T. infestans. Em seguida, é discutido o processo de ocupação do espaço, especialmente em relação aos fatores tomados como cruciais para o estabelecimento da endemia: a distribuição espacial das habitações; o grau de interação dos habitantes; os movimentos migratórios. A cronologia de ocupação é dividida em cinco fases: de 1532 até o fim do ciclo das bandeiras, em meados do século XVIII; do predomínio da cana-de-açúcar até meados do século XIX; do aumento da produção de café, na segunda metade do século XIX, até o início do século XX, com a entrada de imigrantes europeus e início da expansão da fronteira agrícola; durante a grande expansão da fronteira agrícola nas três primeiras décadas do século XX, com a valorização do café no mercado internacional; durante a desaceleração da expansão da produção agrícola e a diversificação desta, após o declínio do café. Em discussão rica e detalhada, os argumentos do autor nos convencem da importância dos fatores de expansão da endemia em razão do estabelecimento nas fases III e IV da produção agrícola, que favorece a proximidade das habitações e a grande mobilidade da mão-de-obra. Mostra como, nas áreas onde essa transformação não ocorreu, apesar da presença de vetores, a endemia chagásica não se estabeleceu de forma importante.

No último capítulo, discute-se como a desarticulação do sistema de relações que favoreceu a expansão da endemia contribui decisivamente para seu controle. A partir do início da década de 50, a progressiva diminuição das áreas endêmicas coincide com a transição demográfica, com predomínio da população urbana e esvaziamento da área rural. As áreas onde o programa de controle do vetor encontra maiores dificuldades são áreas que não apresentaram diminuição da população rural. Por outro lado, a intensificação das medidas de controle coincide com os projetos de modernização do meio rural e recuperação das “zonas velhas”, levando ao reconhecimento da doença de Chagas como importante problema de saúde pública. Sem diminuir a importância das campanhas de eliminação do Triatoma infestans, mostra o autor como o desaparecimento das condições para a expansão da área endêmica precedem o desaparecimento da endemia.

Luiz Jacintho trabalha uma grande quantidade de dados econômicos, demográficos e históricos com maestria, produzindo um texto que flui e prende a atenção da primeira à última página. Não tendo ilustrações, nos faz “ver” a saga da expansão da fronteira agrícola paulista, os rebanhos no Caminho do Sul, o jeca-tatu, os migrantes italianos, japoneses, como num filme. É leitura obrigatória não só para os que trabalham com a doença de Chagas, mas para todos os epidemiologistas. E, certamente, despertará o interesse de um público bem mais amplo.

 

Diana Maul de Carvalho
Núcleo de Estudos de Saúde Coletiva
Universidade Federal do Rio de Janeiro

 

 

HANTAVIRUS EN LAS AMÉRICAS – GUÍA PARA EL DIAGNÓSTICO, EL TRATAMIENTO, LA PREVENCIÓN Y EL CONTROL. Organización Panamericana de la Salud. Oficina Sanitaria Panamericana, Oficina Regional de la Organización Mundial de la Salud, Cuaderno Técnico no 47. Washington, D.C.: OPS, 66 pp.

ISBN 92 75 33047 6

 

Considerando a importância das doenças emergentes, mais precisamente das viroses emergentes, o manual Hantavirus en las Américas. Guía para el Diagnóstico, el Tratamiento, la Prevención y el Control, editado pela Organización Panamericana de la Salud, não poderia ser mais oportuno. Desde a primeira descrição da síndrome pulmonar por hantavírus (SPH) nos Estados Unidos, em 1993, dezenas de outros casos vêm sendo descritos em diferentes países americanos, incluindo o Brasil. Embora considerada uma doença rara, a alta letalidade, a falta de conhecimento clínico-epidemiológico dessa zoonose transmitida por roedores, justificam por si só a divulgação dessa publicação.

Estruturado em oito capítulos, elaborados de forma clara e conveniente, o manual apresenta a doença ao leitor, sintetizando, nos três primeiros capítulos, as características dos hantavírus, a ecologia e a epizoologia dos roedores reservatórios.

Os capítulos 4 e 5: Epidemiologia de la Enfermidad en los Humanos e Transmisión a los Humanos, respectivamente, trazem informações sobre os dados epidemiológicos, enfocando as peculiaridades de cada país. Em relação à transmissão, embora considerando como um fenômeno isolado ocorrido na Argentina com o vírus Andes, o manual discute a possibilidade de transmissão direta pessoa-pessoa, reforçando, dessa forma, a necessidade de novos estudos para se esclarecer a transmissão dos novos hantavírus descritos no continente americano.

O capítulo 6, Vigilancia y Definición de Casos de Síndrome Pulmonar por Hantavirus, valendo-se da definição de casos, apresenta recomendações sobre como obter um sistema de vigilância com uma estrutura e funcionamento sensíveis, que possam permitir, integrando os aspectos clínicos, laboratoriais e ambientais, o controle imediato dos casos de hantaviroses humanas.

No capítulo 7, Manifestaciones Clínicas y Tratamiento del Síndrome Pulmonar por Hantavirus, informações e instruções claramente detalhadas são apresentadas, facilitando a conduta dos profissionais de saúde diante de quadro clínico suspeito ou confirmado da SPH. A apresentação de um algoritmo associada às recomendações terapêuticas, considerando a existência ou não de unidades de terapia intensiva, confirmam a importância desse manual como instrumento de fácil compreensão na orientação dos profissionais no estabelecimento do diagnóstico e na redução da letalidade da SPH.

O último capítulo, Prevención y Control, apresenta um resumo das experiências acumuladas desde a primeira descrição de SPH, em 1993, visando reduzir o risco pessoal, além de recomendações sobre como manipular pacientes e animais capturados. Assim, neste capítulo, considerado um dos pontos altos do manual, o leitor que participa de atividades de prevenção, controle ou educação sanitária de hantaviroses ou de outras zoonoses causadas por roedores obtém orientações sobre as práticas adequadas que devem ser instituídas diante da possibilidade da ocorrência desta zoonose fatal.

Além da extensa bibliografia, cuidadosamente selecionada, o manual traz nove anexos, como exemplos de formulários para a notificação de casos e de guias para o transporte e segurança do material biológico. Informações sobre material educativo, que pode ser obtido nos diferentes centros de controle e de prevenção, em especial nos Estados Unidos, são fornecidas, justificando mais uma vez a importância desse manual como instrumento de divulgação e orientação dessa nova doença, ainda pouco conhecida, cuja letalidade depende, quase invariavelmente, do diagnóstico e do tratamento precoces.

 

Elba Regina Sampaio de Lemos
Departamento de Virologia
Instituto Oswaldo Cruz
Fundação Oswaldo Cruz

 

 

REVIRAVOLTA NA SAÚDE: ORIGEM E ARTICULAÇÃO DO MOVIMENTO SANITÁRIO. Sarah Escorel. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1998. 208 pp.

ISBN 85-85676-57-4

 

Três abraços envolvem a história das origens e articulação do movimento sanitário brasileiro, tema de livro elaborado com base em uma tese de Mestrado, defendida, em 1987, perante a banca examinadora formada pelos professores Joaquim Alberto Cardoso de Melo, Guilherme Rodrigues dos Santos e Adolfo Horácio Chorny. As “orelhas”, redigidas pelo professor Sérgio Arouca, o prefácio de Jairnilson Paim e o posfácio de Joaquim Alberto Cardoso de Melo recomendam a leitura, louvam a iniciativa e criam um halo de paixão ao redor de uma história da qual eles também foram sujeitos.

Inicialmente, a investigação, sob a forma de tese, restringiu-se ao período de 1974 a 1978/1979, ampliando-se até 1990, quando assumiu a forma de livro, cujo título abriga uma afirmação do então Secretário de Saúde do Estado da Bahia, Luís Umberto Ferraz Pinheiro: “A reforma sanitária é a reviravolta na saúde”.

Dividido em quatro partes: as origens do movimento, na primeira; a articulação, na segunda; a experimentação, na terceira, e uma revisita, na quarta, o livro, na realidade, constitui um álbum de recordações, onde o fluxo de palavras vai-se transformando em imagens nas quais, às vezes, flagramo-nos fazendo história, talvez submetidos ao desdém estruturalista de Étienne Balibar, para quem somos apenas “efeitos determinados da estrutura”, mas, certamente, sob a concordância de György Márkus (1974:91): “o homem não se ‘submete’ simplesmente à história; a humanidade cria sua própria e, em seu seio, forma e transforma sua própria natureza”.

Segundo Henri Lefebvre (1991:25), “os filósofos souberam desde o início que ele [o conhecimento] comportava reminiscência e reconhecimento (de si mesmo, na reflexão; do outro, no conceito; do ser, na certeza). Imagem, memória, conhecimento não reencontram assim uma unidade quebrada, uma convergência perdida?”

A autora, tal como os filósofos, luta para recompor os estilhaços de uma história fragmentada pelo tempo, apresenta a seqüência de um conjunto de imagens nas quais aparecem sujeitos em primeiro plano, plano geral, close, plano americano, 2 x 2, ou mesmo sombras ou penumbras. Da convergência entre imagem, memória e conhecimento, há a possibilidade da emergência da própria verdade [em grego, Aletheia= não-oculto, não-escondido], pois, lembra Walter Benjamin (1985:161): “A história é objeto de uma construção, que tem lugar não no tempo vazio e homogêneo, mas no repleno de atualidade”.

Dom Hélder Câmara costumava dizer em suas meditações que “Quanto mais negra a noite, mais carrega em si a madrugada”. Foi justamente no período de maior obscurantismo da vigência da ditadura militar que floresceu o movimento sanitário brasileiro, uma “madrugada” que trazia consigo as bases de um pensamento médico-social, cujo batismo erudito ocorreu, em 1975, com a defesa das teses O Dilema Preventivista, de Sérgio Arouca, e Medicina e Sociedade, de Cecília Donnangelo.

O livro destaca que as denúncias de Carlos Gentile de Mello contra o Sistema Nacional de Saúde, a 28a Reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC, a criação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – CEBES, o estímulo de Juan Cesar Garcia, os departamentos de medicina preventiva e social, a militância estudantil, o movimento dos médicos residentes e de Renovação Médica – REME, forjaram ondas centrífugas que se propagaram, intercruzaram-se e amplificaram um discurso de natureza médico-social. Esse discurso assumia a luta contra a ditadura militar brasileira e contra todas as formas de opressão (face emancipadora do movimento); analisava a situação de saúde da população apontando seus determinantes, exigindo uma política de saúde que atendesse a tais necessidades (natureza reivindicatória do movimento) e, além disso, estabelecia as bases teóricas, políticas e normativas de um sistema de saúde que deveria ser implantado (dimensão propositiva do movimento).

É interessante registrar que, do ponto de vista empírico, ou mesmo histórico, o livro consegue demonstrar a existência do movimento sanitário; todavia, quando a discussão envereda pela questão teórica, mingua-se a argumentação, que foi deslocada ou removida para o final do livro (Parte IV – Reviravolta na Saúde), onde também é narrada a história mais recente desse movimento. Essa mistura prejudicou a compreensão do leitor. Ele saberá que a autora, para afirmar que o movimento sanitário é de fato um movimento social, e não um grupo de pressão ou uma simples “movimentação”, apoiou-se na desconstrução do discurso preventivista, realizada por Arouca. Também será informado de que não há consenso entre os pesquisadores sobre a especificidade do referido movimento, mas não ficará sabendo quais os pressupostos de um ou outro grupo, nem o necessário cotejamento com a perspectiva teórica abraçada pela autora.

Na verdade, o livro deveria ter sido concluído na Parte III, pois a parte subseqüente adota um timing diverso daquele que vinha sendo utilizado. O que se pode chamar de apogeu do movimento sanitário, o período pré- e pós-8a Conferência Nacional de Saúde (1986), foi tratado de forma apressada, incompleta e pouco rigorosa. Restaram, no final do álbum, fotos mal-enquadradas e mal-reveladas. Os olhos atentos do leitor as reprovará.

Algumas vezes, durante a leitura, emerge a impressão de que o contexto “engoliu” o texto, basta destacar que a periodização adotada foi externa ao próprio objeto, uma vez que os tempos sempre vinham rubricados com o nome do ditador ou do presidente do país. Não se percebe o menor esforço em construir períodos ou momentos valendo-se do próprio objeto perscrutado, ao qual fossem agregados a estrutura, os atores (causa final) e a causa eficiente que determinariam a passagem de um momento para outro da história do movimento no movimento da História. A separação entre origens e articulação não satisfaz a necessidade anteriormente assinalada.

Percebe-se que a quantidade ou incidência de luz não foi equânime em todos os ambientes que domiciliaram o movimento sanitário. Um caso de pouca luz: ligações, antes clandestinas, não seria a hora de revelar a imprescindível inter-relação do movimento com o Partido Comunista Brasileiro?

Atente-se também para um caso de incidência particular da iluminação. Uma ressalva da autora na Apresentação traz consigo um relativismo exemplar, a não ser que se conceba o texto como uma opinião (dóxa) entre muitas outras possíveis: “Gostaria muito de poder, como Paulo Cavalcanti, parafrasear os versos nordestinos: ‘a história eu conto como a história foi – o ladrão é o ladrão e o boi é o boi’. Mas na verdade isso é quase impossível, e conto da história a parte que sei: a minha visão parcial – de carioca e ‘enspiana’. Como se trata de um movimento vivo, com muitos atores e visões, várias outras versões poderão ser contadas” (p.14).

Mesmo sendo esperado que um estudo sobre um determinado objeto seja sempre parcial, o esforço do pesquisador, se ele deseja construir o conhecimento verdadeiro e não uma mera opinião sobre fatos históricos, deve aspirar à universalidade. Não se trata aqui de reafirmar a separação positivista entre fato e valor, nem tampouco de acreditar que haja abrigo para qualquer valor no conhecimento verdadeiro (epistéme). Ensina Agnes Heller (Heller, 1983), na Filosofia Radical, que somente valores não particulares, ou seja, valores que foram universalizados devem coexistir com o conhecimento verdadeiro, sem comprometer sua cientificidade, caso contrário esse tipo de saber ainda se encontra no âmbito da opinião (dóxa).

Não é difícil constatar o “etnocentrismo sudestiano” nessa história do movimento sanitário, seja pela seleção dos entrevistados, seja pelo esquecimento de alguns ambientes, seja pela ausência de visibilidade das redes de comunicação entre o Sudeste e outras regiões por onde se difundiu o ideário do movimento.

Quando foram mencionados os programas de medicina comunitária (pp. 23 e 24), evidenciou-se a ausência do Programa de Saúde Comunitária e Integração Docente-Assistencial – Projeto Vitória, desenvolvido nos municípios pernambucanos de Vitória de Santo Antão, Pombos e Chã Grande, durante o período de 1975 a 1984. Esse programa foi núcleo de ressonância das diretrizes do Seminário de Viña del Mar (Chile), realizado em outubro de 1955, cuja natureza era racionalizadora, mas que abrigou membros identificados com a perspectiva médico-social.

Na perspectiva da articulação do movimento sanitário, que papel tiveram os profissionais pós-graduados em medicina preventiva e social pela Universidade de Campinas, ainda sob a orientação de Sérgio Arouca, ou pelo Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, ou pelo Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, quando retornaram às regiões de origem? Nenhum relato feito, nenhum exemplo assinalado. Como, então, articulou-se na esfera nacional o movimento sanitário?

Individualizou-se o Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, mas não a escola de pensamento então domiciliada no Departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal da Bahia. Enquanto isso, com uma riqueza impressionante de detalhes, foi relembrada a história do movimento de Renovação Médica ou da Associação Nacional dos Médicos Residentes.

Finalmente, o elenco de críticas apontadas anteriormente, talvez arrogantes, talvez insignificantes, talvez descabidas, em nada ofusca a narração da história do movimento que lutou para garantir, na Constituição Federal de 1988, a saúde como um direito de todos e um dever do Estado, bem como a criação de um Sistema Único de Saúde orientado pelos princípios da universalidade, eqüidade, integralidade, descentralização e participação popular.

Em tempos sombrios, nasceu e articulou-se o movimento sanitário; em tempos de restauração democrática, inscreveram-se nas constituições federal e estadual e nas leis orgânicas municipais as principais proposições desse movimento; em tempos neoliberais, inventa-se a mais nova engenhoca ideológica, denominada organizações sociais, para solucionar os problemas do Sistema Único de Saúde, privatizando-se cada vez mais a esfera pública e minimizando-se o compromisso do Estado em garantir o direito à saúde através de políticas que contemplem não somente assistência médica, mas também educação, acesso à terra e posse desta, água, saneamento, trabalho, entre outras necessidades.

Na nova história, onde se encontram os sujeitos? Adormecidos, cansados ou encantados pelo receituário do neoliberalismo? Novamente as estruturas parecem fazer a história, sem telos e sem sujeito, tal como acreditava Althusser. Ou será que não? A leitura do livro de Sarah Escorel mostra uma outra possibilidade de não apenas ficar submetido à história, devemos lê-lo para também não esquecer como se faz história.

 

Djalma Agripino de Melo Filho
Secretaria de Saúde de Pernambuco

 

BENJAMIN, W., 1985. Teses sobre filosofia da história. In: Walter Benjamin (F. R. Kothe, org.), pp. 153-164, São Paulo: Editora Ática.

HELLER, A., 1983. A Filosofia Radical. São Paulo: Brasiliense.

LEFEBVRE, H., 1991. A Vida Cotidiana no Mundo Moderno. São Paulo: Editora Ática.

MÁRKUS, G., 1974. A Teoria do Conhecimento no Jovem Marx. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

 

 

GESTÃO E AVALIAÇÃO DE RISCO EM SAÚDE AMBIENTAL. Ogenis Magno Brilhante & Luiz Querino de A. Caldas (coordenadores). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999. 155 p.

ISBN 858567656-6

 

Risco tem um conceito clássico oriundo do campo da economia e da seguridade. O risco evoca a “probabilidade de ocorrência de um determinado evento adverso, segundo a teoria estatística” (Adams, 1998). Há uma enorme teorização e tipificação sobre risco, por exemplo, “objetivo” e “percebido ou subjetivo”; “voluntário” e “involuntário” etc. Lieber (1998), ao defender sua tese de Doutorado na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, trata com enorme propriedade a Teoria e Metateoria da Investigação da Causalidade, particularmente as questões de risco que, no seu entender, apresentam compreensões simplistas que desconsideram o “ajuste” do homem a um ambiente hostil, “sua percepção de nocividade, sua adaptação às condições perigosas e a solução dos conflitos entre riscos e benefícios”. Esses processos são decorrentes de um nexo complexo entre fatores sócio-culturais e suas relações no sistema, em conformidade com um determinado contexto. Entre nós, é bastante elucidativa a monetização do risco imposta à classe trabalhadora e aceita por ela. Nesse sentido, “o homem apresenta diferentes possibilidades de tomadas de decisão e de controle sobre sua vida em relação aos meios de sobrevivência que dispõe” (Damasio, 1996).

O enfoque multifatorial para compreensão da causalidade vem sendo tratado atualmente dentro de uma abordagem sistêmica. Os sistemas têm sido classificados como fechados (estáveis, mecânicos) ou abertos (dinâmicos, orgânicos, cibernéticos) em relação à sua interação com o meio externo (Almeida & Binder, 1995). A abordagem sistêmica é, pois, uma maneira de pensar um determinado problema. Nesse sentido, se a hipótese para a ocorrência de um evento é uma determinação estabelecida por um dado arranjo de eventos ou situações, o modelo explicativo é “determinista”. No entanto, se essa mesma estrutura for considerada como uma condição “favorável”, ao invés de determinante, o mesmo evento é decorrente de uma “probabilidade”, portanto, produto de um risco (Bird Jr. & Fernandes, 1977, apud Lieber, 1998).

Outros caminhos teóricos criam novas possibilidades para a explicação da causalidade que permite superar o modelo de “fatores de risco” da epidemiologia. A Teoria da Homeostase de Risco (Buckley, 1976), por exemplo, aponta uma nova perspectiva, colocando-se a necessidade de se fazer análise de risco em diferentes níveis e de se reverem as práticas meramente quantitativas, substituindo o caráter fatalista desta abordagem por uma “aproximação holística” (Burgoyne, 1993). Hoje, a perspectiva da “Incerteza e da Complexidade”, é um outro enfoque “essencial e necessário” (Czeresnia & Albuquerque, 1995), uma vez que “o futuro é incerto e subjetivo, ele não existe a não ser na cabeça das pessoas que tentam antecipá-lo” (Lieber, 1998).

O livro Gestão e Avaliação de Risco em Saúde Ambiental, coordenado por Ogenis Magno Brilhante & Luiz Querino de A. Caldas, é importante contribuição para o campo da saúde pública, que ainda não está acostumado a tratar a questão dos riscos fora da abordagem epidemiológica e toxicológica. Saúde ambiental, vigilância ambiental, monitoramento de risco, indicadores ambientais, riscos ambientais para a saúde são terminologias recentes no campo da saúde coletiva. Por outro lado, a gestão de risco ambiental já possui um arcabouço conceitual e um instrumental bastante conhecido no chamado setor ambiental, mas na saúde é ainda um tema novo. A contribuição dos autores é importante e nos traz uma apresentação bastante didática dos métodos disponíveis para a avaliação e gestão de risco, ensaiando de forma ousada a aplicação destes no campo da saúde.

O livro está dividido em quatro capítulos. No primeiro, Ogenis Magno Brilhante é bastante claro e objetivo ao tratar dos conceitos de saúde ambiental, poluição e meio ambiente, meio ambiente, fatores do ambiente capazes de aumentar o risco de câncer, impacto, tipos de impacto e diferenças entre impacto e risco ambiental. No que tange este último, além do conceito e da tipologia de risco, o autor apresenta as questões sobre sua aferição com um salutar relativismo. Após essa parte mais conceitual, entra na gestão e avaliação da saúde ambiental. Trata-se, na verdade, de gestão e avaliação ambiental, onde faz uma tentativa de ajustar todo esse arsenal metodológico para o campo da saúde coletiva. A dificuldade dessa transposição, ao nosso entender, deve-se ao fato de que o “modo de pensar” da saúde coletiva foge da idéia de “fatores de risco” e do conceito de causalidade em seu determinismo monocausal, sustentado pela epidemiologia clássica, baseada no triângulo agente-hospedeiro-ambiente, e busca explicações no marco da epidemiologia moderna, com apoio de outros modelos, nos quais o “agente” é substituído pela demonstração do processo de múltiplas e interdependentes relações entre “hospedeiro e ambiente” (Chaves-Filho, 1998, apudLieber, 1998). A transposição do arsenal conceitual e instrumental desenvolvido pelo setor “ambientalista” não pode ser feito de maneira direta e mecânica para o setor saúde. Os processos de construção das disciplinas dão-se em tempos distintos e com bases epistêmicas diferentes, sem dizer que a natureza de seus objetos também apresentam complexidades particulares e que exigem métodos distintos de análise. Isso não invalida o esforço do autor de propor a abordagem interdisciplinar para as questões de avaliação e gestão em saúde ambiental. No entanto, quando chega nos métodos, o marco permanece disciplinar. O livro, e este capítulo em particular, certamente ajudará os profissionais de saúde a conhecerem o jargão conceitual e instrumental com que contam os ambientalistas. A parte em que se discutem os procedimentos de avaliação e gestão do risco e em que o autor dá ênfase ao “problema” e ao “contexto” é de grande importância para nossa reflexão. O autor poderia ter tratado a “perspectiva da incerteza”, que nos parece bastante promissora e que poderia cumprir um papel de destaque para a proposta da interdisciplinaridade. Para melhor entendimento do que estamos discutindo, citamos a incerteza segundo o caráter “dimensional (dependente da variabilidade nas medições), estrutural (decorrente da complexidade dos modelos e suas validações), temporal (incerteza sobre o passado e o futuro) e de translação (na explicação de resultados incertos)” (Buckley, 1976). Reconhecemos que essas abordagens ainda carecem de uma aplicação mais ampla, o que não impediria, no entanto, que fossem tratadas toda vez en que se abordasse a temática da avaliação de risco. Essa perspectiva tem enorme interesse para a saúde, que, em si, é uma questão transdisciplinar. A transferência mecânica de conceitos e métodos desenvolvidos por uma disciplina de complexidade menor para outra de complexidade maior, como a saúde, implica um reducionismo e uma inversão de hierarquia que freqüentemente são cometidos pelas práticas técnico-científicas e profissionais, imersos nos conflitos de interesse, e guarda o “ideal do procedimento neutro para a produção de um produto puro pasteurizado” (Lieber, 1998). Desejamos chamar a atenção para o cuidado que se deve ter ao propor determinados métodos de monitoramento, principalmente aqueles que não contemplam a “pluralidade das perspectivas, excluindo tudo aquilo que não se deixa reduzir, promovem a fantasia da harmonia, obstruindo a legitimidade do desejável” (Lieber, 1998).

O segundo capítulo, Procedimentos Integrados de Risco e Gerenciamento Ambiental: Processos e Modelos, dos autores Horst Monken Fernandes e Lene Holanda Sadler Veiga, introduz a dimensão temporal no método proposto e aponta a interdisciplinaridade. Entretanto, remete a questão da saúde para o terceiro capítulo: Avaliação de Risco para a Saúde Humana e a Avaliação de Risco Ecológico, revelando, na prática, a dificuldade para uma abordagem integrada quando o ponto de partida é uma dada disciplina. Aqui, as considerações conceituais e metodológicas ficam nos marcos estreitos da toxicologia e não trata da abordagem “holística”, “interdisciplinar” prometida. A abordagem interdisciplinar exige um passo atrás para todas as disciplinas, já que necessita reportar-se a um conjunto de pressupostos e a uma ou mais perguntas condutoras que sejam comuns a todas as disciplinas convocadas para o estudo, e não propriamente ter um método comum, que é próprio de cada uma no processo de diferenciação do conhecimento. A interdisciplinaridade não deve ser uma moda, uma vez que só é necessária quando o objeto de estudo ou de intervenção é definido como complexo (Garcia, 1986).

O terceiro capítulo, de Luiz Querino de A. Caldas, trata do “risco potencial em toxicologia ambiental”. Falar em “risco potencial” já é uma novidade em se tratando do determinismo da toxicologia, mas, apesar da sofisticação terminológica, não se introduz aqui o conceito de “presunção” e nem o “princípio da precaução” (Augusto & Freitas, 1998). Por a toxicologia ser uma disciplina do setor saúde, foi mais fácil para o autor agregar certos conceitos e terminologias oriundos do ambiente. No entanto, é importante insistir que a toxicologia utiliza parâmetros da química inorgânica (concentração = massa ¸ volume) para seus estudos de “dose-resposta” e, ao subordinar a saúde a eles, faz uma inversão hierárquica que tem promovido diversos prejuízos, como ocorre, por exemplo, em saúde do trabalhador, quando esta fica subordinada (até por lei) aos limites de tolerância de exposição. A saúde é muito mais complexa e transdisciplinar do que os parâmetros disciplinares da química orgânica e inorgânica (Novaes, 1992).

O quarto e último capítulo trata da avaliação de risco para a saúde humana e ecossistemas, cujos autores, Lene Holanda Sadler Veiga e Horst Monken Fernandes, mencionam o interesse de se alcançar “uma metodologia ampla, capaz de incluir os vários aspectos relacionados à toxicidade das substâncias, unindo causa e efeito de uma maneira quantitativa”. Essa afirmação nos parece vulnerável, pois não se pode pensar a priori em metodologias amplas, uma vez que, em nosso entender, os métodos devem aplicar-se a cada objeto, considerado nos seus contextos. Os autores, no entanto, avançam para um conceito importante que é o de criticar o “uso de valores genéricos de limites de concentração como unidade regulatória para contaminantes”. O argumento dado, entretanto, restringe-se a uma abordagem multifatorial de “fatores de risco” e, mais adiante, ao dividir os efeitos tóxicos de uma substância em dois tipos: “sistêmicos e carcinogênicos”, deixa de fora uma série de outros efeitos sindrômicos e múltiplos, adotando o modelo de avaliação “dose-resposta” e “dose-efeito” para os efeitos sistêmicos. Essa divisão não é satisfatória, pois temos outras situações que esse modelo não atende, como, por exemplo, a síndrome de sensibilidade a múltiplos químicos. Para o câncer, traz a importante crítica ao “limiar seguro” e remete-se ao modelo da IARC sobre “determinação do peso da evidência de dados oriundos de estudos com animais (experimentais) e com humanos (epidemiológicos)”, apresentando o conceito de “Fator Potencial de Câncer” como se fosse uma abordagem mais avançada. Hoje, temos outras contribuições que não têm sido consideradas pela IARC, como a da química teórica para análise do potencial carcinogênico de substâncias pela análise da afinidade eletroquímica entre estruturas moleculares. Esse método nos liberta, de uma certa forma, da dependência da toxicologia, uma vez que estuda a capacidade de certas substâncias receberem elétrons doados por aminoácidos do DNA humano (por exemplo, a Guanina) e daí surgir uma ligação químico-elétrica que modifica a sua estrutura, conferindo-lhe capacidade mutagênica e carcinogênica (Leão & Pavão, 1997). A riqueza de proposições técnicas para tratar o tema proposto pelos autores necessitaria apontar também para a “riqueza de olhares ou de possibilidades de transformação” (Lieber, 1998), que a perspectiva tecnológica tem sido incapaz de alcançar.

Outro aspecto para nossa reflexão no tema é que a “avaliação de risco, em geral, valora a excepcionalidade em detrimento do cotidiano da vida humana, reduzindo-o ao banal” (Lave, 1997). Não se deve esquecer que o homem, ao viver na interface entre a “natureza (ignorância) e o conhecimento”, tem uma implicação para a questão da avaliação de risco que depende dos aspectos de comunicação (“imposição” e “aceitabilidade”) (Lieber, 1998). Assim, à guisa de conclusão, remetemo-nos à questão formulada por Lieber (1998): “Pode a condição humana, cuja racionalidade não é de forma alguma absoluta, viabilizar-se nessa condição sintética, concebida por um sistema de monitoramento, para orientar ações que também não são de forma alguma absoluta?”. O tema da avaliação e gestão de risco é, por certo, muito controverso e aqui reside mais um aspecto da importância desse livro para o setor saúde.

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