Controle Abstrato de Constitucionalidade de Leis Orçamentárias

Introdução

A discussão que envolve a possibilidade de controle abstrato de constitucionalidade de normas orçamentárias no Brasil sempre foi um dos temas mais polêmicos e palpitantes no âmbito do direito constitucional doméstico.

Em recentes decisões proferidas em sede de medidas cautelares em ações diretas de inconstitucionalidade, o plenário da Suprema Corte brasileira começa a anunciar a importantíssima mudança de um paradigma clássico que vinha sendo adotado ao longo das últimas duas décadas, segundo o qual as leis orçamentárias em geral, a exemplo da lei de diretrizes orçamentárias (LDO) e a lei orçamentária anual (LOA), não poderiam ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade (ADI).

O objetivo do presente trabalho é alertar a comunidade jurídica para o grande significado e as possíveis consequências da anunciada revisão jurisprudencial no tocante ao controle abstrato de constitucionalidade brasileiro, através de uma abordagem concisa e objetiva, calcada na apreciação do leading case que está ensejando a mudança de pensamento da Corte Constitucional deste país.

1. Posicionamento clássico do STF a respeito do tema: a inadmissibilidade, em regra, do cabimento de ADI cujo objeto seja norma orçamentária.

O Supremo Tribunal Federal brasileiro, ao longo dos últimos 20 anos após o advento da Constituição Federal de 1988, consolidou orientação que limitava o cabimento de ação direta de inconstitucionalidade (ADI) cujo objeto fosse o questionamento de normas orçamentárias, salvo em situações excepcionais.

Referido entendimento se fundava na exigência jurisprudencial de que a lei ou ato normativo impugnados, para serem alvo de ADI – típica ação objetiva de caráter abstrato -, deveriam se revestir dos atributos da abstração, generalidade, normatividade e impessoalidade, conforme orientação consolidada por ocasião do julgamento da ADIn 203-1/DF (2).

Por força desse entendimento, a Suprema Corte brasileira não admitia o questionamento, via ADI, dos chamados atos estatais de efeitos concretos, aqueles atos que, não obstante emanados do Poder Público, são dirigidos a pessoas determinadas ou possuem objeto determinado, não se enquadrando nas exigências já descritas. Note-se que nem mesmo os atos estatais de efeitos concretos aprovados sob a “forma” de lei (lei em sentido formal) poderiam ser atacados pela via abstrata do controle de constitucionalidade propiciado pela ação direta. Segundo entendimento que se tornou clássico na jurisprudência do STF, para fins de cabimento de ADI, dever-se-ia estar-se diante de lei em sentido formal e ao mesmo tempo material, não sendo suficiente a mera aprovação do ato sob a roupagem de lei em sentido formal (= mero processo legislativo de aprovação da espécie normativa).

Pois bem. As leis orçamentárias em geral, de que são exemplos a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA) sempre foram lembradas como típicos exemplos de “leis formais de efeitos concretos”, na consideração de que as normas definidoras das dotações orçamentárias, na maior parte dos casos, encontram destinatários certos e objeto determinado.

Dito em outras palavras, referidas normas orçamentárias poderiam até ter sido aprovadas sob a forma de leis (lei em sentido formal), mas, por não possuírem os caracteres de abstração, generalidade e impessoalidade exigidos pela jurisprudência do STF, não poderiam se sujeitar ao controle abstrato de constitucionalidade propiciado pela ação direta de inconstitucionalidade, por não se caracterizarem como leis em sentido material (3).

Sem embargo, calha advertir que o próprio STF admitia, em situações excepcionais, o cabimento de ADI para impugnar normas orçamentárias, quando o legitimado ativo lograsse demonstrar um mínimo coeficiente de abstração e generalidade do ato impugnado, a exemplo do que restou decidido no julgamento da ADI 2.925, no qual se discutia a abstração da norma que tratava da “suplementação de crédito para reforço de dotações vinculadas aos recursos da CIDE-Combustíveis” (4).

A regra, no entanto – insista-se –, era no sentido do descabimento da ADI para questionamentos de vícios formais ou materiais de inconstitucionalidade em torno de leis orçamentárias, cujos comandos normativos destinam determinadas receitas a uma certa finalidade/despesa (5).

2. A recente revisão jurisprudencial do STF sobre a matéria (MC-ADI n. 4.048-DF).

O Supremo Tribunal Federal começa a rever sua orientação clássica em torno da inviabilidade do uso da ADI para impugnação de leis orçamentárias.

Referida revisão foi amplamente discutida e debatida pelo plenário da Corte por ocasião do julgamento da Medida Cautelar em ADI n. 4.048-DF, tendo como relator o em. Min. Gilmar Mendes.

O questionamento de mérito desta ação se dirigia ao conteúdo da Medida Provisória n. 405/2007, editada em 18.12.2007, em virtude da qual o Presidente da República determinara a abertura de crédito extraordinário a favor de diversos órgãos do Poder Executivo e da Justiça Eleitoral. Afinal, pode o Chefe do Poder Executivo Federal editar Medida Provisória para determinar abertura de crédito extraordinário? Referido procedimento tem base constitucional?

Conforme esclarecido por ocasião do julgamento, nada obsta a utilização de MProv. em matéria de abertura de crédito extraordinário, até porque referido procedimento conta com expressa previsão constitucional (art. 62, par. primeiro, inc. I, alínea “d”, c.c. art. 167, par. terceiro, ambos da CF/88).

Ocorre que, para tal fim, além dos requisitos de relevância e urgência (art. 62 – CF), a Constituição exige que a abertura do crédito extraordinário via MProv. seja feita apenas para atender a despesas imprevisíveis e urgentes, que não possam aguardar o regular transcurso de um processo legislativo ordinário, que muitas vezes se prolonga no tempo por influência de fatores políticos. Como exemplos de situações imprevisíveis que poderão ensejar o uso de medida provisória em matéria de abertura de crédito extraordinário, a própria Constituição Federal cita os casos de “guerra”, “comoção interna” ou “calamidade pública”, os quais constituem vetores para a interpretação/aplicação do art. 167, par. terceiro – CF/88. Fora dos casos de imprevisibilidade e urgência, o uso de medida provisória em matéria de abertura de crédito extraordinário é inconstitucional.

Partindo de tal contexto, após análise da exposição de motivos da MProv. 405/2007, a maioria dos Ministros do STF não encontrou qualquer dificuldade em apurar que a abertura de crédito extraordinário determinada por intermédio do Presidente da República padecia de flagrante vício de inconstitucionalidade, na medida em que os créditos abertos destinavam-se a prover despesas correntes de órgãos do Poder Executivo e da Justiça Eleitoral, que não estavam qualificadas pela imprevisibilidade ou pela urgência, circunstâncias que levaram o Tribunal a reconhecer que a edição da MProv em questão configurou um patente desvirtuamento dos parâmetros constitucionais que permitem a edição de medidas provisórias para a abertura de créditos extraordinários (6).

No entanto, para os fins do presente trabalho, a decisão mais importante do STF não foi propriamente aquela de mérito que reconheceu, em sede cautelar, a inconstitucionalidade da Mprov 405/2007. Na verdade, a grande revisão de jurisprudência que constitui objeto do presente artigo teve sua origem por ocasião de uma questão de ordem, preliminar, sobre o próprio cabimento da ADI 4.048, posto que referida ação se dirigia ao ataque de uma típica norma de caráter orçamentário, a saber, a Medida Provisória 405/2007, que determinara a abertura de crédito extraordinário.

Perceba-se que a ADI 4.048-DF tinha por objetivo atacar uma medida provisória de natureza orçamentária, o que levou os Ministros do STF a levantarem questão de ordem antes mesmo do exame do mérito da ação, a fim de definirem se seria ou não cabível ADI para impugnar uma típica norma orçamentária, vale dizer, se deveria ou não ser aplicado à espécie o entendimento clássico da Corte no sentido do descabimento de ADI que tenha por objeto normas orçamentárias. Apenas a título de melhor esclarecimento, recorde-se o leitor que a MProv 405/2007 determinou a abertura de crédito extraordinário a favor de órgãos do Poder Executivo e da Justiça Eleitoral, do que se conclui que referido ato do Poder Executivo tinha objeto determinado e destinatários certos, um típico ato estatal de efeitos concretos na concepção clássica do Tribunal.

Assim foi que, após ampla discussão, resolveu o Plenário do STF, por maioria de votos, admitir o cabimento da ADI, em julgamento histórico no qual o relator da ação, Min. Gilmar Mendes, chegou ao ponto de enfatizar que, ao passar a admitir o cabimento da ADI para a impugnação abstrata de leis orçamentárias, o STF, por sua nova composição, estava se retratando de um erro do passado.

Para uma melhor compreensão dos debates preliminares, transcreve-se, na sequencia, o resumo da decisão noticiado pelo Informativo – STF n. 502 sobre a MC-ADI 4.048-DF, in verbis:

“Preliminarmente, o Tribunal, por maioria, conheceu da ação, por entender estar-se diante de um tema ou de uma controvérsia constitucional suscitada em abstrato — independente do caráter geral ou específico, concreto ou abstrato de seu objeto — de inegável relevância jurídica e política, que deveria ser analisada a fundo. Asseverou-se que os atos do Poder Público sem caráter de generalidade não se prestam ao controle abstrato de normas, eis que a própria Constituição adotou como objeto desse processo os atos tipicamente normativos, ou seja, aqueles dotados de um mínimo de generalidade e abstração. Considerou-se, entretanto, que outra deveria ser a interpretação no caso de atos editados sob a forma de lei. Ressaltou-se que essas leis formais decorreriam ou da vontade do legislador ou do próprio constituinte, que exigiria que certos atos, mesmo que de efeito concreto, fossem editados sob a forma de lei. Assim, se a Constituição submeteu a lei ao processo de controle abstrato, meio próprio de inovação na ordem jurídica e instrumento adequado de concretização da ordem constitucional, não seria admissível que o intérprete debilitasse essa garantia constitucional, isentando um grande número de atos aprovados sob a forma de lei do controle abstrato de normas e, talvez, de qualquer forma de controle. Aduziu-se, ademais, não haver razões de índole lógica ou jurídica contra a aferição da legitimidade das leis formais no controle abstrato de normas, e que estudos e análises no plano da teoria do direito apontariam a possibilidade tanto de se formular uma lei de efeito concreto de forma genérica e abstrata quanto de se apresentar como lei de efeito concreto regulação abrangente de um complexo mais ou menos amplo de situações. Concluiu-se que, em razão disso, o Supremo não teria andado bem ao reputar as leis de efeito concreto como inidôneas para o controle abstrato de normas. Vencido, no ponto, o Min. Cezar Peluso que não conhecia da ação, por reputar não se tratar no caso de uma lei, sequer no aspecto formal.” (Grifos nossos)

Pela análise comedida e criteriosa dos fundamentos da decisão ora transcrita, percebe-se que o STF, por sua nova composição, procurou estabelecer uma clara distinção entre os atos estatais de efeitos concretos editados “sob a forma de lei” (ou de medida provisória) e os atos estatais de efeitos concretos não editados sob a forma de lei ou de medida provisória (como, por exemplo, os atos administrativos de efeitos concretos). Enquanto os últimos continuariam não podendo ser objeto de questionamento em sede de ADI, os primeiros (editados sob a mera roupagem de lei ou de medida provisória) não mais estariam isentos de controle abstrato de constitucionalidade, podendo ser impugnados, quando formal ou materialmente viciados em sua constitucionalidade, por intermédio de ADI, e não mais apenas através de controle difuso de constitucionalidade.

No caso específico das leis orçamentárias, restou decidido pelos Ministros do STF que as leis orçamentárias seriam atos estatais de efeitos concretos apenas na aparência, já que, para que elas sejam colocadas em prática e efetivamente executadas é que, aí sim, dependeriam da prática de atos de efeitos concretos.

1.Considerações Finais.

Conforme advertência oportuna do ilustre constitucionalista Pedro Lenza (7) ao comentar a recente revisão de jurisprudência ora noticiada, “tendo em vista que a decisão foi tomada em medida cautelar, resta aguardar como se dará a evolução da jurisprudência do STF.”

Ainda assim, tudo está a indicar que, por ocasião do enfrentamento do mérito da ADI 4.048-DF, o Supremo Tribunal Federal brasileiro passará a admitir, doravante, o cabimento de ação direta de inconstitucionalidade cujo objeto seja lei orçamentária, o que, até bem pouco tempo, só poderia ser objeto de questionamento mediante controle difuso incidental ou através de arguição de descumprimento de preceito fundamental.

Trata-se, inequivocamente, de valiosíssima mudança de interpretação jurisprudencial do órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro, máxime por possibilitar um controle jurisdicional mais efetivo, posto que em sede de fiscalização abstrata de constitucionalidade, sobre eventuais transferências de recursos orçamentários de uma dotação para outra, dentro da proposta orçamentária do Governo Federal, notadamente quando referidas transferências se apresentarem totalmente infundadas e obscuras, não se dirigindo para o atendimento de setores prioritários da Constituição, a exemplo da implementação de políticas públicas em geral, em áreas como saúde e educação.

Resta-nos aguardar, confiantes, a confirmação da nova orientação por ocasião do julgamento de mérito.

______________

1) Luciano Coelho Ávila. Promotor de Justiça do MPDFT. Especialista em Direito Processual Civil pela UFSC. Professor de Direito Constitucional do curso FORTIUM (Brasília) e da Escola da Magistratura do DF. Autor de diversos artigos jurídicos publicados em revistas especializadas.

2) ADIn 203-1/DF: “A ação direta de inconstitucionalidade não é sede adequada para o controle da validade jurídico-constitucional de atos concretos, destituídos de qualquer normatividade. Não se tipificam como normativos os atos estatais desvestidos de qualquer coeficiente de abstração, generalidade e impessoalidade. Precedentes do STF.” (rel. Min. Celso de Mello)

3) Nesse sentido, conferir ADI (QO) 1.640 e ADI 2.100.

4) Exemplo extraído da obra Direito Constitucional Esquematizado, Ed. Saraiva, 2008, p. 168, de autoria do emérito prof. Pedro Lenza.

5) Júnior, Dirley da Cunha. Curso de Direito Constitucional. Ed. PODIVM, 2a. Edição, 2008, p. 353/354.

6) Neste particular aspecto, a contundente crítica doutrinária de Márcia Maria Corrêa de Azevedo ao uso excessivo de medidas provisórias no Brasil apresenta-se de todo oportuna, quando afirma, em tom de fina ironia, que “as medidas provisórias representam o câncer que consome, lenta e gradualmente, a saúde de nossa democracia. Como o vírus maligno, de fora, estranho, que veio instalar-se num organismo já meio fraco, debilitado, encontrando então ambiente apropriado para desenvolver-se, modificar o núcleo de células sadias, alterando a estrutura do DNA, reproduzindo-se de modo descontrolado e violento, ocupando todo o espaço da vida sadia, da normalidade. Tem até o nome de vírus – provvedimenti provvisori (com (sic) forza di lege)” (Prática do processo legislativo, São Paulo, Atlas, 2001, p. 178).

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