MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO 

 

“A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”, diz o artigo 205 da Constituição Federal. Isso significa que a educação, ora vista como o cultivo dos bons costumes, ora confundida com a própria escolarização, tem exigido cada vez mais a participação da família e da comunidade na tarefa educativa escolar.

O advento da modernidade e sua crença na razão ilustrada e no método científico experimental, como fatores do progresso e na maciça escolarização como a sua via, fizeram edificar o ideal da ilustração enquanto forma não apenas de romper com a marginalidade e promover a reconstrução social através da educação, mas também como forma de se atingir a “fase final do entendimento humano”, segundo o prognóstico positivista de Augusto Comte (1798-1857). Vista sob essa ótica, a Escola seria uma entidade moralmente superior encarregada de transformar seres “primitivos” em indivíduos também moralmente aperfeiçoados. Do ponto de vista sociológico, o maior entusiasta dessa crença foi certamente Émile Durkheim (1858-1917), continuador da perspectiva positivista de Comte principalmente em matéria de educação. Durkheim não apenas acreditava na escola como um espaço de aperfeiçoamento moral, como criou e ministrou na França uma nova disciplina nos cursos voltados para a formação de professores, a Sociologia da Educação.

Ao formular sua teoria sociológica da educação e ministrá-la aos futuros professores, Durkheim tinha em mente essencialmente duas coisas:

formar professores comprometidos com uma “fé nova” – um novo padrão moral laico e racional que viesse substituir os padrões religiosos possivelmente abandonados – ou pelo menos definitivamente enfraquecidos – com o fim da obrigatoriedade do ensino religioso nas escolas oficiais francesas;

fundamentar cientificamente a pedagogia para que os professores, com “conhecimento de causa”, viessem a atuar no sentido de desenvolver uma prática pedagógica conveniente com o estágio de desenvolvimento da divisão do trabalho.

O otimismo durkheimiano com relação à evolução social se justificava pelas suas expectativas relacionadas à educação. Ela é que impediria a desagregação social, na medida em que permitisse a realização social dos indivíduos, engrandecendo-os e tornando-os verdadeiramente humanos. Para Durkheim, a educação é essencialmente boa. Tão boa que os indivíduos se sujeitam à submissão social, “porque o novo ser que a ação coletiva, por meio da educação, assim edifica, em cada um de nós, representa o que há de melhor no homem, o que há em nós de propriamente humano”, dizia ele entusiasticamente. Entre nós essa crença alimentou o “otimismo pedagógico” do início do século e continua ainda a alimentar, no discurso político e até mesmo no discurso pedagógico, expressões do tipo “sem educação não atingiremos a modernidade” ou “só a escola corrige este país”.

II

Ao entusiasmo suscitado pelos projetos construtivos de inspiração iluminista, tanto na sua versão socialista quanto – e principalmente – na sua versão positivista, sucedeu um profundo desapontamento com relação à capacidade humana não apenas de entender os mecanismos de funcionamento da dinâmica social, mas também de controlá-la. As duas grandes guerras mundiais, as crises do capitalismo e os totalitarismos, tanto de natureza nazi-fascista quanto de natureza estalinista, jogaram por terra não apenas os ideais de “ordem e progresso”, mas também a crença na possibilidade de aperfeiçoamento moral do homem.

Max Weber (1864-1920), contemporâneo de Durkheim, já apontava seu profundo ceticismo não apenas com relação ao futuro da moderna racionalidade capitalista – uma ordem legalista, impositiva, um verdadeiro “cárcere de ferro” – como também quanto à possibilidade de controle dessa racionalidade pelos homens e mulheres modernos. Entretanto, a crítica weberiana somente é incorporada ao discurso sóciopedagógico, ao que parece, a partir dos anos 60, principalmente com Pierre Bourdieu. Segundo Weber, a organização escolar constitui um dos aparatos coativos de dominação que têm por tarefa a administração dos bens culturais, os quais são uma versão mundana dos bens de salvação religiosa. O sistema escolar contém um conjunto de funções, dentro do qual destacam-se as funções de imposição da legitimidade de uma cultura, de inculcação sistemática do arbitrário cultural, de legitimação da ordem social e, finalmente, de reprodução do sistema de dominação. A língua é o principal instrumento do qual a Escola se serve para efetuar a sua tarefa. Diz Weber, em Economia e sociedade:

“O âmbito da influência com caráter de dominação sobre as relações sociais e os fenômenos culturais é muito maior do que parece à primeira vista. Por exemplo, é a dominação que se exerce na escola que se reflete nas formas de linguagem oral e escrita consideradas ortodoxas. Os dialetos que funcionam como linguagem oficial das associações políticas autocéfalas, portanto de seus regentes, vieram a ser essas formas ortodoxas de linguagem oral e escrita e levaram às separações nacionais (por exemplo, entre a Alemanha e a Holanda). Mas a dominação exercida pelos pais e pela Escola estende-se muito além da influência sobre aqueles bens culturais (aparentemente apenas) formais até a formação do caráter dos jovens e, com isso, dos homens” (WEBER, 1994:141).

A partir de meados desse século a crença na capacidade de os homens e mulheres modernos não só de compreenderem o seu destino, mas também de, tendo-o conhecido, controlá-lo, torna-se irremediavelmente enfraquecida. Instaura-se a era da incerteza, no dizer de John Kenneth Galbraith ou a era da suspeita, segundo Alain Touraine ou, ainda, a era dos extremos, nas palavras de Eric Hobsbawm. E essa descrença na capacidade humana tem, obviamente, seus efeitos na pedagogia. Edifica-se nesse campo um conjunto de teorias críticas da educação e de sua função no sistema capitalista que se sustentam na categoria reprodução. Qual é a função da escola capitalista? – perguntam os autores que se sustentam nessa categoria. Servir como aparelho ideológico do Estado e cumprir a tarefa de reproduzir, pela dissimulação ideológica, o conjunto de interesses da classe dominante, diz Althusser (ALTHUSSER, 1969); reproduzir, através da inculcação arbitrária (portanto, violência simbólica), os bens simbólicos dominantes em determinada cultura, dizem Pierre Bourdieu e Claude Passeron (BOURDIEU & PASSERON, 1975); reproduzir as relações sociais e materiais de produção, portanto, de classes da sociedade capitalista, dizem Crhistian Baudelot e Roger Establet (BAUDELOT & ESTABLET, 1971) e Samuel Bowles e Herbert Gintis (BOWLES & GINTIS, 1976).

Essa visão crítica da escola, decorrente da análise da sua função nas sociedades de classes, foi amplamente difundida nos países europeus e norte-americanos, e também aqui entre nós. Em uma tese defendida em 1978, que resultou num fascinante livro, As belas mentiras, Maria de Lourdes Chagas Deiró (DEIRÓ, 1979) analisa “a ideologia subjacente aos textos didáticos”, aparentemente ingênuos, adotados na rede pública de ensino fundamental. Outros autores, como Luiz Antônio Cunha, em Educação e desenvolvimento social no Brasil (CUNHA, 1975) e Bárbara Freitag, Escola, Estado & sociedade (FREITAG, 1986), trazem também as categorias da reprodução para a análise da educação brasileira e questionam os mecanismos pedagógicos adotados na nossa rede de escolarização. Ambos suspeitam fortemente da doutrina liberal-positivista que vê a educação como o instrumento de equalização social e, portanto, para a construção de uma sociedade aberta.

III

Essa postura teve importantes repercussões na visualização das possibilidades de mudança social. Duas implicações podem ser destacadas. Por uma lado, o deslocamento da visualização das possibilidades de mudança da escola para outros espaços sociais, os movimentos sociais. Por outro lado, trata-se de encontrar um equilíbrio entre uma visão encantadoramente otimista das possibilidades da Escola e seus limites face ao seu condicionamento pelas estruturas sociais. Ou em outros termos: Se a Escola é vista como espaço, por excelência, da conservação não só do status quo, mas também da ideologia dominante e das relações de classe, as mudanças sociais deveriam operar-se pelas lutas travadas fora dela, isto é, nos sindicatos, nos partidos, nas associações de classe, nas organizações comunitárias etc. Entretanto, como resultado dessas lutas, a própria escola poderia sofrer alguma mudança, reorientando-se em seu curso interno e reorientando, por consequência, sua função social. Daí que os principais movimentos sociais são conclamados a contribuir na tarefa educativa escolar. A Escola tenta desprender-se do interior de seus muros e reivindicar cada vez mais a participação da comunidade na tarefa educativa. Por sua vez, a comunidade passa a cobrar, com intenso vigor, uma nova postura da Escola face a seus problemas concretos.

Se do ponto de vista prático-operacional ocorrem mudanças significativas na visualização de possibilidades ou não de mudanças sociais, nas demandas feitas no interior da escola e naquelas postas de fora para ela, nas posturas dos profissionais da educação e no redimensionamento das possibilidades e dos limites da educação escolar, do ponto de vista teórico, as mudanças são igualmente significativas. As ciências sociais dos anos 70 e início dos 80 elegeram, como objeto preferencial de análise, os movimentos sociais. As teorias pedagógicas dos anos 80 não desprezam as teorias críticas da reprodução, mas não vêem a Escola como espaço exclusivo de reprodução.

Questionando as interpretações de natureza estrutural, tanto as positivo-funcionalistas quanto as marxistas clássicas, Paul Willis, em um livro publicado originalmente em 1977, Learning to labour (WILLIS, 1991), se propõe a apresentar novas bases sobre a natureza das relações que se estabelecem entre escolarização e sociedade. Sua análise contesta tanto o ajustamento seletivo dos funcionalistas quanto a reprodução sistemática das relações sociais de produção sugerida pela teoria crítica marxista e, ainda, a reprodução sociocultural decorrente da impositividade do “arbitrário cultural”, conforme analisavam Weber e Bourdieu. Segundo Liz Gordon (GORDON, 1989), a abordagem das manifestações culturais, como a de Willis, enfatiza o processo dinâmico de produção de várias crenças e práticas que existem no interior da sociedade capitalista. Diz, ainda, Gordon:

“O método etnográfico de Willis trouxe, com efeito, uma nova dimensão à nossa compreensão da reprodução social através do processo de escolarização – o da produção cultural. A noção de uma classe operária passiva, ignorante, é descartada em seu livro, e é substituída por um conhecimento urgente e impositivo de que as escolas são, e continuam a ser, um local de luta; uma luta que não está nunca concluída e um resultado que não é nunca assegurado. Willis trouxe o método etnográfico para a linha de frente da pesquisa educacional, e, ao fazer isso, ofereceu alguma esperança para a futura mudança social.” (GORDON, 1989:135).

Sobre a escola enquanto aparato de “reprodução” social e cultural e enquanto instância no interior da qual operam-se mecanismos de “resistência”, há toda uma bibliografia crítica, tanto interna quanto externa. Nesse sentido, vale conferir principalmente o balanço feito por Pierre Dandurand e Émile Ollivier (DANDURAND e OLLIVIER, 1991) em Os paradigmas perdidos; Miguel Gonzalez Arroyo (ARROYO, 1991) em Revendo os vínculos entre educação e trabalho; Tomaz Tadeu Silva (SILVA, 1992) em O que produz e o que reproduz em educação; Jean-Claude Forquin (FORQUIN, 1993) em Escola e cultura; Regine Sirota (SIROTA, 1993) em A escola primária no cotidiano; e André Petitat (PETITAT, 1994) em Produção da Escola, produção da sociedade. Esses balanços apontam para o que constitui, hoje, a problemática central da análise sociológica em educação: a relação entre escola e cultura, análise em que os processos culturais são centrais, em que os participantes são vistos na perspectiva de sujeitos ativos não univocamente determinados pelas estruturas, com intensa observação feita no interior do aparelho escolar sobre a vida na Escola e fora dela, o mundo do trabalho e das relações sociais, onde análise microssociológica junta-se à análise macrossociológica (DANDURAND e OLLIVIER, 1991), aparecendo como bem-sucedidas principalmente as análises feitas por Forquin, Sirota e Petitat, autores acima citados.

Outros textos que se tornaram manuais nos cursos de formação de professores são o de Antônio Joaquim Severino (SEVERINO, 1986) Educação, ideologia e contra-ideologia e o de Dermeval Saviani (SAVIANI, 1983) Escola e democracia, este último já por volta da trigésima edição. Inspirando-se em Gramsci, Saviani sugere uma pedagogia revolucionária. Segundo ele:

“A pedagogia revolucionária é crítica. E por ser crítica, sabe-se condicionada. Longe de entender a educação como determinante principal das transformações sociais, reconhece ser ela elemento secundário e determinado. Entretanto, longe de pensar, como o faz a concepção crítico-reprodutivista que a educação é determinada unidirecionalmente pela estrutura social dissolvendo-se a sua especificidade, entende que a educação se relaciona dialeticamente com a sociedade. Nesse sentido, ainda que elemento determinado, não deixa de influenciar o elemento determinante. Ainda que secundário, nem por isso deixa de ser instrumento importante e por vezes decisivo no processo de transformação da sociedade” (SAVIANI, 1991:75).

E quanto aos movimentos sociais? Como eles se constituem e se transformam em referências de ação e de análise?

IV

Como se disse anteriormente, as ciências sociais das décadas de 70 e 80 elegeram os movimentos sociais como objeto preferencial de análise. Segundo Ilse Scherer-Warren, os anos 70 e 80 viveram um período histórico, nunca antes observado, de construção de novas identidades coletivas. Essas identidades foram construídas em torno de significados múltiplos: carências comuns, defesa comunitária ou cultural (religiosa, de gênero, étnica, ambiental, de direitos humanos etc). No Brasil, as noções de movimento popular ou social passaram a ser utilizadas comumente para denominar as ações coletivas desenvolvidas por organizações populares localizadas e específicas. A repressão decorrente do golpe militar de 1964 desarticulou os movimentos iniciados anteriormente, alguns dos quais resistiram na clandestinidade. Apesar da repressão e mesmo com alcance limitado de sua ação política, essas organizações, que proliferaram nos anos 70 até meados da década de 80, tiveram sua relevância política durante os anos de regime autoritário, pois eram os espaços possíveis de ação política para novos atores sociais. Questões do cotidiano transformaram-se em demandas políticas e em instrumento de defesa dos direitos de cidadania ou de contestação do autoritarismo (cf. SCHERER-WARREN, 1993:115).

Em um livro publicado em 1987, Movimentos sociais em Minas Gerais, os autores analisam a emergência e as perspectivas que então poderiam ser visualizadas, no estado, tanto no espaço urbano quanto no rural, para o movimento operário e sindical, o movimento de mulheres e negros e o das comunidades eclesiais de base, suas relações ente si e com o Estado, seus interesses comuns, suas divergências e seus conflitos. Segundo o organizador do trabalho, Malori José Pompermayer, para se entender a emergência (ou a reemergência) dosmovimentos sociais em Minas, nos anos 70, assim como o novo caráter desses movimentos, é preciso levar em consideração a repressão contra as principais lideranças dos movimentos anteriores a 1964, o fechamento dos principais canais de expressão participativa, desde os institucionais (como as câmaras municipais e as assembléias legislativas) até as organizações livres (como os sindicatos, associações e partidos), além de ter em vista as transformações estruturais pelas quais passou o Estado no campo econômico e social, modificando a composição dos segmentos sociais e da força de trabalho, assim como o contexto da vida urbana e rural. Diz ele, ainda:

“Por um lado, as transformações econômicas e sociais no Estado […] e, por outro, o isolamento social e político das camadas populares, resultante da repressão policial-militar e da perda de contato com as lideranças e os movimentos anteriores, acabam por despertar práticas organizativas inovadoras, a partir das bases populares, que serão o embrião do ressurgimento dos novos movimentos sociais na segunda metade dos anos 70. Para o ressurgimento desses movimentos em forma pública, a partir de 1974, conta também certamente o cenário nacional de então, em que adquirem relevo a consciência do fim do milagre econômico, o acúmulo de problemas sociais, o incipiente clima de abertura política e, por fim, a derrota do partido oficial nas eleições parlamentares.” (POMPERMAYER, 1987:12).

As expectativas criadas em torno da possibilidade de construção de uma sociedade verdadeiramente democrática são realmente muito grandes, principalmente na virada da década de 70 para a de 80, quando os ares da abertura política se tornam sensíveis. O retorno de exilados políticos, a reforma partidária, a discussão em torno da possibilidade de retorno às eleições diretas para presidente, tudo isso fez do início dos anos 80 um período de euforia, cujo ponto culminante foi a eleição de Tancredo Neves, em 1984, mesmo não sendo pela via direta, como era o desejo da maioria da população. Se a Nova República aparecia como uma brilhante saída para o regime burocrático – autoritário – pois, afinal, Tancredo e seu vice Sarney, foram eleitos pelo colégio Eleitoral, a partir de uma obra de engenharia política, a Aliança Democrática, decorrente de um acordo ente os dois maiores partidos da época, o PMDB e o PFL -, ela aparecia também, aos olhos de boa parte da população, como o coroamento de anos e anos de luta contra a arbitrariedade e o terror.

À euforia inicial trazida pelos ventos da Nova República, sucedeu-se um profundo desapontamento, inicialmente com a morte de Tancredo e, logo após, com o conjunto de trapalhadas do seu sucessor e, mais ainda, com a eleição direta e o desgoverno de Fernando Collor de Melo. Ainda assim, pode-se dizer que, a despeito de tropeços de toda ordem, muitas atitudes continuaram a ser tomadas por vários segmentos sociais interessados em manter sob pressão o aparato do Estado e os agentes nele instalados, como por exemplo, o conjunto de manifestações populares e institucionais que levaram ao impeachment de Collor de Melo.

No caso específico de Belo Horizonte, segundo Mercês Somarriba e Mariza Afonso (1987), um levantamento sistemático, realizado em 1980, constatou a existência de 202 associações de moradores. Desse conjunto, cerca de 65% haviam sido criadas a partir de 1974. Essas associações procuravam se aglutinar em torno da Federação de Associações Comunitárias de Minas Gerais – “de caráter semi-oficial e sem representatividade” – e a União de Trabalhadores da Periferia. Em 1983, foi criada a Federação de Associações de Bairros, Vilas e Favelas de Belo Horizonte (FAMOBH), que, no final da década, contava com cerca de 200 associações a ela filiadas (SOMARRIBA e AFONSO, 1987:89). Essas associações não se desenvolvem com a mesma regularidade temporal nem espacial. As autoras apresentam a região do Barreiro – área predominantemente industrial – e a de Venda Nova – típica cidade dormitório – como duas regiões que, do ponto de vista do associativismo local, apresentam nítidas diferenças entre si. Dizem elas:

“No Barreiro, tem-se um associativismo mais antigo e dividido entre a influência de duas forças conflitantes: de um lado, o movimento sindical local e a Igreja católica; de outro, um esquema tipicamente clientelista, encabeçado por conhecido político da região. Essa região é sede do Sindicato dos Metalúrgicos de Belo Horizonte e Contagem, da Pastoral Operária – que ali atua desde 1968 – e do Movimento de Transporte de Belo Horizonte. Existem, hoje, ali, cerca de 38 associações de moradores e uma pequena União aglutinando 10 dessas entidades.

“O movimento associativo de Venda Nova é mais recente e altamente induzido pelo Estado, com boa parte das associações criadas a partir de 1979, sob influência direta do então prefeito de Belo Horizonte. O trabalho da Igreja na região é restrito, tendo-se iniciado a partir da criação da Pastoral de Favelas, em 1981. Dada a alta dispersão da mão-de-obra local pelas várias categorias profissionais, o movimento sindical não tem, ali, expressão alguma. O único contingente significativo de trabalhadores industriais da região é aquele ligado à construção civil. Refletindo o alto índice de desemprego da região, Venda Nova conta, a partir de 1984, com um Movimento de Desempregados. Tem-se, ali, também, o Movimento Ecológico Lagoa do Nado, que reivindica a preservação de uma área de lazer local. Estes últimos movimentos e o conjunto de 63 associações de moradores locais estão aglutinados na União de Associação de Moradores de Venda Nova (UNAVEN), de criação também recente” (SOMARRIBA e AFONSO, 1987: 89-90).

É pertinente uma referência aos movimentos organizados a partir de uma inspiração religiosa, particularmente aqueles identificados com a ala progressista do catolicismo, a Teologia da Libertação. Não é desprezível o papel pedagógico do tipo de atividade próprio da Igreja Católica, na dinamização das mais diversas iniciativas associativas e na formação de lideranças nos mais diversos segmentos sociais em Minas. Em muitas Dioceses, os cursos de formação de mensageiros formam não apenas os líderes locais de CEBs, mas também agentes de dinamização intercomunitária. Por meio desta, leigos de uma comunidade dinamizam atividades em outras, com importantes repercussões na dinâmica social, principalmente nas regiões periféricas.

As CEBs foram surgindo e consolidando-se ao longo dos anos 60 e 70, no contexto social da repressão desencadeada a partir do golpe de 64. Para fugirem à repressão muitos dos líderes políticos da época se abrigaram sob o guarda-chuva da Igreja Católica que passou, a partir de então, a funcionar como espaço de resistência, expressão da mudança do próprio perfil do catolicismo em muitos aspectos. Como se sabe, o Concílio Vaticano II, realizado entre 1962 e 1965, acabou por reorientar a atuação da Igreja Católica, levando grande parte do clero latino-americano a fazer uma opção preferencial pelos pobres e oprimidos. Na verdade, o que a Igreja fez foi reconhecer e incorporar um conjunto de práticas de organização autônomas, legitimando-as e dando a elas um novo impulso. Essas organizações de caráter religioso foram de fundamental importância para a dinamização de outras organizações de caráter propriamente político ou econômico. Segundo José Maria de Paiva:

“Das CEBs surgiram, com efeito, os movimentos populares da década de 70. Em Teófilo Otoni, por exemplo, todos os movimentos nasceram das CEBs: na área rural, os sindicatos; na área urbana, os clubes de mães, as associações de bairros, o comitê do solo urbano, etc. […] O mesmo aconteceu em Contagem: na cidade industrial, as CEBs deram início às associações. […] Em Caratinga, no oeste de Minas, em Divinópolis, não há como separar religião de vida: a origem dos sindicatos rurais, por exemplo, está ligada às CEBs dos Vicentinos. Ali, muitas vezes, o aspecto determinante da candidatura sindical é o aspecto religioso dos candidatos. No nordeste de Minas, o berço do sindicalismo rural, região onde há mais sindicatos rurais no Estado, as CEBs estão na raiz desse movimento. […] Querer entender o movimento popular em Minas sem referência às CEBs é, no mínimo, ignorar suas raízes e as marcas que elas deixaram” (PAIVA, 1987:160).

Vê-se, pois, que a criação e a articulação de redes de movimentos sociais é bastante intensa nas últimas décadas. Esses movimentos se interessam pelas mais diversas questões que vão desde demandas mais imediatas por bens e serviços até a luta política mais ampla. Ainda que nem sempre com força suficiente para a conquista efetiva das reivindicações, esses movimentos permitiram a aglutinação de interesses os mais diversos em torno de projetos construtivos também os mais diversos.

V

É nesse sentido que se torna mais do que pertinente o questionamento acerca das possibilidades de colaboração pedagógica entre essas redes de movimentos sociais e as redes formais de ensino. Uma das questões mais discutidas hoje, como forma de ampliar e melhorar o atendimento das redes públicas de ensino, é a que reivindica a participação da comunidade no processo educativo escolar. Em nome da cooperação institucional, da divisão de responsabilidades e da integração vida/escola, reivindica-se a participação da família, da Igreja, do empresariado, das entidades organizadas da sociedade civil, enfim, da comunidade, como forma de permitir a melhoria da qualidade do ensino.

Ora, quem é essa comunidade que é chamada a participar? Qual a abertura que as instituições de ensino permitem à participação comunitária? Que valor os membros da comunidade local atribuem à Escola? Que redes de movimentos sociais e culturais se constituem na localidade e como esses movimentos se interagem com a Escola? Que espaços sociais extra-escolares incorporam maiores potencialidades agregadoras de interesses, que interesses são esses e como eles se relacionam com a produção, a sistematização e a difusão do conhecimento? Que condicionantes materiais e ideológicos orientam as práticas sociais de indivíduos e grupos sociais no seu cotidiano? Que conflitos emergem da diversidade de interesses decorrentes das contradições que caracterizam a realidade local? Como a eleição para diretores e o Colegiado constituem espaços abertos de discussão dessas e outras questões que emergem no cotidiano da escola?

Apontar com precisão as possibilidades educativas dos movimentos sociais em si (educação informal), assim como suas possibilidades de colaboração na educação formal, não é tarefa fácil, uma vez que tanto eles quanto as escolas têm talvez mais especificidades do que características comuns. De qualquer forma, há motivos mais do que suficientes para suspeitar que essa tentativa de abertura da Escola ao seu exterior é o reconhecimento do seu fracasso enquanto instância provedora daquilo que, por longo tempo, foi tomado como antídoto à ignorância e, portanto, às formas de exploração: a razão ilustrada.

Reconhecer esse fracasso já é, por si mesmo, uma virtude. Por esse raciocínio talvez fosse mais adequado perguntar, então, não em que os movimentos sociais podem contribuir pedagogicamente para a escolarização, mas que tipo de escolarização pode contribuir para a formação dos indivíduos que, diuturnamente, se formam nos movimentos de que fazem parte, uma vez que é nas práticas sociais concretas onde eles deparam com a necessidade ou não de instrução explícita. Segundo Crhistian Baudelot (BAUDELOT, 1991), lutar pela democratização da educação não é lutar pela transformação de todos os indivíduos em engenheiros ou advogados. Não se trata, tampouco, de convencer os não-escolarizados de que não se tornaram engenheiros ou advogados por incompetência própria. Trata-se, isto sim, de lutar pela construção da cidadania ali, onde se encontram maciçamente matriculados os filhos dos trabalhadores e onde se encontram eles próprios inseridos no processo produtivo. Como bem diz o professor Miguel Arroyo, suspeitando da Escola como espaço de construção da cidadania (afinal, como professores podem discutir cidadania com seus alunos, se eles próprios se tornaram cidadãos de segunda ou terceira categoria!):

“Reconhecer esses processos de constituição da cidadania e da identidade política onde eles estão se dando não significa cair na visão ingênua do culto ao popular, nem passar do elitismo pedagógico ao populismo pedagógico, nem voltar a uma concepção épica da história, onde o antigo vilão, o povo, seja agora o herói. […] Nessa perspectiva, a luta pela educação, pela cultura, pelo saber e pela instrução encontra sentido, se inserida nesse movimento de constituição da identidade política do povo comum. Essa luta é um momento educativo enquanto representa uma movimentação, organização, confronto, reivindicação e, consequentemente, expressão e prática de consciência do legítimo e do devido. […] Esse aspecto, por onde se vincula estreitamente educação-cidadania, tem sido pouco pesquisado e refletido” (ARROYO, 1993:77).

A principal tarefa, portanto, de profissionais da educação, alunos e pais de alunos e de todos os interessados pelas questões educativas é questionar e analisar a constituição própria, específica, particular de cada comunidade, sua dinâmica e seus problemas, seu funcionamento e seus conflitos, suas possibilidades e seus limites, relacionando-os o contexto mais geral do processo de produção capitalista, matriz geral da organização da sociedade atual. A Sociologia da Educação, área do conhecimento sociológico voltada especificamente para a análise das relações entre escolarização e sociedade, pode contribuir para essas reflexões. Não é sua tarefa elaborar receitas para consumo imediato do público escolar. Isso já se mostrou ineficaz. Talvez lhe seja possível apontar, como diz Baudelot, no interior da jungle escolar, algumas das vias por onde se pode chegar ao terreno cultivável, permitindo, assim, aos profissionais do ensino, evitar a perda de tempo e energia, lutando contra estruturas que não se transformam pela intenção dos agentes, apesar da sua boa vontade.

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