Guy Brousseau

 

Para o educador francês, conhecer e utilizar a forma de raciocinar na disciplina ajuda a argumentar e debater a validade das explicações

Foto: Rodrigo Erib

Lecionar para uma turma multisseriada com alunos com idades entre 5 e 14 anos era o desafio deste educador francês em 1953. Com base nessa prática, surgiram as primeiras reflexões sobre como as crianças aprendem Matemática e os métodos de ensino mais eficazes.

Hoje, a obra de Guy Brousseau é considerada uma referência na área. Sua contribuição mais célebre, a Teoria das Situações Didáticas, investiga as interações entre alunos, professores e conhecimentos, conferindo um papel ativo aos estudantes na busca pelo saber e considerando o erro como parte valiosa desse processo.

Mais do que a aquisição dos conteúdos matemáticos, o pesquisador defende que o aprendizado de uma forma de raciocinar própria da disciplina ajuda a construir relações de igualdade. “Se todos tiverem acesso à cultura Matemática, sabendo elaborar perguntas e hipóteses como fazem os profissionais da área, será mais fácil que exijam explicações e discutam se determinada justificativa é verdadeira ou falsa”, argumenta.

Doutor honoris causa em cinco instituições, aposentado pela Universidade de Bordeaux, na França, onde foi diretor do Laboratório de Didática das Ciências e das Tecnologias, Brousseau esteve no Brasil em outubro como um dos palestrantes da Semana da Educação 2009, realizada pela Fundação Victor Civita (FVC). Na ocasião, ele contou a NOVA ESCOLA detalhes sobre seu trabalho.

Hoje em dia, parece haver certo consenso de que, a menos que o estudante escolha uma carreira na área de exatas, é possível viver sem a Matemática. Essa visão está correta?
GUY BROUSSEAU Não, mas essa opinião tem certa razão de ser. Com as inovações tecnológicas, a face mais visível da Matemática escolar, os cálculos, sobretudo os feitos a mão, perderam muito de sua utilidade. Hoje, as máquinas que nos dizem quanto pagar, o visor de uma balança mostra com precisão o peso e assim por diante. Por isso, é senso comum, mesmo entre alguns intelectuais, que pode-se viver sem os saberes da disciplina. As crianças também acreditam nisso e não se importam de não saber. Elas dizem: “Não sou matemático nem vou ser, não gosto desse tema e não preciso aprender”. Mas é um erro considerar que os saberes da disciplina se restringem ao cálculo.

A escola incorporou as mudanças ocorridas na sociedade?
BROUSSEAU 
Não. Para muitas pessoas, a Educação ainda é a reprodução de uma cultura antiga. Dessa forma, há um conflito entre as necessidades atuais e a conservação do que as pessoas consideram como suas tradições. O acesso à Matemática nas instituições ainda se dá por meio do cálculo. Isso significa que os alunos não devem mais aprender esse conteúdo? A resposta é não. É preciso aprender cálculo, mas a que preço? E de que tipo? Atualmente, ninguém mais utiliza os métodos de cálculo manual que foram eficazes no passado. Apenas a escola.

Qual deve ser o objetivo da Matemática escolar?
BROUSSEAU 
A ideia é garantir que todos possam aprender a disciplina, apropriando-se de seus principais saberes e, sobretudo, da construção do raciocínio. Para argumentar adequadamente, por exemplo, você precisa do saber matemático. Ele permite, entre outras coisas, discutir se algo é verdadeiro ou falso, o que é valioso para o cidadão estabelecer com os demais membros de uma sociedade uma relação de igualdade, questionando e exigindo uma prestação de contas.

Como garantir que todos os estudantes possam, de fato, compreender e utilizar a Matemática?
BROUSSEAU
 Nenhum professor pode garantir que todos os seus alunos vão aprender e compreender Matemática. O que ele pode e deve garantir são as condições didáticas necessárias para que os estudantes aprendam. Defendo que o fundamental é entrar na cultura matemática, ou seja, a linguagem e o jeito de fazer a disciplina. Isso deve ser feito à moda dos matemáticos, que utilizam essa ciência para expressar uma forma de pensar – e não apenas uma recitação, como ocorre na escola, por meio da repetição de conteúdos que os alunos não entendem.

Que críticas podem ser feitas a esse ensino baseado na recitação?
BROUSSEAU
 O maior problema é que, se o professor informa de antemão aquilo que deseja ouvir, os alunos não constroem o conhecimento e não falam por si próprios, apenas citam e repetem o docente. Há estudantes que se apropriam do que ele fala e avançam, mas há outros que se preocupam somente em se lembrar do que disse.

Em que consiste a Teoria das Situações Didáticas?
BROUSSEAU
 A base dela é a garantia de condições para a construção do conhecimento matemático organizadas em função dos saberes próprios da disciplina. A esse respeito, existem três tipos de situação que me interessam: aquelas que convocam à tomada de decisões, ou seja, que colocam os alunos em ação, as que permitem formular ideias e colocá-las à prova e, por último, os debates, momento em que o grupo discute estratégias de resolução, avaliando quais opções são mais adequadas.

Mas o que é uma situação didática?
BROUSSEAU
 É uma relação entre os alunos, o professor e o conhecimento, planejada pelo docente para que todos se apropriem, de maneira significativa, de um saber específico da área. Nela, o estudante aplica o que sabe na resolução de um desafio, faz aproximações e explicita os procedimentos e raciocínios utilizados. É uma simulação do trabalho de um matemático, que cria instrumentos para resolver um problema (leia a reportagem sobre o tema em EJA). Alguns educadores pensam que agem assim simplesmente lançando perguntas para serem respondidas. Mas o fato é que, quando as observamos de perto, vemos que são feitas para derrubar os estudantes, e não para realmente pôr em jogo as ideias deles.

Qual o papel do conhecimento que os alunos já possuem no momento de resolver uma situação didática?
BROUSSEAU
 Eles podem encaminhar ou não a solução do problema – aliás, é para validar ou refutar as ideias deles que as situações didáticas são propostas. Inicialmente, cada um dá um passo utilizando o que sabe para formular hipóteses de resolução. Quando não dá certo, o estudante elimina os conhecimentos inadequados para aquela situação e começa a pensar em outras possibilidades.

Como o professor pode auxiliar nesse processo?
BROUSSEAU
 Uma providência essencial é mostrar a importância de saber realizar perguntas para aprender. Fazer Matemática – na verdade, fazer qualquer pesquisa – é elaborar boas questões e depois respondê-las. Na maioria das escolas, em nenhum momento os alunos são orientados sobre como perguntar. Se o educador não inicia a turma nessa prática, ele não cumpre metade de seu papel. Muitas vezes, quando ele diz “façam perguntas”, elas vêm de todos os cantos e não encaminham para o aprendizado. Se a situação é bem feita, as questões são abertas, mas não demais – só o suficiente para que os estudantes vejam o que é útil ou não para a resolução.

Como deve ser realizada a transposição didática na disciplina?
BROUSSEAU
 Naturalmente, esse movimento de adaptação dos conhecimentos dos pesquisadores e cientistas para permitir que sejam ensinados na escola exige que se pense nas necessidades dos alunos. O problema é que muitas transposições são degradações da Matemática, que são aceitas pelos profissionais da área porque “são para as criancinhas”, mas que acabam impedindo os alunos de realmente se apropriar do saber matemático. Ensinado assim, o conceito vira uma verdade elementar e fica desprovido de valor e sentido. Eu me insurjo contra esse tipo de concepção. Para cada conceito, é preciso estudar a maneira e o momento corretos de ensiná-lo. Essa tarefa requer muito conhecimento de didática específica, área que contempla as formas de utilizar o saber de um determinado campo para ensinar.

É possível dar um exemplo?
BROUSSEAU
 Vou dar um de deturpação, que ocorre com o ensino do sinal de igual. Ele deveria expressar uma equivalência, seja de medidas, seja de objetos (é o caso de a = b). Mas, no Ensino Fundamental, o sentido que ele adquire é do resultado de uma operação. Se apresento a expressão “3 + 4 =”, as crianças correm para realizar a soma porque os professores ensinam dessa forma. Falta fazer algumas perguntas fundamentais: “O que se pode fazer com o 7 para que ele se iguale a alguma coisa?”. Dificilmente os alunos dirão “se tenho 3, com mais 4 chego a 7”. Também não afirmarão, digamos, que 7 = 7, o que lhes parece uma idiotice, mas indica a compreensão do significado do sinal. O fato é que os alunos não entendem. Sou contra ensinar algo falso sob o pretexto de fazer uma introdução – é o caso do sinal de igual em aritmética. Se quero que as crianças vejam sentido em aprender o sinal de igual, preciso abordar também a álgebra, parte da disciplina que deixa mais clara a ideia de equivalência.

O que são erros válidos e qual a importância deles?
BROUSSEAU
 São os necessários para que o estudante avance. Enquanto ele não tiver cometido o erro nem visto alguém fazê-lo, não pode saber se a forma como ele imaginou a resolução é, de fato, um equívoco – ou, ao contrário, se funciona. O que importa é que ele se ponha em ação: na primeira vez, dá errado, na segunda, ele cai de novo, mas, na terceira, pode conseguir resolver o desafio. O processo de construção do conhecimento, nesse sentido, deve considerar os erros.

Como alunos e professores devem encarar os equívocos?
BROUSSEAU
 Penso que devem vê-los como algo que dá solidez ao conhecimento, que o estabelece verdadeiramente. O aluno enfrenta uma situação real: ele fez algo errado. Se não se importar com isso, não aprende nada. Mas, se ele se pergunta o que ocorreu para ter errado e se propõe a investigar, pode avançar. É preciso que os estudantes se habituem com o risco do erro e o assumam.

Por que os exemplos não são adequados ao ensino de Matemática?
BROUSSEAU Não tenho nada contra os exemplos. É preciso dá-los. Tenho críticas, isso sim, à utilização de exercícios similares para que os alunos aprendam a resolver determinado tipo de problema. Por trás dessa repetição automática, há um obstáculo: o professor ensina o exemplo e depois quer que os alunos o reconheçam. Dessa forma, substitui-se a compreensão da resolução de um problema por uma analogia, e não se ensina um método de testar essa hipótese de semelhança, já que é o professor quem a indica. As crianças não colocam em questão a validade do que fazem. Só reproduzem. Para que elas compreendam de fato, é preciso que vejam os riscos dos erros em que podem cair. É preciso apresentar contraexemplos, ou seja, problemas que questionem as associações que estabeleceram, para que sigam vigilantes.

Como deve ser a formação dos professores da área? 
BROUSSEAU
 Eles precisam de cursos em que aprendam o saber matemático e como ensiná-lo. É isso que confere legitimidade à atuação profissional. Um docente sem esse conhecimento é como um médico que não entende de Biologia – um xamã. Infelizmente, os professores não costumam ter acesso a isso na Universidade: até hoje, aprendem um texto e uma maneira de recitá-lo, como se fazer um problema fosse dar uma demonstração dele. Não é: fazer Matemática é reconstituir um problema, reinventá-lo de alguma maneira, colocando os alunos em condição de reconhecê-lo, saber como funciona e resolvê-lo. Nem sempre conseguir realizar isso é fácil. Mas, para ensinar melhor, os professores também podem aprender.

Loader Loading...
EAD Logo Taking too long?

Reload Reload document
| Open Open in new tab

BAIXE O TRABALHO AQUI [23.96 KB]

Latest articles

Trabalhos Relacionados