Educação Física: Sobre o Modo Tecnicista de Pensar

 

 

Algumas perguntas nos vêem quando observamos um professor de Educação Física determinando que os alunos corram em volta do pátio ou da quadra, repitam movimentos ginásticos, dêem toques de voleibol na parede ou façam arremessos à cesta: por que e para que os alunos têm que fazer isto? Qual o significado disto para o aluno? Isto é Educação Física? Isto é educação? É comum ouvirmos que, em nome de uma certa “ética profissional”, não podemos interpelar o colega de trabalho sob a pena de estarmos sendo antiético. Preferimos receber esta sentença, a ser cúmplice de algumas coisas que são feitas com e em nome da Educação Física. A origem híbrida da Educação Física, iniciando pelas instituições militares, passando pela fundamentação das ciências biomédicas e manifestando-se, sobretudo, através do desporto, fez desta prática uma das mais tecnicistas no contexto escolar. Isto se deveu a sobreposição das tendências ao longo da história que, a partir do higienismo do século XIX que foi incorporado pela tendência militarista nos anos trinta e quarenta (para desenvolver o vigor físico é preciso ter saúde) e ambas foram absorvidas pela tendência competitivista que, segundo Ghiraldelli Júnior (1988) instalou-se no Brasil a partir de 1965, seguindo a mesma lógica (para alcançar o desejado sucesso esportivo é necessário ter saúde e disciplina).

A tendência competitivista (1965-1984) colocou o desporto como diretriz da Educação Física Escolar no Brasil, devendo esta pautar seus objetivos, conteúdos e avaliações no desenvolvimento da aptidão física, da técnica e do rendimento desportivo. Com isso, a prática esportiva que seria um meio de educação pelo movimento acabou transformando-se num fim em si mesmo na medida em que deixou de cumprir o seu papel educativo para assumir os objetivos do esporte de rendimento. Desta forma, a aula de Educação Física virou sessão de treinamento desportivo, a escola virou um clube, o professor um treinador e o aluno um atleta. Neste sentido, é Oliveira quem nos ajuda a desmistificar este estigma:

“Não pretendemos excluir o desenvolvimento da aptidão física das preocupações da Educação Física. Nem o desenvolvimento de habilidades motoras por intermédio dos jogos e esportes. Correríamos o risco de descaracterizar a profissão. O fundamental é que se compreenda que essas atividades são meios e não fins” (1994: p.89).

Em que sentido o conteúdo desportivo das aulas de Educação Física, utilizado como um fim em si mesmo, contribuiria para a superação da condição explorada e dominada da clientela que freqüenta a escola, sobretudo da escola pública? As regras desportivas exigidas nessas aulas, por serem padronizadas internacionalmente, não permitem que sejam discutidas e questionadas; apenas respeitadas e obedecidas. Neste sentido, é literalmente a educação para o conformismo, pois um comportamento não conformado, nesta concepção elitista e dominante da Educação Física, não leva a modificações no esporte, mas à exclusão dele. Por isso Bracht afirmou que “a criança que pratica esporte respeita as regras do jogo… capitalista” (In Oliveira,1987: p.180).

Embora Betti (1991) tenha chamado a atenção para que as características essenciais do esporte como rendimento, hierarquização, codificação etc, sejam a mesma em toda parte, mesmo em paises não-capitalistas, a crítica de Bracht alerta até mesmo os professores bem intencionados que justificam o esporte como um fator de socialização, que isto não é um processo neutro: da forma desvirtuada como foi implantado na escola, o esporte desenvolve a obediência sem consciência, pois para participar do jogo é preciso se submeter às suas regras, respeitando-as e obedecendo-as; caso contrário haverá exclusão do desviante. As regras oficiais, ensinadas e exigidas neste modelo de Educação Física tecnicista e competitivista, levam o aluno a reconhecê-las, respeitá-las e obedecê-las de maneira incondicional, irrefletida e inquestionável, desenvolvendo no indivíduo uma personalidade passiva, submissa, acrítica e conformista. Da mesma forma em que se busca inculcar nos alunos, vistos como atletas em potencial, que vencer no esporte significa vencer na vida, também são inculcados valores inversos: para a harmonia do convívio social, assim como no esporte, é preciso se submeter às regras, regras sociais, especificamente às leis. É preciso ter determinado comportamento, obedecer a “ordens” para que possamos alcançar “progresso”. Miranda afirma que “uma crítica à escola capitalista é que ela impõe uma cultura que considera legítima, tornando ilegítima qualquer outra manifestação cultural” (1991, p 134).Desta forma, uma aula tecnicista em que o professor utiliza o desporto formal, institucionalizado, com suas regras imutáveis e inquestionáveis, assume o papel de controle social através da “adaptação do praticante aos valores e normas dominantes, como condição alegada para o funcionalidade e desenvolvimento da sociedade” (Bracht, Ibid, p.182).

Os valores e normas da sociedade e do jogo são apresentados como normais e desejáveis e devem ser incorporados, assumidos e consentidos por todos, exploradores e explorados, como natural, sob pena de estragar o jogo e levar a sociedade ao caos.

Além disso, para aceitarmos o esporte na escola, ou mesmo a escola, como elemento socializador, teríamos que partir do pressuposto de que a sociedade é harmônica e funcional, ou seja, se acreditarmos que o papel da educação é adaptar o homem à sociedade, haveríamos de convir que a sociedade funciona muito bem, e não cheia de contradições, desigualdades e injustiças como se apresenta hoje, a sociedade brasileira.Desta forma, a socialização deveria se pautar no desenvolvimento de uma visão crítica e consciente da realidade como fator de transformação social.

Em 1983, auge da tendência competitivista, Costa, baseada na sua dissertação de mestrado, publicou o livro Prática da Educação Física no 1º Grau – Modelo de Reprodução ou Perspectiva de Transformação? Este trabalho representou um marco importante no processo de ruptura entre a Educação Física e o treinamento desportivo que vinha ocorrendo na escola, de forma seletiva, elitista e discriminadora com nome de Educação Física. A autora denunciou a esportivização da Educação Física como sendo um modelo de reprodução das desigualdades sociais. O esporte não poderia continuar sendo o foco do sistema de ensino, o objetivo da Educação Física não poderia ser o rendimento esportivo. O professor de Educação Física não poderia mais ser concebido como um disciplinador, um controlador da atividade, um treinador, apenas um técnico desportivo. Os seus alunos, resgata ela, são seres humanos, não máquinas de rendimento esportivo.

Partindo deste princípio e assumindo uma concepção dialética da Educação, Costa indica uma perspectiva de transformação que aponta para o estratégico papel político-transformador da Educação Física e do esporte como elemento da educação. Resgata a proposta original do método da Educação Física Desportiva Generalizada que evidencia o desporto como meio e não como fim. Esclarece que o papel do professor de Educação Física não é ensinar regras ou fundamentos desportivos, desenvolver aptidão física ou habilidades esportivas, formando atletas; mas sim estimular, através das atividades corporais, que podem até ser o jogo ou o próprio esporte, o desenvolvimento das potencialidades afetivas, cognitivas e psicomotoras que integram o ser humano, potencialidades estas, necessárias tanto na prática esportiva quanto na vida cotidiana.

Gadotti afirma que “o Estado, quando lhe interessa, sob o regime capitalista, coopta e assimila a contracultura” (1992: p.162). Os mecanismos ideológicos de controle e persuasão são muito grandes, e acabam conduzindo os dominados na direção dos interesses dos dominantes sem que estes a percebam. A dominação tem se efetivado pela falta de consciência, com o consentimento dos dominados.

Professores, sem perceberem, tornam-se cúmplices do Estado cumprindo fielmente o papel que lhe é definido. Neste sentido, acreditaram e pregaram com um vigor de fazer inveja as tendências identificadas no século XIX até meados do século XX, por Ghiradelli Júnior (1988), e colocaram em prática uma pseudoconcepção de que Educação Física é esporte e que o esporte por si só educa, promove a saúde e a disciplina.

A concepção Competitivista surgiu como conseqüência do capitalismo, pois a competição, o esforço pessoal e coletivo, a precisão e perfeição dos movimentos, o respeito às autoridades, o rendimento técnico, a divisão do trabalho, a maquinização do homem, a obediência incondicional as regras, fazem parte do jogo… Capitalista. A socialização através do esporte, como argumento dos defensores do tecnicismo, representa uma forma de controle social que adapta o praticante aos valores e regras burgueses. Assim, a dominação cultural se efetiva com o consentimento dos dominados, pois o esporte institucionalizado, produto da cultura burguesa e elitista, enquadra os seus praticantes num conjunto de regras que precisam ser obedecidas para não “estragar o jogo”. E os professores de Educação Física, mesmo sendo a maioria deles oriundos das classes proletárias, exploradas e dominadas, reforçam esta sociedade desigual e injusta que eles próprios vivem, criticam e condenam. Sem a colaboração deles, isto jamais se efetivaria: enquanto os professores iam e muitos ainda vão para a escola com um apito no pescoço e uma bola embaixo do braço, só exigindo regra, técnica e tática de jogo aos seus alunos, deixam de promover uma reflexão acerca do corpo, do movimento, do jogo, do esporte, da sociedade. Este fato é perfeitamente compreensível sob a ótica de dominação capitalista.

Betti cita uma observação de Cunha (1984, p. 11), que ilustra o caráter ideológico que pode ser dado à educação: “o conteúdo da Educação Física, assim como o de qualquer outra área de ensino, não é neutro. Ele é instrumento para a formação de um homem, com uma visão prévia de qual homem se deseja formar” (1991: p.126). Neste sentido, a Educação Física historicamente no Brasil vem sendo colocada a serviço da classe dominante a partir da disseminação de valores burgueses através do esporte institucionalizado, com o consentimento e a colaboração dos professores de Educação Física.Acreditamos que esta cumplicidade tem se efetivado pela ingenuidade política dos profissionais de educação, sobretudo de Educação Física, que pela sua formação acrítica, não percebem a dimensão política do seu trabalho pedagógico.Historicamente, os primeiros professores que lecionavam nos cursos de formação de professores de Educação Física eram médicos e militares, que neles imprimiam a sua marca biologizante e adestrante. Como agravante, os dispositivos legais, elaborados tanto pelo Poder Legislativo quanto Executivo, colocam a sua concepção de Educação Física, que mesmo se considerarmos o caráter ideológico à parte, são em função da educação e da Educação Física que tiveram quando passaram pelos bancos escolares.

A formação acrítica, biologizada, militarizada e esportivizada, desprovida de um sentido educacional, fez do professor de Educação Física um dócil cumpridor de leis que não foram elaboradas por educadores, fechando desta forma, o ciclo de reprodução social, tornando-o executivo das determinações legislativas.

De nada adiantaria identificarmos a situação de dominação e de alienação, a cumplicidade da educação na perpetuação das desigualdades sociais e a hegemonia dos grupos no poder, se reconhecêssemos que nada poderia ser feito.Se, como categoria de análise teórica, incorporamos o discurso de Althusser (1992) que concebe a escola como um Aparelho Ideológico do Estado (AIE); como proposta prática nos afastamos dele por não identificarmos uma perspectiva de reversão deste quadro dentro da própria instituição escola; quando lhe falta, segundo Freitag, “a visão histórica e dialética dos AIE e da escola” (1986: p.36). Identificamos em Gramsci (1984) nossas convicções político-pedagógicas, que vê na própria escola, por ser um espaço de contradições, o local para iniciarmos o que Heller (1972) chama de revolução invisível, educando, ensinando, informando, mostrando, desmistificando, formando cidadãos conscientes, críticos, participativos, politizados, sujeitos históricos.

O repensar da Educação Física no Brasil e a função ideológica que ela tem desempenhado ao longo da história já foi feito; prova disso são os inúmeros trabalhos existentes sob a forma de livros, teses e dissertações que desmistificam os pressupostos políticos-ideológicos e denunciam a cumplicidade da Educação Física com as classes dominantes. Este repensar nos permitiu tomar consciência do que fizeram de nós e o que ajudamos a fazer. Uma vez conhecidos estes dados, cabe agora refletirmos com Sartre no sentido do que faremos com aquilo que fizeram de nós. Talvez a partir desta desmistificação, o professor, eixo fundamental deste processo, comece a tomar consciência e deixe de permanecer alheio ao compromisso político do seu trabalho pedagógico.

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