Dia Dos gaúchos – Dia 20 de Setembro

Existe uma enorme comoção acerca da chamada Guerra dos Farrapos ou até Revolução Farroupilha no Rio Grande do Sul. O que ocorreu no estado entre os anos de 1835 e 1845 é tratado pela mídia e inclusive por alguns livros didáticos em tons quase folclóricos e mitológicos. Em muitas escolas públicas as crianças se reúnem ao fim das aulas durante a Semana Farroupilha para ouvir e cantar o hino rio-grandense. Em supostos trajes típicos, adultos e crianças desfilam pelo Acampamento Farroupilha, que remonta a vida colonial das elites escravocratas e colonizadoras.

Toda a movimentação começou com a insatisfação dos poderosos proprietários de terra em relação ao governo regencial. As leis federais lhes impunham altas taxas de comercialização de seus produtos, sendo o charque (carne seca) e couro os mais importantes. Com a possível concorrência da produção de carne uruguaia e argentina, os produtores do sul do Brasil buscavam negociar com o governo regencial condições de taxação dos estrangeiros. Porém, as condições não eram vantajosas aos imperiais, que acabariam gastando mais, principalmente na alimentação dos escravizados.

Em encontros de membros das elites, altos escalões dos militares e intelectuais locais crescia a insatisfação com a capital. A característica fronteiriça da região também trazia exemplos republicanos que incrementavam a insatisfação com o império. A data de 20 de setembro de 1835 marca a ruptura com o governo central e início da guerra, com a tomada de Porto Alegre e a destituição do então presidente provincial Antônio Rodrigues Fernandes Braga.

Sendo um movimento das elites, pouco estavam a par da situação a população escravizada, índios e os pobres. Porém os “rebeldes” necessitavam da participação dessas camadas, pois eles mesmos não tinha como sustentar uma guerra sozinhos. Segundo o historiador Moacyr Flores, que tem sete livros publicados sobre a história dos Farrapos, os escravizados representavam nada menos de 40% da população da província naquela época. Índios e trabalhadores brancos pobres das fazendas, por lei, não podiam ser escravizados mas também não participavam da vida política.

A solução encontrada pelas lideranças militares dos Farrapos foi enganar a população negra. Disseram-lhes que seriam libertados, inclusive alforriaram alguns para garantir que lutassem na guerra.

Assim se formou o pelotão conhecido como Lanceiros Negros. Homens escravizados, que foram à guerra com uma promessa de liberdade que jamais seria cumprida por seus generais. Sem cavalos para evitar a fuga, descalços e armados somente de lanças, os Lanceiros Negros formavam o mais disciplinado e aguerrido setor de uma guerra que jamais foi sua. Lutaram e morreram aos milhares durante quase uma década, pelo lucro de seus generais brancos, fazendeiros, escravocratas. Eram todos soldados rasos, responsáveis por diversas vitórias e pela manutenção do poder de comandantes brancos, que os utilizavam de escudo contra os imperiais.

Os dirigentes farroupilhas, na verdade, não pretendiam a liberdade dos escravos, tampouco uma sociedade democrática ou igualitária. No primeiro momento não pretendiam nem a separação do restante do país, embora houvesse frações separatistas.

O mais destacado destes generais era Bento Gonçalves, um fazendeiro muito rico, coronel e comandante de uma divisão da Guarda Nacional na fronteira sul do estado. Ele mesmo nunca lutou pela abolição. Inclusive quando morreu, em 1847, deixou de herança à família, além de muitas terras, cerca de 50 escravos.

Segundo Moacyr Flores, ele era um autoritário, um verdadeiro ditador.
Antônio de Souza Netto, outro líder farroupilha, também era militar e fazendeiro. Foi quem proclamou a República Rio-Grandense, em 1836, depois de uma improvável vitória dos Lanceiros Negros sobre as tropas imperiais na batalha do Seival. Talvez o único que expressou alguma defesa da abolição da escravatura, mas não deu a batalha no alto escalão do exército farroupilha. Não à toa no projeto da Constituição da República Rio-Grandense sequer era citada a população negra escravizada e os direitos políticos eram mantidos nas mãos dos “homens livres e proprietários”. As mulheres também não tinham direito nenhum, assim como no restante do país. A constituição nunca chegou a ser finalizada e aplicada, mas expressa muito sobre o caráter da revolta farroupilha.

Um dos maiores traidores dos Lanceiros Negros, sem dúvida, foi David Canabarro. Outro fazendeiro militar, custou a entrar na guerra, mas teve participação destacada. Já na fase em que os Farroupilhas estavam negociando sua rendição, o governo imperial não concordava com a promessa de libertação dos escravos que os revoltosos do sul fizeram aos Lanceiros. Ele, então, selou um acordo com Duque de Caxias para resolver o impasse com um verdadeiro banho de sangue.

O episódio é conhecido como a Traição de Porongos, onde o exército imperial é orientado da seguinte forma, conforme cópia do documento que consta no Arquivo Público do Rio Grande do Sul: “No conflito, poupe o sangue brasileiro o quanto puder, particularmente da gente branca da Província ou índios, pois bem sabe que essa pobre gente ainda nos pode ser útil no futuro.”

Acordado de antemão com Canabarro, o massacre seria decisivo para selar a paz entre os rio-grandenses e o governo central. Para garantir que nada saísse errado, os Lanceiros Negros foram desarmados pelo seu comandante. Embora tenham resistido bravamente, 80% dos mortos no episódio eram negros. Muitos dos que não morreram no massacre foram enviados ao sudeste para trabalhar em outras fazendas para o império.

Além das vergonhosas mentiras e traições contra a população negra escravizada, os farroupilhas jamais tiveram sua república reconhecida oficialmente pelo governo central. Inclusive regiões importantes, como os portos da província, nunca foram tomadas pelos revoltosos, o que traz à dúvida a legitimidade dessa república de menos de uma década. Para além das polêmicas, uma ofensiva militar imperial a partir de 1843 e o acordo selado pelo Massacre de Porongos 1844 marcam o fim da República Rio-Grandense. A taxação do charque ficou satisfatória aos estanceiros do sul, e todos os líderes revoltosos foram anistiados.

Historiadores como o já citado Moacyr Flores ainda denunciam que os líderes receberam dinheiro do Império brasileiro para encerrar a guerra. Além disso, os anos de governo farroupilha trazem diversos casos de corrupção, e as tomadas das cidades foram feitas com muita violência, execuções sumárias, degolas, estupros. Tudo isso jamais é comentado para não “sujar” a tradição frente à população.

Muitos ainda argumentam que o fato de os farroupilhas serem escravocratas e utilizarem os negros como bucha de canhão são características de seu tempo. Porém, inclusive antes da Guerra dos Farrapos ocorreram revoltas populares legítimas em outros países, como no Haiti na revolução de São Domingos (1791-1804), de caráter muito mais progressista que a Farroupilha. A característica escravista dos Farroupilhas foi fruto de escolhas econômicas, e não de impossibilidade histórica. Mesmo assim, a “revolução” Farroupilha ainda é tida como o maior feito do povo gaúcho, comemorada e celebrada sem que a massa da população se aproprie da sua própria história.

Ainda nos dias atuais a Guerra dos Farrapos deixa suas marcas. O bairrismo, uma característica muito forte na população, traz consigo também o histórico racismo e a xenofobia com pessoas de outras regiões do país. Até mesmo sentimentos separatistas ainda permeiam o estado, em movimentos sempre ligados à direita e ao conservadorismo. Mesmo em meio à profunda crise econômica que vive o RS, muitos ainda insistem em bordões como “o sul é meu país”. O hino rio-grandense, racista como sua origem, não teme em proclamar: “povo que não virtude acaba por ser escravo.” Na verdade, como escreve o movimento negro nas paredes das cidades “povo que não tem virtude acaba por escravizar”.

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