Historia da morte de Jacques Le Goff

 

Morreu o historiador das mentalidades Jacques Le Goff

Especialista em Idade Média, o francês Jacques Le Goff tinha 90 anos. Era um dos mais eminentes historiadores das mentalidades. Morreu hoje em Paris, anunciou a sua família ao Le Monde.

Nascido em Toulon em 1924, Jacques Le Goff foi muito marcado pela influência familiar: sobretudo pelo avô defensor da laicidade e da escola pública e pela avó profundamente religiosa.

Formado em História em 1950, em 1972 torna-se diretor da École des Hautes Études em Sciences Sociales. Na sua longa carreira, Le Goff dedicou-se à Antropologia Medieval, cuja abordagem modificou ao estudar todos os aspetos da vida em sociedade. Herdeiro da Escola dos Annales, que alterou a forma de olhar a História nos anos 1930, este especialista em Médio Oriente é autor de obras como O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval, Heróis e Maravilhas da Idade Média ou Reflexões sobre a História, traduzidas em português.

“Antes havia o Inferno e o Paraíso. Eu descobri um novo espaço para além destes”, confidenciou Le Goff à AFP em 2008.

Jovem investigador, vivera em Praga a chegada ao poder dos comunistas, em 1948. Ele próprio era considerado um homem de esquerda e militante por uma Europa unida, forte e tolerante. Além do francês, Le Goff era fluente em inglês, italiano, polaco e alemão.

Preocupado em chegar a um público mais abrangente, o historiador teve, a partir de 1966, um programa na rádio France Culture.

Foi ainda conselheiro científico na rodagem do filme O Nome da Rosa, adaptação ao cinema do romance homónimo de Umberto Eco.

Meu primeiro contato com Jacques Le Goff (1924-2014) aconteceu quando de meu retorno à universidade brasileira, no início da década de 90 do século XX. Havia abandonado o curso de História, em 1981 (na Universidade Santa Úrsula), para me dedicar integralmente à Música. Perdi a matrícula e, no final da década de 80, decidi retornar. A música se esgotara, perdera um pouco de seu encanto para mim. Ao reingressar no ambiente acadêmico (na Universidade Estácio de Sá), deparei-me com a coleção História, novas abordagens, novos objetos, novos problemas, trilogia por ele organizada (juntamente com Pierre Nora [1931-2012]) e originalmente publicada em 1974.1 Fiquei fascinado com o novo mundo transdisciplinar que se abria para a História (e que ainda, infelizmente, não foi descoberto pelas novas gerações, com dignas e honrosas exceções). Não só a Política, não só a Economia, mas a História conceitual, a Arqueologia, a Literatura, a Arte, o Clima, o Corpo, enfim, o tempo, em todas as suas ricas contradições, diversidades e paradoxos.

Além da apresentação, Le Goff assinava um artigo, ainda marcante no início da década de 90 (mesmo com duas décadas de atraso, pois foi publicado em 1974), “As mentalidades: uma história ambígua”, quando afirmava que, ao se estudar as mentalidades, o historiador se aproximava do psicólogo, pois a mentalidade situava-se na intercessão do individual e do coletivo, do tempo longo e do cotidiano, do inconsciente e do intencional, do estrutural e do conjuntural, do marginal e do geral.2 Foi quando conheci um pouco de seu pensamento. E de seu belo texto. Jacques Le Goff foi meu Hobsbawm medieval (1917-2012).3

Assim, “conheci” Le Goff com um texto teórico.4 Fiquei fascinado. Era tão diferente da História então defendida e ensinada pelos professores! Mesmo no início da década de 90 – o Brasil tinha então uma defasagem, um delay em relação ao Primeiro Mundo (já no século XXI, uma curiosa história me foi contada por alunos da UFES, a respeito de uma professora, que fez uma “experiência” em sala: “– Fechem os olhos”, disse à turma. Todos, atônitos, fecharam. Por um minuto. “Viram? Isso é a história das mentalidades…”). That’s Brazil…

Ainda em minha graduação, em 1993 um curso de extensão foi dedicado àquela trilogia. Não foram muitos os inscritos, mas lá estava eu. Mas, de resto, não voltei a lê-lo na graduação. Na faixa dos 45-50 anos em 1993 – ou seja, nascidos na década de 40, os professores eram marxistas, alguns bem ortodoxos. A esquerda, aliás, era bastante diferente. Mais culta. Mais tolerante? Não sei. De qualquer modo, a História Nova proposta por Le Goff & Cia., apesar de ideologicamente de esquerda, por suas propostas de ampliação dos horizontes de pesquisa, era suspeita aos olhos da Velha Guarda de Moscou.5 Onde já se viu estudar o corpo? Assim, que o pioneirismo seja reconhecido aos pioneiros: a geração francesa dos Annales realmente mudou a forma de se estudar o passado.6 E Le Goff deu uma notável contribuição à mudança desse panorama “economia-política” estereofônico dominante.

Ingressei no mestrado logo após ter concluído a graduação. Em 1994, Le Goff entrou de corpo e alma em minha formação. Aliás, “a dobradinha Duby-Le Goff” era como meu mestre Ciro Cardoso (1942-2013) se referia a eles – Georges Duby (1919-1996) e Jacques Le Goff. Ironicamente, claro. Apesar de heterodoxo, Ciro era um marxista dos velhos debates teóricos dos “modos de produção” das décadas de 60 e 70.

O primeiro livro lido e discutido no grupo de pesquisa de História Medieval da UFF (dirigido pela Profa. Dra. Vânia Leite Fróes) foi Os intelectuais na Idade Média7, redigido em 1957 (a partir de agora, colocarei duas datas: a das publicações originais e a das edições brasileiras e/ou portuguesas). Apesar de na época não ter gostado da aplicação do conceito gramsciano de intelectual orgânico como pano de fundo interpretativo da revolução cultural movida pelos intelectuais do século XIII – ainda penso que não se adequa, de modo algum, para explicar aqueles homens – gostei do livro. É enxuto, conciso. Leve. Mas me senti muito reconfortado quando, mais tarde, ao ler, durante meu doutorado, o instigante Pensar na Idade Média8 (de 1991), do filósofo Alain de Libera (1948- ), vi que não estava só em meu pensamento crítico (ainda que silencioso): o filósofo francês simplesmente demoliu a tese de Le Goff do intelectual orgânico para se referir aos pensadores medievais como “os primeiros intelectuais” e ao século XII como o “nascimento dos intelectuais”! Foi quando percebi que só encontraria fora do Brasil a liberdade de pensamento crítico em relação ao ex-diretor da École des hautes études en sciences sociales (EHESS). E, desafortunadamente, ainda vivemos nessa submissão colonial latino-americana em relação aos historiadores europeus. Mas o livro de Le Goff marcou época. Hoje parece-me inteiramente datado. Para De Libera também.

A seguir, ou simultaneamente, li O Homem Medieval (1994/1994), outra reunião de artigos de especialistas.9 Le Goff prefacia – seus prefácios são muito sintéticos e esclarecedores. Então entendi um pouco seu “sucesso”: além de propor novos temas ligados à espiritualidade medieval (âmbito pouco explorado pela tradição acadêmica-historiográfica anterior, pois se distanciava do material), como o visível e o invisível, o Além, o milagre, a mentalidade simbólica, as cores e as imagens, etc., e assim seguir com sua interpretação de modo mais próximo aos documentos, nosso autor esquematiza tipos sociais (o intelectual, o burguês, o marginal, o santo, etc.). Ou seja: de um lado, Le Goff segue a tradição materialista e simplifica, esquematiza a realidade para explicá-la de modo mais pedagógico; de outro, abre possibilidades interpretativas com o mundo dos documentos de época (que, no caso da Idade Média, dão um enorme espaço a esses temas antes desprezados pelos marxismos).

Ainda durante meu mestrado, li as quatro obras de sua lavra que mais me marcaram: Para um novo conceito de Idade Média. Tempo, Trabalho e Cultura no Ocidente10 (1977/1980) – uma reunião de artigos escritos em diferentes épocas –, O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval11 (1983/1990), O Imaginário Medieval12 (1985/1994) e A Civilização do Ocidente Medieval13 (02 volumes, 1964/1984). Em outras palavras, durante meu período na UFF, fui, quase que literalmente, um legoffiano. Talvez por isso sinto-me à vontade para criticar o que não gosto de sua reconstrução da Idade Média (além de, realmente, ter lido!).

A Civilização do Ocidente Medieval marcou-me profundamente – e decepcionou-me do mesmo modo, anos depois (quando pude ter acesso às fontes por ele citadas), especialmente seu volume mais propositivo (o segundo).

Mas vamos por partes. O primeiro volume, narrativo, fatual, é uma delícia. Sintético, denso e leve. Reli-o várias vezes. Foi ele que me seduziu, quando iniciava meus estudos sobre a Idade Média. Até hoje gosto de consultá-lo, mas não sem antes confrontá-lo com outros manuais. Sim, ele é um manual. Sem se restringir à narrativa, Le Goff simultaneamente problematiza. E sugere temas (quantas vezes não me deu ideias de pesquisa!). “A natureza e o universo”, “clareiras e florestas”, “Entre a Terra e o Céu: os anjos”; a imaginação temática do autor francês marcou geração. De modo visionário. Para me restringir a um exemplo, quando, no início de 2000, decidi estudar os anjos (com projeto de pesquisa registrado) – em filosofia, a área é denominada de angelologia – virei motivo de chacota entre os alunos, “acostumados” por seus professores a estudar a política, a economia que, além disso, pensavam de modo linear, evolutivo (e ainda pensam, infelizmente). Mesmo nesse aspecto, trinta anos antes, Le Goff, inspirado por Fernand Braudel (1902-1985), “pulveriza” o tempo (“tempo natural e tempo rural”, “tempo senhorial”, “tempo religioso e clerical”). Uma perspectiva originalíssima.14 As propostas temáticas se multiplicam no volume 2. Hoje as conclusões de muitas estão datadas – o que não tira seu caráter visionário. Por exemplo, “a mulher e a criança” (quando se baseia na tese, hoje criticadíssima, que a Idade Média não “conheceu” a criança – no final de sua vida, em mais de uma ocasião saiu em defesa de seu amigo Ariès).15 Pior foi se valer do conceito marxista de luta de classes (há vários subitens a respeito). Mas é também compreensível (embora inaceitável para mim): no mundo da Guerra Fria, não se conseguiria espaço editorial sem fazer um agrado aos comitês extraoficiais do partidão (por isso também o intelectual orgânico de 1957…). De qualquer modo, Le Goff nunca se distanciou (como Duby) do modo de pensar das esquerdas. Talvez esse tenha sido seu calcanhar de Aquiles a obstaculizar a melhor compreensão da mentalidade religiosa medieval. Aqui reside sua maior fraqueza como historiador.

Pois sempre que se vê involucrado em um entendimento de uma dada situação em que a Igreja Católica medieval estava envolvida – especialmente com os poderes instituídos – Le Goff dá um passo a mais do que as fontes permitem. Eleva seu nível de desconfiança a priori. Vou dar um exemplo (que, certa vez, me fechou uma porta acadêmica). Ao tratar da conversão do rei Clóvis (c. 466-511) ao catolicismo, ele não hesita em afirmar, anacronicamente, que foi um golpe maquiavélico (quando, na verdade, deveu-se fundamentalmente à ação de sua esposa, a rainha Clotilde da Borgonha [475-545]). Convido o leitor à leitura das fontes a respeito desse acontecimento (crucial) para o desenvolvimento histórico do Ocidente. Os exemplos são muitos. Muitos e dispersos em muitas obras. Mas só a confrontação com os documentos de época permite que se faça essa crítica. Não me alongarei nesse ponto.

Para um novo conceito de Idade Média é uma leitura mais “técnica”. Lá está a preocupação com o tempo, os sistemas de valores, as distintas culturas e a íntima relação da História com a Antropologia. Participei de vários seminários com esse livro como tema. Dele absorvi a necessidade imperativa do aparato crítico, da leitura da melhor bibliografia para adquirir ideias, para confrontá-las (e depois ir às fontes e submetê-las a juízo).

Com O Imaginário Medieval, sem saber, “avancei” duas décadas em relação às obras anteriormente aqui citadas. E o historiador igualmente se aventurou em novos temas, antes intocados pelo materialismo histórico. Estamos agora na década de 1980. As amarras utópicas se afrouxaram um bocado. Por isso o maravilhoso – que, com meus estudos sobre o filósofo Ramon Llull (1232-1316), ganharam força (especialmente com O Livro das Maravilhas, de 128916) – por isso o deserto-floresta, as viagens ao Além (tão caras a Adriana Zierer17), os sonhos!18 Mas ainda a ideologia a submeter o corpo (“Corpo e ideologia no Ocidente medieval”) e os torneios medievais, infelizmente (por exemplo, “Realidades sociais e códigos ideológicos no início do século XIII: um exemplum de Jacques de Vitry sobre os torneios”)! Em contrapartida, “O tempo do exemplum (séc. XIII)” e “O Cristianismo e os sonhos (séculos II-VII)”, todos trabalhos contidos no Imaginário Medieval. Mas, na época, o que mais me chamou a atenção foi a recuperação da história política (Georges Duby já havia “recuperado” Bouvines, em seu Domingo [1973]).19 Le Goff agitou o âmbito medievalístico com seu instigante artigo “A história política continua a ser a espinha dorsal da História?” (publicado em duas obras: O Imaginário Medieval e no Maravilhoso e o Quotidiano…). Como gostei desse texto então!

Não elencarei todos os livros que li de Le Goff. E foram quase todos. São Francisco de Assis (1999), ao contrário do que se pode pensar, não é exatamente uma biografia, mas uma coletânea de quatro textos, dois de 1967, dois de 1981.20 Definitivamente não aprecio essa sua lavra. Nosso autor apresenta um santo preocupado com “a luta de classes [sic], a ascensão dos laicos e os progressos da economia monetária”, quando vê no beijo do poverello d’assisi em um camponês uma manifestação de sua consciência de classe… Não dá! Ainda que seja muito meritório o tratamento dado à análise das palavras, do vocabulário de Francisco, definitivamente conceitos marxistas não explicam de modo satisfatório o universo medieval – ainda que, vá lá, possa ser uma ferramenta para os séculos modernos.

São Luís (1996) pertence a outro calibre – aliás, à medida que envelhece, o historiador compreende melhor o tempo no qual se debruça.21 Uma biografia! E uma biografia total! Aqui estão todas as seus maravilhosos questionamentos (“São Luís existiu?”), suas propostas metodológicas: o sofrimento como tema, a família, as três funções, as palavras e os gestos, o espaço e o tempo, as imagens e as palavras, os espelhos de príncipes (de muita serventia então para mim, que redigia a tese de doutorado, sobre um espelho na enciclopédica Árvore da Ciência do filósofo Ramon Llull).22 Sua primeira parte, narrativa, é quase agradável (a pena de Le Goff discorre melhor na história conceitual, não na narrativa!). No entanto, no final da década de 90, ainda há “bons combates”, defesas corporativas. Por exemplo, a tão propagada tese de Phillipe Ariès de que não houve infância na Idade Média, defendida pelo amigo Le Goff hasta el fin23, esbarra na análise das fontes. Um exemplo: em São Luís, Le Goff reitera: “a criança foi fundamentalmente um não-valor na Idade Média” – ou seja, no máximo as crianças eram estimadas por seus pais, mas eles as amavam naquilo que poderiam vir a ser. Além dos “tijolaços” bibliográficos – típicos da melhor tradição da esquerda (que, costumeiramente, se apoia mais em farta bibliografia do que em fontes primárias) – para fundamentar a tese de Ariès, curiosamente, Le Goff cita João de Salisbury (c. 1120-1180): “Não há necessidade de recomendar muito a criança [aos pais], porque ninguém detesta sua carne” (Policraticus).24 Em outras palavras: ele cita o trecho de uma fonte medieval que diz exatamente o contrário do que afirma sua tese! A lição que tiro desse pequeno exemplo interpretativo é: mesmo os grandes têm que passar pela conferência documental. Fazer uma arqueologia dessa natureza, investigar em que o historiador afirma o que escreve, confrontar suas ideias com suas bases documentais – não com a autoridade de sua fama, ou títulos – é o ofício par excellence do historiador. Aliás, o próprio Le Goff enaltece isso nas entrevistas de 2002 da obra Em busca da Idade Média25 (2003): “Esse contato com o documento cria a fundamental distinção entre o ‘verdadeiro’ historiador, o historiador profissional, e o historiador de segunda mão, que, por mais qualidades que tenha, não passa de um historiador aficionado, um sucedâneo de historiador”). Belíssima distinção.

O tema – Ariès e a criança na Idade Média – retorna em O Deus da Idade Média (2003), um livro notável.26 Curto, mas denso, sugestivo (como, de resto, tudo de sua lavra). Le Goff matiza a questão (seria a idade?): “O problema [da infância] foi muito mal colocado (…) Philippe Ariès se deixou impressionar muito com as críticas (…) a criança não tinha o papel quase divino que tem em certas sociedades, particularmente em nossas sociedades modernas. Ariès foi criticado sob uma má base, a do amor parental e, em particular o amor maternal. Isso foi traduzido como ‘Ariès pretende que os pais e as mães da Idade Média não amavam seus filhos (…) o amor parental e, em particular, o amor maternal existiam na Idade Média. O que evoluiu foi o lugar simbólico da criança. Ocorreu uma extraordinária promoção da criança”. Seja como for, é difícil reconhecer um erro interpretativo. Nosso Le Goff matizou a tese do amigo…

De fato, há em sua bibliografia um notável espaço para as entrevistas. Por amor às cidades (1997) é um belo exemplo27 – além do supracitado O Deus da Idade Média. Mas gostaria de encerrar esse incompletíssimo périplo com um livro que muito me agrada: Uma longa Idade Média28 (2004), outra coletânea (oito artigos e dez entrevistas). E a diferença entre as formas é marcante: enquanto produz para a academia, seu materialismo é mais presente, está mais à frente de suas interpretações. Salta aos olhos. Materialismo com esquemas simplistas (também poderia dizer “pedagógicos”); por sua vez, nas entrevistas, mais à vontade, direcionado por perguntas objetivas, Le Goff “se solta”. Dá-se inclusive ao luxo de “elogiar” a marca cristã do Ocidente medieval: na “bela Idade Média” que existiu de verdade – e que termina para ele em 1800 – até as mulheres foram libertadas pelo cristianismo! Ele nunca diria isso na década de 60.

Há muito mais – de Mercadores e Banqueiros29 (1957) ao Apogeu da Cidade Medieval30 (1980), do Nascimento do Purgatório31 (1981) até Em busca do tempo sagrado32 (2011)… Jacques Le Goff, historiador instigante, propositivo e interrogativo, indicou muitos novos e impensados caminhos. São múltiplas as suas Idades Médias. Gosto mais de algumas do que outras. Leio todas. Nós, medievalistas, fomos agraciados por uma tradição historiográfica que renovou as pesquisas históricas. Desde Marc Bloch (1886-1944) os colegas de outras áreas, inclusive os mais refratários, são obrigados a marcar passo nos medievalistas. Pois foram eles, Le Goff & Cia., os fantásticos recriadores de nosso ofício. E Jacques Le Goff ocupa um lugar de destaque. É parada obrigatória.

À guisa de conclusão, devo reconhecer que ele marcou uma época em minha vida. Foram – e ainda são – muitas e muitas horas de leitura. Terminarei minha relação com ele com um pequeno “causo”. Certa vez, há muitos anos, uma historiadora me perguntou de quem eu gostava mais, de Le Goff ou de Duby. Estava em minha fase Le Goff. Todos passamos por ela. Respondi, sem pestanejar: “– Le Goff”. Ela me olhou, com um olhar bem interrogativo, pois gostava mais de Georges Duby. Hoje, mais maduro, confesso: mudei de opinião. Talvez aos 30 gostasse mais de Le Goff porque seus textos fossem “mais fáceis” para mim. Ainda o contemplo assim. Como disse, ele propõe esquemas interpretativos. Simplifica. Sintetiza e conclui. É, portanto, mais pedagógico. Por isso, nada mais natural que, durante minha formação, gostasse mais de seus textos. Já Duby é mais complexo. Não facilita. E tem um texto para poucos. Para pouquíssimos. Aos “cinquenta”, me delicio com seu artesanato textual, precioso. Mas Le Goff faz parte da formação de qualquer medievalista. Por isso, fez da minha. Por isso, presto, com a devida vênia, meu reconhecimento.

Agora devo retornar à Uma História do Corpo na Idade Média33 (de 2003, sua parceria com Nicholas Truong) e a duas obras “biográficas”: Heróis e maravilhas da Idade Média34 (2005) e Homens e Mulheres da Idade Média35 (2012). Como Georges Duby retornou ao acontecimento, traço marcante da histoire événementielle, no final da vida Le Goff retomou as biografias! – de uma certa forma, suas entrevistas, reunidas em livros, também continham um tanto de autobiográficas36 (isso sem contar sua impressionante e transparente contribuição para a coletânea Ensaios de Ego-História – quando vemos que a Idade Média também foi para ele, muito psicanaliticamente, uma espécie de ajuste de contas com a memória de sua mãe.37 De minha parte, achei fantástico. Afinal, preciso de suas sugestões e interrogações para continuar a instigar minhas próprias investigações. Afinal, não podemos negar: somos todos filhos de Le Goff. Para o bem e para o mal.

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