Globalização americana

 

As posições de política externa da nova administração Bush só surpreendem pelo modo, não pela substância. Depois da uma conturbada eleição, não tendo obtido a maioria dos votos populares e com um Senado empatado entre republicanos e democratas, esperava-se uma actuação prudente no início do mandato de George W. Bush. Não foi o que aconteceu: o novo Presidente entrou à bruta. Mas aquele que já é designado como o Governo americano mais conservador desde Herbert Hoover, há 70 anos (ultrapassando Reagan pela direita, portanto), está a seguir na cena internacional uma agenda traçada há muito.Não se trata propriamente de uma agenda isolacionista, embora seja claro o propósito de Bush de reduzir o envolvimento dos Estados Unidos nos Balcãs, no Médio Oriente, na Irlanda do Norte, no diferendo entre as duas Coreias, etc. A palavra adequada é unilateralismo – ou seja, tomar decisões tendo apenas em conta interesses americanos, sem procurar consensos com os aliados nem atender a regras internacionais. Não é uma atitude nova: lembremos as sanções da lei Helms-Burton a empresas de todo o mundo que negociassem com Cuba. Ou a não ratificação pelo Senado, em 2000, do acordo para abolir experiências nucleares. Mas a tendência ganha agora uma outra dimensão, e não apenas por causa do projecto norte-americano de defesa antimíssil.Apesar de o pragmático Colin Powell tentar deitar alguma água na fervura, prevalece agora em Washington a facção ideologicamente radical dos republicanos: pessoas que detestam organizações internacionais (como a ONU ou o Tribunal Penal Internacional) e querem desembaraçar os Estados Unidos de limitações impostas por um direito internacional que desprezam. “America first”, portanto (já houve “Deutschland uber alles”…). Ter deixado cair o acordo ambiental de Quioto foi significativo. O ambiente é um verdadeiro património colectivo da humanidade, uma área onde acções ou omissões meramente nacionais fazem cada vez menos sentido. O “bem comum mundial” (para usar uma expressão de João Paulo II) impõe aí, com particular evidência, o primado de uma regulação internacional. Por isso choca que quem produz um quarto das emissões mundiais de CO2 e, por cabeça, o dobro da média dos países desenvolvidos e dez vezes a média do Terceiro Mundo, se ponha de fora do esforço internacional para conter essas emissões (liquidando, na prática, tal esforço, até por motivos de competitividade empresarial: a curto prazo, a energia torna-se, assim, mais barata nos EUA).O “novo realismo” americano, como lhe chama a Casa Branca, significa que os EUA de Bush não se sentem obrigados por compromissos anteriores – desde o Tratado ABM até ao protocolo de Quioto – nem estão interessados na cooperação internacional. Este facto (sublinhado há dias num editorial do “Le Monde”) é particularmente grave num tempo de globalização económica. Talvez os contestatários da globalização, que em Seattle e noutras cidades atacaram violentamente as organizações internacionais, comecem finalmente a perceber que essa posição faz, afinal, o jogo da superpotência que pode mandar sozinha no mundo. Para isso, quanto menos regras e organizações internacionais houver, melhor. O enfraquecimento dessas organizações conduz à plena globalização americana, onde a hegemonia política e económica dos Estados Unidos prevalecerá.Teremos, então, de desistir de um enquadramento político para a globalização, ainda que mínimo? Há esse risco, de facto, porque a potência que deveria liderar tal processo não se mostra nele interessada. Mas não estão perdidas todas as esperanças de evitar uma globalização selvagem, através de um reforço das organizações e do direito internacionais. Repare-se como Bush fez depender a continuidade da ajuda americana à Jugoslávia de uma colaboração de Belgrado com o Tribunal Internacional para julgar os crimes de guerra nos Balcãs (não confundir com o TPI). Ou como o Presidente americano acusou os dirigentes chineses de violarem o direito internacional no caso do avião retido na China. Duplicidade e hipocrisia de quem se está “nas tintas” para regras internacionais? Sem dúvida, mas também sinal de que, mesmo a uma superpotência, convém às vezes que essas regras existam. Washington precisa da cooperação internacional – menos do que outros países, claro, mas também precisa. Ainda que os Estados Unidos estivessem dispostos a ser os polícias do planeta (e não estão), dificilmente poderiam exercer essa função sem a colaboração activa de outros países. Além disso, um mundo globalizado – como cada vez mais ele é – mas desregulado significará o fim da democracia: passarão a mandar, quase sem limites, os poderes sem rosto do mercado, anónimos e politicamente irresponsáveis (respondem perante accionistas, não perante os cidadãos). Não me parece que isso interesse à maioria dos americanos, por muito alheados que estejam do mundo exterior ao seu país. Vamos a ver quanto tempo vão demorar a compreendê-lo. O diferendo com a China por causa do avião talvez ajude a abrir os olhos.

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