A Origem da Obra de Arte HEIDEGGER

 

própria obra de arte

O comentário que acompanha nossa tradução de “A Origem da Obra de Arte” tem por centro as transformações conceituais no pensamento heideggeriano que nascem com o surgimento do conceito de terra e da abordagem da essência da obra de arte que lhe é inseparável. Seguindo o fio condutor da questão levantada por Gadamer sobre como conciliar o “mundo” do ser-aí autocompreensor de Ser e Tempo com a “terra”, que em sua entonação poética parecia contrariar o próprio modo de acesso do pensamento em Ser e Tempo, buscamos mostrar que foi justamente e apenas uma leitura hermenêutica do ser da obra de arte que permitiu a conciliação de “mundo” e “terra” e um desenvolvimento conseqüente da noção de verdade originária como jogo de encobrimento e nãoencobrimento no qual o ser-aí humano se encontra lançado. Justamente a consideração da obra de arte porque é a obra de arte que propicia a relação originária entre mundo e terra; e apenas nela porque não se tratou mais para Heidegger, em “A Origem da Obra de Arte”, de aceder à noção de verdade a partir da autocompreensão do ser-aí como ser-no-mundo, mas sim, de chegar a isso por via de uma transposição para o lugar aberto instaurado pela Palavras-chave: Ser e Tempo, obra de arte, mundo, terra, lugar.

established by the artwork itself

The commentary following our translation of “The Origin of the Artwork” seeks to discuss conceptual transformations that have risen in Heidegger’s thought with the appearance of the concept of earth and the approach of artwork’s essence which is connected with it. By following Gadamer’s question about how to conciliate the “world” of the self-understanding Dasein from Being and Time with the new concept of “earth”, which, given its poetic intonation, seemed to contest the very way of accessing thinking in Being and Time, we have sought to show that it was precisely and only the hermeneutic interpretation of the artwork that allowed the conciliation between “world” and “earth”, as well as a proper development of the original understanding of the concept of truth as a game between concealment and unconcealment, in which human Dasein finds itself thrown in. We stress the importance of the hermeneutic interpretation of the artwork precisely because the artwork is itself that which propitiates an original relation between world and earth; and because it was only through such hermeneutic understanding of the artwork that Heidegger achieved a concept of truth not anymore by starting from the self-understanding Dasein as being-in-the-world, but rather by appealing to a transposition to the open-place Keywords: Being and Time, artwork, world, earth, place.

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Agradecimentos VI
Resumo VII
Abstract VIII
Sumário IX
Abreviaturas de Obras de Heidegger 1
Nota da Tradutora 2
Prefácio do Autor 4
A Origem da Obra de Arte 5
A coisa e a obra 8
A obra e a verdade 26
A verdade e a arte 41
Posfácio do Autor 60
Suplemento do Autor 62
Para Introdução, por Hans-Georg Gadamer 6
Glossário 80
Introdução 81
I. “A Origem da Obra de Arte”: nem estética, nem filosofia da arte 86
e Tempo 91
I. 1. A verdade do ser-no-mundo em Ser e Tempo 91
I. 2. Mudança de rumo 101
I. 3. A verdade e a tensão entre mundo e terra manifesta na obra de arte 105
Conclusão 142
Bibliografia 148
Obras de Heidegger: 148

Nas citações a Heidegger, as abreviaturas seguem as iniciais dos títulos em alemão quando a tradução dos trechos é nossa, e seguem as iniciais dos títulos em português quando citamos a partir de outras traduções em português.

“Der Ursprung des Kunstwerkes” = UK

Hinos de Hölderlin = H

Introdução à Metafísica = IM

Os Conceitos Fundamentais da

Metafísica: Mundo, Finitude, Solidão

Sein und Zeit = SZ

Vorträge und Aufsätze = VA

A presente tradução de “Der Ursprung des Kunstwerkes” (“A Origem da Obra de

Arte”) – ensaio baseado em conferências proferidas em 1935 e 36 e inserido por Heidegger em Caminhos de Floresta (Holzwege) – foi feita a partir da versão revisada pelo autor na década de 50 para uma edição especial da Reclam. Esta edição conta com um posfácio e um suplemento escritos pelo autor, além de uma introdução por Hans-Georg Gadamer, a qual se encontra aqui traduzida pela primeira vez para o português. Cotejamos nosso trabalho com a versão portuguesa realizada por Irene Borges Duarte (Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1998), a versão espanhola realizada por Helena Cortés e Arturo Leyte (Madri: Alianza, 2003, 3ª ed.), e a francesa, por Wolfgang Brokmeier (Paris: Gallimard, 2004), todas elas traduções de Holzwege.

Para os termos de estatuto conceitual e tradução mais controversa, algumas vezes nos valemos de soluções já bem consolidadas, como, por exemplo, no caso de “clareira” (Lichtung) e “essência” (Wesen); outras vezes, arriscamos novas opções, tendo em mente que um vocábulo, não podendo ser idealmente traduzido, tem a ganhar com a diversidade de interpretações – foi este o caso de “situabilidade” (Befindlichkeit). A relação dessas soluções encontra-se no glossário ao final.

3 À memória de Theodor Hetzer

Prefácio

A primeira versão do presente ensaio constitui o conteúdo de uma conferência proferida aos 13 de novembro de 1935 na sociedade de ciências da arte em Freiburg i. Br., e repetida em janeiro de 1936 em Zürich, a convite da comunidade estudantil da Universidade. Os “Caminhos de Floresta” trazem o texto das três conferências em livre alto alemão em Frankfurt a.M. aos 17 de novembro e 24 de novembro e 4 de dezembro de 1936. O posfácio foi escrito à parte, depois.

O texto dos “Caminhos de Floresta” retomado nesta edição especial encontra-se revisado. O suplemento escrito em 1956 esclarece algumas palavras-guia.

A introdução redigida por H.-G. Gadamer contém um aceno decisivo para o leitor de meus escritos tardios.

Origem [Ursprung] significa aqui aquilo a partir e através do qual uma coisa [Sache] é o que ela é e como ela é. O que algo é, como ele é, denominamos sua essência

[Wesen]. A origem de algo é a proveniência de sua essência. A pergunta pela origem da obra de arte pergunta pela proveniência de sua essência. A obra aflora, segundo a representação habitual, desde a atividade do artista e através dela. Mas através e desde onde o artista é o que ele é? Através da obra; pois, que uma obra louve o mestre, diz: a obra primeiramente deixa o artista pôr-se à frente como um mestre da arte. O artista é a origem da obra. A obra é a origem do artista. Nenhum é sem o outro. Igualmente, nenhum dos dois suporta sozinho ao outro. Artista e obra são cada qual em si e em sua mútua relação através de um terceiro, o qual é o primeiro, a saber, aquilo através e a partir do qual artista e obra de arte têm seu nome: através da arte.

Tão necessariamente quanto o artista é a origem da obra de um modo diferente do modo como a obra é a origem do artista, assim também é certo que a arte é ainda de outro modo a origem para o artista e a obra. Mas pode então a arte ser, em geral, uma origem? Onde e como se dá a arte? A arte, isso ainda é apenas uma palavra, à qual nada efetivo [Wirkliches] corresponde mais. Ela pode valer como uma representação coletiva na qual subsumimos aquilo que da arte é unicamente efetivo: as obras e os artistas. Mesmo se a palavra arte devesse designar mais do que uma representação coletiva, o que é evocado pela palavra arte apenas poderia ser sobre o solo da efetividade [Wirklichkeit] de obras e artistas. Ou a coisa está invertida? Dá-se obra e artista apenas na medida em que a arte é enquanto sua origem?

Como quer que isso se decida, a pergunta pela origem da obra de arte converte-se na pergunta pela essência da arte. Como, todavia, tem de permanecer em aberto se e como a arte em geral é, tentaremos encontrar a essência da arte lá onde sem dúvida a arte efetivamente se cumpre. A arte se essencializa [west] na obra de arte. Mas o que e como é uma obra da arte?

O que a arte seja deve-se deixar apreender a partir da obra. O que a obra seja, só podemos experimentar a partir da essência da arte. Qualquer um logo percebe que nos movemos em círculo. O senso comum exige que esse círculo seja evitado, por ser uma infração à lógica. Acha-se que por meio de uma observação comparativa das obras de arte diante-da-mão [vorhandenen1] deixar-se-ia extrair delas o que seja a arte. Mas como podemos estar seguros de estabelecer ao fundo [zugrunde legen] de fato obras de arte para uma tal observação, se não sabemos de antemão o que é a arte? Mas assim como a essência da arte não se deixa ganhar por meio de um elencamento de características de obras de arte diante-da-mão, tampouco se deixa ganhar por uma dedução a partir de conceitos mais elevados, pois também essa dedução já tem previamente em vista aquelas determinações que devem bastar para apresentarmos o que previamente tomamos por uma obra de arte como uma tal. A seleção de obras a partir de obras diante-da-mão e a dedução a partir de princípios são aqui igualmente impossíveis, e praticá-lo é uma auto-ilusão.

Assim, temos de percorrer o círculo. Isto não é um expediente, nem uma carência.

Adentrar esse caminho é a força do pensamento, e nele permanecer é a festa [Fest2], aceite esteja que o pensamento é uma manufatura [Handwerk]. Não só o passo principal da obra à arte é como o passo da arte à obra um círculo, mas cada passo isolado que perseguimos circula nesse círculo.

Para encontrar a essência da arte que efetivamente se cumpre na arte, procuremos pela obra efetiva e perguntemo-la o que e como ela é.

Obras de arte são conhecidas de qualquer um. Obras arquitetônicas e pictóricas encontram-se colocadas em praças públicas, igrejas e moradias. Nas coleções e exposições são acomodadas obras das mais diversas épocas e povos. Se lançarmos um olhar às obras

1 Para vorhanden, a tradução portuguesa opta por “o que está perante”, a espanhola, no mais das vezes, por “existente”. Buscamos aqui uma possível literalidade (vor = diante, Hand = mão) tendo em mente que ao cunhar as expressões Vorhandenheit e Zuhandenheit, em Ser e Tempo, a presença de “mão” em ambas as palavras não é arbitrária para Heidegger. O ente à mão, manual (Zuhanden), encontra-se em uma fusão originária com o ser-aí, cujo modo de ser é na ocupação. Ao denominar Vorhanden o ente manual que, numa modificação da atitude do ser-aí, desgarrou-se da ocupação em que estava fundido com o ser-aí, a linguagem de Heidegger manifesta a ligação originária entre esses dois modos de ser do ente que não possui o modo de ser do ser-aí mas com o qual este se ocupa. O ente passa a ser simplesmente dado (Cf. tradução brasileira de Sein und Zeit) – algo que se mostra como estando simplesmente aí, junto à mão que igualmente está simplesmente aí – mas ele não deixa de ser dado como algo ao alcance em alguma ocupação. Assim, o olhar teórico que por ventura analise um ente simplesmente dado é sempre ainda uma ocupação com algo ao alcance da mão (mais do que meramente algo diante da visada teórica e dado em amplo sentido). (N.T.) 2 Jogo entre das Fest, festa, e fest, firmeza. (N.T.) em sua intocada efetividade e não nos deixarmos enganar, então se mostra: as obras estão tão naturalmente diante-da-mão quanto quaisquer outras coisas. O quadro pende na parede como uma arma de caça ou um chapéu. Uma pintura, por exemplo, aquela de Van Gogh que apresenta um par de sapatos de camponês, desloca-se de uma exposição a outra. As obras são enviadas como o carvão do Ruhr e os troncos de árvore da Floresta Negra. Os hinos de Hölderlin foram empacotados durante a campanha na mochila do soldado junto com os utensílios de limpeza. Os quartetos de Beethoven ficam nos depósitos das editoras como as batatas na despensa.

Todas as obra têm esse caráter coisal [Dinghafte]. O que elas seriam sem ele? Mas talvez nos indignemos com esse aspecto fartamente rude e superficial da obra. Em tais representações da obra de arte movem-se bem a vigilância e a mulher da limpeza no museu. Já nós temos de tomar as obras tal como elas vão ao encontro daqueles que as vivenciam e apreciam. Mas também a tão proclamada vivência estética não pode passar ao largo do caráter coisal da obra de arte. O pedregoso está na construção. A madeira está no entalhe. O colorido está na pintura. O tom do dizer está na obra falada. O soar está na obra sonora. O coisal está tão inevitavelmente na obra de arte, que temos antes de dizer até ao contrário: a construção está na pedra. O entalhe está na madeira. A pintura está na cor. A obra falada está no tom do dizer. A obra musical está no som. Auto-evidente – vai-se responder. Certamente. Mas o que é este auto-evidente coisal na obra de arte?

É de supor que se tornaria supérfluo e errante prosseguir com essa pergunta, uma vez que a obra de arte é ainda algo outro para além do coisal. Esse outro, que aí está, constitui o artístico. A obra de arte é por certo uma coisa [Ding] produzida, mas ela ainda diz algo outro que a mera coisa ela mesma, άλλο αγορεύει. A obra dá a conhecer manifestamente com outro, ela torna outro manifesto; ela é alegoria. Com a coisa fabricada, algo outro ainda é trazido-junto na obra de arte. Trazer-junto [zusammenbringen] se chama em grego συµβάλλειν. A obra é símbolo.

Alegoria e símbolo fornecem o enquadramento em cuja perspectiva desde há muito se move a caracterização da obra de arte. Só que esse um na obra, que torna outro manifesto, esse um, que traz-junto com um outro, é o coisal na obra de arte. Quase parece que o coisal na obra de arte é como a infra-estrutura na e sobre a qual o outro e genuíno está construído. E não é esse coisal na obra que o artista propriamente faz em sua manufatura?

Gostaríamos de encontrar a efetividade plena e imediata da obra de arte, pois só assim encontramos nela também a arte efetiva. Portanto, temos de primeiramente trazer à vista o coisal da obra. Para isso é necessário que saibamos com clareza suficiente o que é uma coisa. Somente então se deixa dizer se a obra de arte é uma coisa, mas uma coisa na qual ainda um outro está agarrado; unicamente então se deixa decidir se a obra no fundo é algo outro e nunca uma coisa.

A Coisa e a Obra

O que é na verdade a coisa, porquanto é uma coisa? Quando perguntamos assim, queremos conhecer o ser-coisa (a coisidade [Dingheit]) da coisa. Trata-se de experimentar o caráter coisal da coisa. Para isso, temos de conhecer o domínio no qual se circunscrevem todos aqueles entes aos quais desde há muito nós nos dirigimos com o nome de coisa.

A pedra no caminho é uma coisa, e [também] a leiva no campo. O jarro é uma coisa, e [também] a fonte no meio do caminho. Mas como fica com o leite no jarro e a água da fonte? Também esses são coisas, se as nuvens no céu e o cardo sobre o campo, se a folha ao vento outonal e a ave de rapina sobre a floresta merecem chamar-se coisas. Tudo isso tem de ser de fato nomeado uma coisa, se recobrimos com o nome coisa até mesmo o que a si mesmo não se mostra, quer dizer, o que não aparece como os acima elencados. Uma tal coisa que não aparece ela mesma, a saber, uma “coisa em si”, é segundo Kant, por exemplo, o todo do mundo; uma tal coisa é até o próprio Deus. Coisas em si e coisas que aparecem, todo ente que em geral é, chama-se, na linguagem da filosofia, uma coisa.

Avião e aparelho de rádio pertencem hoje por certo às coisas mais próximas, mas quando temos em mente as coisas últimas, então pensamos em algo totalmente outro. As coisas últimas, essas são: morte e juízo. No todo, a palavra coisa nomeia aqui o que quer que seja que não seja pura e simplesmente nada. Segundo essa significação, também a obra de arte é uma coisa, na medida em que é em geral algum ente. Porém, esse conceito de coisa não nos ajuda nada, pelo menos de imediato, em nosso propósito de delimitar o ente do modo de ser da coisa face ao ente do modo de ser da obra. Além disso, também relutamos em chamar a Deus uma coisa. Da mesma maneira, relutamos em tomar por coisas o camponês no campo, o fogueiro frente ao caldeirão, o professor na escola. O ser humano não é nenhuma coisa. Por certo, chamamos [em alemão] a uma jovem moça que leva a cabo uma tarefa além da medida uma coisa ainda muito nova [ein noch zu junges Ding], mas isso apenas porque aqui damos pela falta do ser do humano numa certa maneira, e temos antes em mente encontrar aquilo que constitui o coisal da coisa. Hesitamos até mesmo em chamar coisa à corça na clareira da floresta, ao besouro na relva, à vergôntea. Para nós, antes o martelo é uma coisa, e o sapato, o machado e o relógio. Mas também eles não são uma mera coisa. Como uma tal considera-se apenas a pedra, a leiva, um pedaço de madeira. O inanimado da natureza e do uso. As coisas da natureza e do uso são costumeiramente as assim chamadas coisas.

Assim nos vemos reconduzidos da vasta região na qual tudo é uma coisa (coisa = res = ens = um ente), inclusive as coisas mais altas e últimas, ao âmbito estrito das meras coisas. O “mero” quer dizer aqui em primeiro lugar: a pura coisa, que é simplesmente coisa e nada mais; o “mero” quer logo dizer ao mesmo tempo: só ainda coisa em um sentido já quase depreciativo. As meras coisas, com exclusão até das coisas de uso, valem como as autênticas coisas. Em que consiste, pois, o coisal dessas coisas? Desde elas é que a coisidade das coisas tem de se deixar determinar. A determinação nos põe na situação de caracterizar o coisal como tal. Assim equipados, podemos caracterizar aquela quase palpável efetividade das obras, na qual então ainda algo outro está cravado.

Vale como fato conhecido que desde antigamente, tão logo se erigiu a pergunta pelo que seja o ente em geral, as coisas em sua coisidade sempre de novo se puseram à frente como o ente padrão. Por conseqüência, temos de encontrar prontamente na interpretação tradicional do ente a delimitação da coisidade das coisas. Assim, só precisamos nos assegurar expressamente desse saber tradicional sobre a coisa, para estarmos dispensados da árida tarefa de uma busca própria pelo coisal da coisa. As respostas à pergunta pelo que seja a coisa são de tal forma corriqueiras, que já não se pressente mais nada digno de pergunta [Fragwürdiges] por detrás.

As interpretações da coisidade da coisa que, dominando no decorrer do pensamento ocidental, de há muito se tornaram auto-evidentes e hoje estão presentes no uso cotidiano, deixam-se reunir em três.

Uma mera coisa é, por exemplo, este bloco de granito. Ele é duro, pesado, extenso, maciço, informe, áspero, colorido, em parte opaco, em parte brilhante. Podemos notar tudo isso na pedra. Tomamos assim suas características para a cognição. Mas as características querem dizer aquilo que é próprio à pedra mesma. Elas são suas propriedades. A coisa as tem. A coisa? Em que pensamos, quando agora mencionamos a coisa? Abertamente, a coisa não é apenas a acumulação das características, tampouco a agregação das propriedades por meio da qual irrompe então a junção [Zusammen]. A coisa é, como qualquer um acredita saber, aquilo em torno a que as propriedades se reuniram. Fala-se assim do núcleo das coisas. A isso é que os gregos devem ter denominado το υποκείµενον. Esse nuclear [Kernhafte] da coisa era para eles, certamente, aquilo já sempre ao fundo subsistente

[Vorliegende]. As características, por sua vez, denominam-se τα συµβεβηκότα, aquilo que também já sempre se intra-erigiu com a respectiva subsistência e junto a ela também sucede.

Essas denominações não são nomes escolhidos ao bel-prazer. Nelas fala o que aqui já não é mais para se mostrar, a experiência grega fundamental do ser do ente no sentido da presença [Anwesenheit]. Mediante essas determinações, a interpretação padrão da coisidade da coisa é desde então fundada e a interpretação ocidental do ser do ente é firmada. Ela começa com a recepção das palavras gregas no pensamento latino romano. Υποκείµενον converte-se em subiectum; υπόστασις converte-se em substantia; συµβεβηκός converte-se em accidens. Essa tradução dos nomes gregos para a língua latina não é de modo algum o acontecimento sem conseqüências pelo qual ainda é tido nos dias de hoje. Muito antes, por detrás da tradução [Übersetzung] aparentemente literal e assim fiel, esconde-se um transpor [Übersetzen] da experiência grega em uma outra forma de pensamento. O pensamento romano toma posse das palavras gregas sem a correspondente experiência co-originária daquilo que elas dizem, sem a palavra grega. O desenraizamento [Bodenlosigkeit] do pensamento ocidental começa com essa tradução.

A determinação da coisidade da coisa como a substância com seus acidentes parece corresponder, segundo a opinião corrente, ao nosso olhar natural sobre as coisas. Não admira que essa perspectiva habitual da coisa também tenha conformado o comportamento corrente para com as coisas, a saber, o dirigir-se às coisas e o falar sobre elas. A proposição simples consiste em sujeito – que é a tradução latina, e isso quer dizer já trans-significação, de υποκείµενον – e em predicado, no qual são declaradas as características da coisa. Quem se atreveria a deslocar essas relações fundamentais simples entre coisa e proposição, entre estrutura proposicional e estrutura da coisa? Todavia, temos de perguntar: a estrutura da proposição simples (a conjugação de sujeito e predicado) é a imagem especular da estrutura da coisa (da reunião da substância com os acidentes)? Ou será que é a estrutura da coisa assim representada que é projetada segundo o esquema da proposição?

O que é mais natural do que o homem levar consigo a maneira de seu recolhimento da coisa na proposição até à estrutura da coisa mesma? Essa opinião aparentemente crítica, mas todavia bastante apressada, teria, em todo caso, de primeiramente tornar compreensível como é que deve ser possível esse levar-consigo da estrutura da frase para a coisa, sem que a coisa já não se tivesse tornado visível. A pergunta pelo que seja o primeiro e doador da medida, se a estrutura da proposição ou a estrutura da coisa, não está decidida até agora. Permanece até mesmo duvidoso se a pergunta nessa feição é em geral decidível.

No fundo, nem a estrutura da proposição dá a medida para a projeção da estrutura da coisa, nem esta é naquela simplesmente espelhada. Ambas, a estrutura da proposição e a da coisa, orginam-se, em sua especificação e em sua mútua relação possível, de uma fonte comum mais originária. Em todo caso, a interpretação primeiramente conduzida da coisidade da coisa, a coisa como o suporte de suas características, não é tão natural quanto pretende ser, por mais corrente que seja. O que nos aparece como tão natural é provavelmente apenas o habitual de uma longa habituação, que esqueceu o inabitado do qual saltou. Esse inabitado, porém, um dia assaltou o homem como um estranhamento e trouxe o pensar para a admiração3 .

A confiança na interpretação corrente da coisa é apenas aparentemente fundamentada. Mas, além disso, esse conceito de coisa (a coisa como o suporte de suas

3 Heidegger joga aqui com o significado das palavras Gewöhnliche, Gewohnheit, Ungewohnte e Befremdende. Das Gewöhnliche: o habitual, o caráter daquilo onde se habita. Na e a partir desta habitação o homem um dia conheceu o inabitado, das Ungewohnte, estranho-estrangeiro (fremd) que causa admiração, deslocando o habituado e habitado para o inabitado. O inabitual e inesperado, assim, não simplesmente sucede o habitual no momento em que o homem é puxado para o estranhamento: é antes o próprio inabitado que enquanto tal funda o habitual e habitado. Recaindo no inabitado, o homem reconhece o salto (Sprung) da origem, na estranheza de saltar para trás. (N.T.) características) vale não apenas para meras e autênticas coisas, mas sim também para qualquer ente. Por isso, com sua ajuda nunca se poderá contrastar o ente que é ao modo de coisa [dinglich] frente ao ente que não é ao modo de coisa. No entanto, antes de toda reflexão, o desperto posicionamento no âmbito das coisas já nos diz que esse conceito de coisa não encontra o caráter de coisa das coisas, o seu crescer-por-si-mesmo [Eigenwüchsige] e repousar-em-si-mesmo [Insichruhende]. Por vezes chegamos a sentir que desde há muito se fez violência ao caráter de coisa das coisas e que em meio a essa violência estava o pensamento, razão por que se abjura o pensamento, em vez de se dar ao trabalho de torná-lo mais pensante. Mas o que pode um sentimento tão seguro sobre uma determinação essencial da coisa, se o pensamento sozinho é que pode ter a palavra? Talvez isso que nós aqui e em casos semelhantes chamamos sentimento [Gefühl] ou afinação [Stimmung] seja mais sensato [vernünftiger], quer dizer mais perspicaz [vernehmender], porque mais aberto ao ser do que toda razão, a qual, em meio à conversão em ratio, foi racionalmente [rational] distorcida. Nisso, o olhar de soslaio cobiçoso pelo ir-racional, como a deformação do racional impensado, prestou estranhos serviços. Por certo, o conceito corrente de coisa serve a qualquer tempo em qualquer coisa. Todavia, não abarca em seu alcance a coisa essente [wesende], mas sim a assalta.

Será que um tal assalto se deixa evitar? E como? Apenas se nós como que preservarmos um campo livre para a coisa, para que ela mostre instantaneamente seu caráter de coisa. Tudo aquilo que, nas concepções e declarações sobre a coisa, quer-se interpor entre a coisa e nós, tem de ser primeiramente removido. Só então nos abandonamos à presença [Anwesen] não mascarada da coisa. Mas não temos de nem primeiro exigir e nem mesmo organizar esse deixar-vir-ao-encontro imediato da coisa. Ele acontece de há muito. Naquilo que os sentidos da visão, da audição e do tato trazem consigo, nas sensações do colorido, sonoro, áspero, duro, as coisas se nos movem sobre o corpo, tomado bem literalmente. A coisa é o αισθητόν, o perceptível pelas sensações nos sentidos da sensibilidade. Por conseqüência disso, aquele conceito de coisa segundo o qual ela não é senão a unidade de uma diversidade do que é dado nos sentidos passa a ser corriqueiro. Se essa unidade é tomada como suma ou como totalidade ou como forma, não modifica em nada o rasgo paradigmático desse conceito de coisa.

Ora, essa interpretação da coisidade da coisa é sempre tão correta e justificável quanto a anterior. Isso já basta para desconfiar de sua verdade. Pensemos plenamente aquilo que procuramos, o coisal da coisa, e eis que esse conceito de coisa nos abandona novamente à perplexidade. No aparecimento das coisas nós nunca percebemos, como ele pretende, primeiro e genuinamente uma afluência de sensações, por exemplo, sons e ruídos; o que ouvimos é a tempestade assobiar na chaminé, o avião trimotor, ouvimos o Mercedes em imediata distinção de um Adler. Muito mais próximas do que todas as sensações estãonos as próprias coisas. Ouvimos em casa a porta a bater, nunca sensações acústicas, nem mesmo meros ruídos. Para ouvir um puro ruído, temos de nos afastar da escuta das coisas, distrair nosso ouvido delas, quer dizer, ouvir abstratamente.

No conceito de coisa agora referido repousa não tanto um assalto à coisa, mas antes a tentativa desmedida de nos trazer a coisa em uma máxima imediatez possível. Mas uma coisa nunca chega a isso, enquanto lhe destinarmos como seu caráter de coisa o percebido conforme sensações. Enquanto a primeira interpretação da coisa como que no-la sustém à parte do corpo e a segura muito longe, a segunda a faz se nos voltar demais sobre o corpo. Em ambas as interpretações desaparece a coisa. Por isso cumpre evitar o exagero das duas interpretações. A coisa mesma tem de ser deixada em seu repousar-em-si. É para ser aceita em sua própria estabilidade [Standhaftigkeit]. É o que parece realizar a terceira interpretação, tão velha quanto as duas já mencionadas.

do uso

Aquilo que dá às coisas o seu estável [Ständige] e nucleoso, mas ao mesmo tempo também ocasiona [verursacht] o jeito de sua afluência sensorial, o colorido, o sonoro, o duro, o maciço, é o material [Stoffliche] das coisas. Nessa determinação da coisa como matéria [Stoff] (ύλη) a forma (µορφή) já está inserida. O estável de uma coisa, a consistência, reside em que uma matéria se erige junto com uma forma. A coisa é uma matéria enformada. Essa interpretação da coisa recorre à visada imediata com a qual a coisa vem até nós através de seu aspecto (είδος). Com a síntese de matéria e forma finalmente é encontrado o conceito de coisa que serve igualmente bem às coisas da natureza e às coisas

Esse conceito de coisa nos põe na situação de responder a pergunta pelo coisal na obra de arte. O coisal na obra é evidentemente a matéria de que consiste. A matéria é a base de fundo e o campo para a enformação artística. Mas poderíamos ter trazido antes essa constatação esclarecedora e conhecida. Para que demos um desvio sobre os demais conceitos de coisa vigentes? Porque também desconfiamos desse conceito de coisa que a representa como matéria enformada.

Mas não é justamente esse par conceitual matéria-forma que é usual naquele âmbito em que devemos nos mover? Certamente. A distinção entre matéria e forma, e a bem dizer nas mais diversas maneiras, é o esquema conceitual por excelência para toda teoria da arte e estética. Esse fato inquestionável, porém, não assegura nem que a distinção entre matéria e forma é suficientemente fundamentada, nem que ela pertence originalmente ao âmbito da arte e da obra de arte. Acresce que o âmbito de validade desse par conceitual ultrapassa amplamente e de há muito o campo da estética. Forma e conteúdo são os conceitos universais aos quais tudo e o que quer que seja se deixa subsumir. Ligue-se ainda a forma ao racional e a matéria ao ir-racional, tome-se o racional como o lógico e o irracional como o alógico, acople-se ainda ao par conceitual forma-matéria a relação sujeito-objeto, então a representação segue uma mecânica conceitual à qual nada pode resistir.

Mas, se assim se passa com a distinção entre matéria e forma, como poderemos então ainda com sua ajuda abarcar o campo especial das meras coisas à diferença dos demais entes? Talvez essa caracterização segundo matéria e forma recupere sua força de determinação, se fizermos reversível o alargamento e esvaziamento desses conceitos. Certamente, mas isso pressupõe que saibamos em qual âmbito do ente ela realiza sua autêntica força de determinação. Que este seja o âmbito das meras coisas, isso é até agora apenas uma suposição. A remissão à ampla utilização desse ajunte [Gefüge] conceitual na estética poderia antes levar-nos a pensar que matéria e forma são determinações naturais da essência da obra de arte e que apenas a partir daí foram reconduzidas à coisa. Onde é que o ajunte matéria-forma tem a sua origem, no caráter de coisa da coisa ou no caráter de obra da obra de arte?

O bloco de granito que repousa em si é um material em uma forma determinada, ainda que não ajuntada. Forma quer dizer aqui a repartição e arranjo espaço-locacional das partes da matéria, à qual se segue um contorno [Umriß] especial, a saber, o de um bloco. Mas uma matéria erigida em uma forma é também o jarro, o machado, os sapatos. Aqui, porém, a forma como contorno não é nem sequer primeiro resultante de uma repartição da matéria. Ao contrário, a forma determina o arranjo da matéria. Não apenas isso: ela traça, até, a especificação e a eleição da matéria: impermeável para o jarro, suficientemente dura para o machado, firme e ao mesmo tempo flexível para os sapatos. Esse entrelaçamento devido de forma e matéria é, aliás, de antemão regulado por aquilo para que servem jarro, machado, sapatos. Tal serventia [Dienlichkeit] nunca é posteriormente destinada e imposta ao ente do tipo do jarro, do machado, dos sapatos. Mas também não é nada que paira acima deles em algum lugar como uma finalidade.

Serventia é aquele traço fundamental a partir do qual esse ente nos mira, quer dizer, pisca para nós e com isso se faz presente e assim esse ente é. Nessa serventia funda-se tanto a doação da forma quanto a eleição da matéria que com ela já se dá e assim a vigência do ajunte de matéria e forma. O ente que lhe está submetido é sempre produto [Erzeugnis] de uma fabricação [Anfertigung]. O produto é finalizado [verfertigt] como um utensílio [Zeug] para algo. De acordo com isso, matéria e forma moram na essência do utensílio como determinações do ente. Esse nome nomeia o elaborado [Hergestellte] próprio para seu uso e utilidade. Matéria e forma não são de modo algum determinações originais da coisidade da mera coisa.

O utensílio, p.ex. o calçado, também repousa em si como pronto assim como a mera coisa, mas não tem como o bloco de granito aquele crescer-por-si-mesmo. Por outro lado, o utensílio mostra um parentesco com a obra de arte, na medida em que é algo levado a cabo por mãos humanas. Entretanto, a obra de arte, por sua presença auto-suficiente, iguala-se antes à coisa que cresce por si mesma e que é impelida para nada [zu nichts gedrängten]. Todavia, não contamos as obras entre as meras coisas. São sempre as coisas de uso à nossa volta que são as coisas mais próximas e genuínas. Assim, o utensílio é meio coisa, porque determinado pela coisalidade [Dinglichkeit], e contudo mais: ao mesmo tempo meio obra de arte e contudo menos, porque sem a auto-suficiência da obra de arte. O utensílio tem uma singular posição intermediária entre a coisa e a obra, supondo seja permitida uma tal retaliação compensatória.

O ajunte matéria-forma, porém, mediante o qual em princípio o ser do utensílio é determinado, dá-se facilmente como a disposição imediatamente compreensível de cada ente, porque aqui o homem produtor ele mesmo toma parte nisso, a saber, pela maneira como um utensílio vem ao ser. Na medida em que o utensílio ganha um lugar intermediário entre a mera coisa e a obra, fica-se muito perto de, com a ajuda do ser-utensílio (do ajunte matéria-forma), compreender também o ente não utensiliar, coisas e obras, por fim todo ente.

A inclinação a considerar o ajunte matéria-forma como a constituição de todo e qualquer ente recebe, todavia, ainda um impulso especial: é que de antemão, por conta de uma crença, a saber, a bíblica, o todo do ente é representado como criado, e isso quer dizer aqui: dado ao acabamento. Certamente que a filosofia dessa crença pode assegurar que todo efetuar criador de Deus deva ser representado diferentemente do fazer de um manufator. Se, porém, ao mesmo tempo ou até previamente, por conseqüência da crença numa predeterminação da filosofia tomista à exegese da Bíblia, o ens creatum é pensado a partir da unidade de materia e forma, então a fé ganha sua significação a partir de uma filosofia cuja verdade consiste em um não-encobrimento [Unverborgenheit4] do ente diferente daquele do mundo acreditado da fé.

O pensamento da criação fundando na fé pode agora por certo perder sua força dirigente para o saber do ente no todo. Porém, uma vez formada, a interpretação teológica de todo ente tomada de empréstimo a uma filosofia estranha, a intuição do mundo segundo matéria e forma, pode não obstante permanecer. Isso acontece na passagem da Idade Média para a Idade Moderna. A metafísica moderna repousa sobre o ajunte forma-matéria cunhado na Idade Média, que só mesmo nas palavras lembra a essência obstruída de είδος e ύλη. Assim, a interpretação da coisa segundo matéria e forma, quer permaneça medieval, quer se torne kantiana-transcendental, veio a ser corriqueira e auto-evidente. Mas ela não é por isso menos um assalto ao ser-coisa da coisa do que as outras interpretações mencionadas da coisidade da coisa.

Já ao chamarmos as autênticas coisas de meras coisas denuncia-se a situação. O “mero” quer dizer o despimento do caráter de serventia e da fabricação. A mera coisa é um

4 A versão portuguesa de Unverborgenheit, “não-estar-encoberto”, enfatiza, além da negação presente no original pelo prefixo –un, a idéia de caráter de ser que se exprime na terminação –heit e que foi traduzida por “estar”; mais próximo ainda de uma literalidade seria “ser-não-encoberto”. Nosso emprego de “nãoencobrimento” perde por um lado a ênfase na idéia de caráter de ser (que cumpre ter em mente), por outro lado, mantém a ênfase na negação oriunda de –un. Contudo, nosso objetivo era também e especialmente manter-nos no âmbito já bem estabelecido das traduções em português de Unverborgenheit: desvelamento, desocultamento ou desencobrimento. Teríamos, por conta disso, certamente usado “desencobrimento” – em vez de não-encobrimento – não fosse a presença de Entbergung em “A Origem da Obra de Arte”, traduzida já e não por acaso por desencobrimento. A nuance distintiva entre Entbergung e Unverborgenheit é enfatizada por Gadamer em sua introdução, de modo que traduzir ambas as palavras alemãs por uma única em português comprometeria o entendimento do texto. (N.T.) tipo de utensílio, ainda que um utensílio despido de seu ser-utensílio. O ser-coisa consiste naquilo que então ainda remanesce. Mas esse resto não é expressamente determinado em seu caráter de ser. Permanece questionável se, por via da retirada de todo caráter utensiliar, o coisal da coisa vem alguma vez à aparição. Assim, também o terceiro modo de interpretação da coisa seguindo o fio condutor do ajunte matéria-forma mostra-se como um assalto à coisa.

As três maneiras especificadas de determinação da coisidade concebem a coisa como o suporte de características, como a unidade de uma diversidade sensível, como matéria enformada. No decorrer da história da verdade sobre o ente, as referidas interpretações ainda se conjugaram entre si, o que agora seja dito somente de passagem. Nessa conjugação, elas ainda reforçaram a amplitude de que são investidas, de tal forma que passaram a valer indiscriminadamente para a coisa, para o utensílio e para a obra. Assim cresce a partir delas a forma de pensar segundo a qual nós pensamos não apenas em especial sobre coisa, utensílio e obra, mas sobre todo ente em geral. Essa forma de pensar de há muito tornada corrente antecipa-se a toda experiência imediata do ente. A antecipação [Vorgriff] veda a concentração afetiva [Besinnung5] no ser do ente a cada vez em questão. Assim vem a ser que os conceitos vigentes de coisa nos obstruem o caminho tanto para o caráter de coisa da coisa, quanto para o caráter utensiliar do utensílio, e ainda mais para o caráter de obra da obra.

5 As versões portuguesa, espanhola e francesa optaram, nesta passagem, respectivamente por “consideração”, “meditação” e “méditer”. Em uma situação cotidiana, Besinnung poderia ser traduzida tanto por “sentidos” quanto por “consciência”; sich besinnen auf seria o nosso “retomar os sentidos”, “recobrar a consciência”, “voltar a si”, mas também: “lembrar-se”, “recordar-se”, “refletir sobre”. Como é freqüentemente de seu feitio, Heidegger propõe um uso da palavra que ao mesmo tempo contraria e endossa o uso cotidiano. Contraria porque não permite a distinção entre sentidos e consciência uma vez que não parte de concepções de ser humano pelas quais se firma essa distinção: o homem como constituído de corpo e alma, ou de racionalidade e animalidade, notando que a alma e a racionalidade foram as determinações sempre privilegiadas na história da filosofia em relação às de corpo e animalidade. E endossa porque a idéia de Besinnung inclui, aliás, a idéia de uma “tomada de consciência” justamente sobre essas concepções que, segundo Heidegger, turvam a experiência originária de nossa essência, para a qual se faz necessário “retomar os sentidos”. Mas justamente então já não se trata de forma alguma de uma dicotomia. Também justamente por isso a expressão de que aqui nos valemos para traduzir Besinnung, “concentração afetiva”, não deve dar a entender uma forma de sentimentalismo que devesse suplantar o racionalismo. A proposta de Heidegger é muito mais a de que o humano retorne à experiência originária de si mesmo e das coisas no modo como ele se afina e se afeta em seu ser-aí exposto ao ente na totalidade, no mundo. Se Stimmung é a afinação ou a tonalidade afetiva em que o ser-aí se afina ao lugar em que já sempre se encontra, Besinnung seria uma concentração afetiva na questão do ser e nos diversos caminhos que ela toma, aparecendo inclusive no título da conferência de 1953 “Wissenschaft und Besinnung”. (N.T.)

Esse fato é a razão por que se faz necessário saber desses conceitos de coisa, para pensar a sua proveniência e pretensa irrestrição, bem como a aparência de sua obviedade. Esse saber é ainda mais necessário se ousamos tentar trazer à vista e à palavra o caráter de coisa da coisa, o caráter utensiliar do utensílio e o caráter de obra da obra. Para isso, porém, apenas uma coisa é precisa: mantendo afastadas as antecipações e alargamentos daquelas formas de pensar, deixar a coisa, por exemplo, repousar sobre si em seu ser-coisa. O que poderia parecer mais fácil do que deixar o ente simplesmente ser o ente que é? Ou com essa tarefa chegamos ao mais difícil, sobretudo quando um tal propósito – deixar o ente ser como é – apresenta o contrário daquela indiferença que vira as costas ao ente em favor de um conceito de ser injustificado? Temos de nos voltar para o ente, pensar nele mesmo em seu ser, mas nisso deixá-lo ao mesmo tempo repousar sobre si em sua essência.

Esse esforço do pensamento parece encontrar na determinação da coisidade da coisa a maior resistência; pois onde mais se funda o fracasso daquelas tentativas? A coisa inaparente furta-se ao pensamento o mais teimosamente. Ou esse manter-se-em-reserva [Sichzurückhalten] da mera coisa, esse ser-impelido-para-nada a repousar em si, deveria isso justamente pertencer à essência da coisa? Não deve, então, aquele intimidante e cerrado na essência da coisa tornar-se o mais íntimo para um pensamento que busca pensar a coisa? Se é assim, então não podemos forçar o caminho para o caráter de coisa da coisa.

Que a coisidade da coisa só se deixe dizer raramente e com dificuldade, disso a referida história de sua interpretação é um iniludível documento. Essa história corresponde ao destino conforme o qual o pensamento ocidental pensou o ser do ente até hoje. Mas nós não apenas reforçamos isso agora. Percebemos nessa história ao mesmo tempo um aceno. Será por acaso que, na interpretação da coisa, aquela que acontece no fio condutor de matéria e forma obteve uma hegemonia especial? Essa determinação da coisa enraíza-se numa interpretação do ser-utensílio do utensílio. Esse ente, o utensílio, é próximo à representação do homem de uma maneira especial, porque aporta ao ser através de nosso próprio produzir [Erzeugen]. Esse ente assim íntimo em seu ser, o utensílio, tem ao mesmo tempo uma singular posição intermediária entre a coisa e a obra. Sigamos esse aceno e procuremos antes de mais o caráter utensiliar do utensílio. Talvez nos ocorra algo sobre o caráter de coisa da coisa e o caráter de obra da obra. Temos apenas de evitar tomar precipitadamente coisa e obra por variantes do utensílio. Abstraímos, todavia, da possibilidade de que diferenças historiais essenciais vigorem também ainda na maneira como o utensílio é.

Mas, que caminho conduz ao caráter de utensílio do utensílio? Como poderemos experimentar o que o utensílio é na verdade? O procedimento agora necessário tem de explicitamente manter-se longe daquelas tentativas que carregam junto consigo os alargamentos das interpretações habituais. Estaremos o quanto antes assegurados disso se descrevermos simplesmente um utensílio sem uma teoria filosófica.

Escolhemos como exemplo um utensílio habitual: um par de sapatos de camponês.

Para descrevê-los não é preciso ter por modelo alguma vez peças efetivas desse tipo de utensílio de uso. Qualquer um as conhece. Mas, como se trata de uma descrição imediata, é bom facilitar o advento da intuição [Veranschaulichung]. Uma apresentação figurativa deve bastar para esse auxílio. Escolhemos para isso uma conhecida pintura de Van Gogh, que pintou várias vezes tal utensílio calçado. Mas o que tanto há para ver aí? Todo o mundo sabe o que pertence ao calçado. Se acaso não forem sapatos de madeira ou de ráfia, têm a sola feita de couro recoberta pelo cabedal, ambos ajuntados um ao outro por costuras e pregos. Um utensílio desses serve para a vestimenta dos pés. Correspondentemente à serventia, se para o trabalho no campo ou para a dança, matéria e forma são diferentes.

Tais indicações corretas lançam luz apenas no que já sabemos. O ser-utensílio do utensílio consiste em sua serventia. Mas como é com esta mesma? Com ela já apreendemos o caráter de utensílio do utensílio? Para que isso dê certo, não temos de ir ter com o utensílio útil em seu serviço? A camponesa na lavoura veste os sapatos. Somente aqui eles são o que são. Eles o são tanto mais autenticamente, quanto menos a camponesa pensa neles no trabalho ou sequer os percebe ou ainda menos os pressente. Ela está em pé e vai com eles. Assim servem os sapatos efetivamente. Nesse decorrer do uso do utensílio, o caráter utensiliar do utensílio deve efetivamente nos encontrar.

Em contrapartida, enquanto nos presentificarmos apenas em geral um par de sapatos ou até mesmo olharmos para meros sapatos vazios parados, fora de uso, no quadro, nunca experimentaremos o que é na verdade o ser-utensílio do utensílio. Pela pintura de Van Gogh não podemos nem verificar onde ficam os sapatos. Em torno a esse par de sapatos de camponês não há nada ao qual eles poderiam pertencer, de onde poderiam provir, apenas um espaço indeterminado. Nem lhe estão colados torrões de terra da lavoura ou do caminho do campo, o que ao menos poderia dar sinal de sua utilização. Um par de sapatos de camponês e nada mais. E todavia.

Da escura abertura do gasto interior do calçado olha-nos fixamente a fadiga do andar do trabalho. Na dura gravidade do calçado retém-se a tenacidade do lento caminhar pelos sulcos que sempre iguais se estendem longe pelo campo, sobre o qual sopra um vento agreste. No couro fica a umidade e a fartura do solo. Sob as solas demove-se a solidão do caminho do campo pelo final de tarde. No calçado vibra o quieto chamado da terra, sua silenciosa oferta do trigo maduro, sua inexplicável recusa na desolação do campo no inverno. Por esse utensílio passa o calado desassossego pela segurança do pão, a alegria sem palavras por ter mais uma vez suportado a falta, a vibração pela chegada do nascimento e o tremor ante o retorno da morte. À terra pertence esse utensílio e no mundo da camponesa ele é abrigado. É dessa abrigada pertença que o próprio utensílio ressurge para seu repousar-em-si.

Mas talvez nós vejamos tudo isso só no calçado do quadro. A camponesa, por sua vez, simplesmente veste os sapatos. Como se esse simples vestir fosse assim simples. Toda vez que, ao cair da noite, a camponesa em sua dura mas saudável fadiga depõe os sapatos, e na aurora ainda escura já os pega de novo, ou quando passa por eles no feriado, então ela sabe de tudo isso sem observação e consideração. O ser-utensílio do utensílio consiste por certo em sua serventia. Mas esta mesma repousa na plenitude de um ser essencial do utensílio. A isso chamamos confiabilidade [Verläßlichkeit]. Por força dela é que a camponesa está entregue por meio desse utensílio ao calado apelo da terra, por força da confiabilidade do utensílio ela está certa de seu mundo. Mundo e terra estão aí, para ela e para os que com ela são à sua maneira, apenas assim: no utensílio. Dizemos “só” e nisso erramos; pois a confiabilidade do utensílio é que primeiramente dá ao simples mundo sua seguridade [Geborgenheit] e assegura à terra a liberdade de seu contínuo irromper.

O ser-utensílio do utensílio, a confiabilidade, mantém reunidas em si todas as coisas sempre segundo sua maneira e alcance. A serventia do utensílio é, todavia, apenas a conseqüência essencial da confiabilidade. Aquela vibra nesta e nada seria sem ela. O utensílio isolado é gasto e consumido; mas aí ao mesmo tempo o próprio uso cai em usura, desgasta-se e torna-se habitual. Dessa forma o ser-utensílio entra em desolação e decai para mero utensílio. Um tal desolamento do ser-utensílio é o desvanecer-se da confiabilidade.

Porém, esse definhamento ao qual as coisas de uso devem aquela monótona e maçante habitualidade é apenas mais um testemunho da essência original do ser-utensílio. A abusada habitualidade do utensílio põe-se à frente como a única e exclusiva forma própria de ser perceptível. Agora só ainda a opaca serventia é visível. Ela suscita a aparência de que a origem do utensílio estaria na mera fabricação, que imprime uma forma em uma matéria. No entanto, o utensílio, em seu genuíno ser-utensílio, vem de mais longe. Matéria e forma e a distinção entre ambas são de origem mais profunda.

O repouso do utensílio a repousar em si consiste na confiabilidade. Só nela chegamos a ver o que o utensílio é na verdade. Mas ainda não sabemos nada daquilo pelo que inicialmente procurávamos: o caráter de coisa da coisa. E absolutamente não sabemos aquilo que única e propriamente procuramos: o caráter de obra da obra no sentido da obra de arte.

Ou deveríamos agora de repente, como que de passagem, ter já experimentado algo acerca do ser-obra da obra?

O ser-utensílio do utensílio foi encontrado. Mas como? Não por uma descrição e esclarecimento de algum calçado efetivo presente; não por um relatório sobre o processo de fabricação de sapatos, tampouco pela observação de uma utilização de calçados sucedendo aqui e ali, mas sim apenas porquanto nos trouxemos perante a pintura de Van Gogh. Ela falou. Na proximidade da obra nós estivemos repentinamente em outro lugar do que aquele em que habitualmente cuidamos de estar.

A obra de arte deu a conhecer o que o calçado na verdade é. Seria a mais grave auto-ilusão se achássemos que nossa descrição, como um fazer subjetivo, figurou tudo isso assim para então projetá-lo. Se algo aqui é digno de pergunta é apenas isto de, na proximidade da obra, termos experimentado tão pouco e dito a experiência de forma tão rude e imediata. Mas, antes de tudo, a obra não serviu, como poderia parecer à primeira vista, pura e simplesmente para um melhor advento da intuição do que seja um utensílio. Muito mais, é somente através da obra e somente na obra que o ser-utensílio do utensílio vem expressamente a aparecer.

O que acontece aqui? O que na obra está em obra? A pintura de Van Gogh é o abrirse [Eröffnung6] daquilo que o utensílio, o par de sapatos de camponês, na verdade é. Esse ente emerge [heraustritt] para o não-encobrimento de seu ser. O não-encobrimento do ente era denominado pelos gregos αλήθεια. Nós dizemos verdade [Wahrheit] e pensamos muito pouco com essa palavra. Na obra, se aqui acontece um abrir-se do ente naquilo que ele é e como é, está em obra um acontecer [Geschehen] da verdade.

Na obra da arte a verdade do ente se pôs em obra. “Pôr” [“setzen”] significa aqui: trazer à perduração [zum Stehen bringen7]. Um ente, um par de sapatos de camponês, vem na obra a perdurar na luz de seu ser. O ser do ente vem à permanência de seu brilho [Scheinen8].

Assim, a essência da arte seria esta: o pôr-se-em-obra da verdade do ente. Mas, ora, até aqui a arte teve a ver com o belo e a beleza e não com a verdade. As artes que trazem à frente obras assim chamam-se, por distinção às artes de trabalho manual que fabricam utensílios, as belas artes. Na bela arte não é a arte que é bela, mas ela se chama assim porque traz à frente o belo. A verdade, em contrapartida, pertence à lógica. A beleza, por sua vez, está reservada à estética.

[Produkt] da produção [Produktion] artística? De modo algum.

Ou será que com a afirmação de que a arte é o pôr-se-em-obra da verdade deve renascer aquela opinião felizmente ultrapassada da arte como uma imitação e transcrição do efetivo? A reprodução [Wiedergabe] do diante-da-mão requer, certamente, a concordância com o ente, a equiparação a este; adaequatio diz a Idade Média; Oµοίωσις diz já Aristóteles. Concordância com o ente vale de há muito como a essência da verdade. Mas acaso achamos que aquela pintura de Van Gogh representa pictoricamente um dado par de sapatos de camponês diante-da-mão e por isso seria uma obra, porque o teria logrado? Achamos que a pintura retiraria uma fôrma do efetivo e a aplicaria em um produto

Então na obra se trata não de uma reprodução do ente isolado e a cada vez dianteda-mão, mas, ao contrário, da reprodução da essência em comum das coisas. Mas onde e

6 Eröffnung, o abrir-se do que se abre no sentido de uma inauguração, isto é, originariamente. “Patenteação originária”, na versão portuguesa. Usamos “abrir-se” e não “abertura” uma vez que esta já traduz “Offenheit”. (N.T.) 7 Levantar, pôr-de-pé, mas aqui com ênfase no sentido de permanecer. (N.T.) 8 Não dizemos “aparecer”, como na versão portuguesa, mas “brilho”, para enfatizar que o aparecer da obra de arte é tal que se mostra como o que deixa aparecer o ente. Brilho é a marca do que aparece ao mostrar-se como aparecimento. (N.T.) como é essa essência em comum, para que as obras de arte concordem com ela? Com que essência de que coisa deve concordar um templo grego? Quem poderia assegurar o absurdo de que na obra arquitetônica a idéia do templo é apresentada? E no entanto em tal obra, se é uma obra, a verdade se pôs em obra. Ou pensemos no hino de Hölderlin, “O Reno”. O que é que foi aqui previamente dado ao poeta, e como, para que pudesse ser novamente dado no poema9? Ainda que no caso desse hino e em poemas semelhantes se queira recusar a idéia de uma relação de cópia entre algo já efetivo e a obra de arte, como é de se esperar, ainda assim, com uma obra do tipo da assinalada pelo poema de C.F. Meyer, “A fonte romana”, confirma-se da melhor maneira possível aquela opinião de que a obra copiaria.

A Fonte Romana

Sobe o jato e pleno vasa À taça de mármore redonda Que enchendo-se extravasa Para o fundo de uma segunda; E a segunda, de cheia borbulhando, À terceira dá em ondas sua enchente, E cada uma toma e dá ao mesmo tempo E corre e se suspende.

Der römische Brunnen

Und strömt und ruht

Aufsteigt der Strahl und fallend gießt Er voll der Marmorschale Rund, Die, sich verschleiernd, überfließt In einer zweiten Schale Grund; Die zweite gibt, sie wird zu reich, Der dritten wallend ihre Flut, Und jede nimmt und gibt zugleich

9 “Reprodução” traduz aqui Wiedergabe; wieder: novamente; -gabe: doação. [N.T.]

Aqui, nem uma fonte efetivamente diante-da-mão é poeticamente ilustrada, nem a essência comum de uma fonte romana é reproduzida. Mas a verdade está posta em obra. Qual verdade acontece na obra? Pode a verdade em geral acontecer e assim ser historial? Verdade, como se diz, é algo atemporal e supratemporal.

Procuramos a efetividade da obra de arte para aí encontrarmos efetivamente a arte que nela se cumpre. Como o efetivo mais próximo na obra verifica-se a infra-estrutura ao modo de coisa [dingliche]. Para abarcar esse modo de coisa, porém, não bastam os conceitos tradicionais de coisa, pois eles mesmos falham quanto à essência do caráter coisal. O conceito dominante de coisa, a coisa como matéria enformada, nem sequer é colhido da essência da coisa, mas sim da essência do utensílio. Também se mostrou que desde há muito tempo o ser-utensílio já assevera um privilégio singular na interpretação do ente. Esse privilégio do ser-utensílio, que nunca foi pensado expressamente, deu o aceno para renovar a pergunta pelo caráter utensiliar, dessa vez evitando as interpretações correntes.

O que seja o utensílio, deixamo-nos dizer através de uma obra. Por aí veio à clara luz, se não para o alcance das mãos, o que na obra está em obra: o abrir-se do ente em seu ser: o acontecimento [Geschehnis 10] da verdade. Se, porém, essa efetividade da obra não pode ser determinada senão por aquilo que na obra está em obra, como é que fica então com nosso propósito de ir ter com a obra de arte efetiva em sua efetividade? Incorreríamos em erro ao presumir a efetividade da obra em primeiro lugar naquela infra-estrutura coisal. Estamos agora perante um resultado notável de nossa reflexão, se é que isso já se pode chamar um resultado. Duas coisas se tornam claras:

Em primeiro lugar: o meio de alcançar o modo de coisa na obra, os conceitos de coisa vigentes, não bastam.

Em segundo lugar: aquilo que com isso queríamos alcançar como a efetividade mais próxima da obra, a infra-estrutura ao modo de coisa, não pertence dessa maneira à obra.

10 É a partir desta palavra, Geschehnis, acontecimento, que Heidegger empreende o resgate do sentido originário da história e historialidade, notando que Geschichte, história, vem da mesma raiz que Geschehnis. Esse sentido originário, trabalhado em Ser e Tempo como a estrutura da temporalidade e em “A Origem da Obra de Arte” como a história que se conquista com a obra de arte, é distinto da Historie, a historiografia que só pode ser construída de forma derivada e sobre a base já irrecuperável do próprio acontecimento enquanto o acontecimento único que ele é. (N.T.)

Tão-logo visemos na obra a algo assim, tomamo-la inadvertidamente por um utensílio, ao qual concedemos, além disso, ainda uma superestrutura que deveria conter o artístico. Mas a obra não é nenhum utensílio que, além disso, ainda está revestido de um valor estético que se lhe acrescenta. Algo assim a obra é tão pouco quanto a mera coisa é um utensílio que apenas foi privado do autêntico caráter utensiliar, da serventia e da fabricação.

Nossa colocação da pergunta pela obra está abalada, porque perguntamos não pela obra, mas sim em parte por uma coisa e em parte por um utensílio. Só que esse não foi um modo de questionamento que desenvolvemos aqui pela primeira vez. É o modo de questionamento da estética. A maneira como ela de antemão observa a obra de arte recai sob o domínio da interpretação tradicional de todo o ente. Mas o abalo dessa forma habitual de colocação da pergunta não é o essencial. O que importa é uma primeira abertura da vista para o fato de o caráter de obra da obra, o caráter de utensílio do utensílio e o caráter de coisa da coisa só se aproximarem de nós se pensarmos o ser do ente. Para isso é necessário que primeiramente caiam as barreiras da auto-evidência e que os ilusórios conceitos correntes sejam postos de lado. Foi por isso que tivemos de fazer um desvio. Mas o desvio nos leva ao mesmo tempo ao caminho que pode conduzir a uma determinação do caráter de coisa na obra. O caráter de coisa na obra não deve ser renegado; mas esse caráter de coisa, se já pertence ao ser-obra da obra, tem de ser pensado a partir do caráter de obra. Se é assim, então o caminho para a determinação da efetividade coisal da obra leva, não à obra atravessando a coisa, mas sim à coisa atravessando a obra.

A obra de arte abre à sua maneira o ser do ente. Na obra acontece esse abrir, i.e., o desencobrir [Entbergen], i.e., a verdade do ente. Na obra de arte a verdade do ente se pôs em obra. A arte é o pôr-se-em-obra da verdade. O que é a verdade mesma, para que se suceda a si [sich ereignet] de tempos a tempos como arte? O que é este pôr-se-em-obra?

A Obra e a Verdade

A origem da obra de arte é a arte. Mas o que é a arte? A arte é efetiva na obra de arte. Por isso procuramos por primeiro a efetividade da obra. Em que ela consiste? As obras de arte mostram recorrentemente, embora de maneiras bem diversas, o caráter coisal. A tentativa de apreender esse caráter coisal da obra com ajuda dos conceitos habituais de coisa fracassou. E não apenas porque esses conceitos de coisa não apanham o coisal, mas porque com a pergunta por sua infra-estrutura ao modo de coisa nós forçamos a obra em uma apreensão prévia, por meio da qual nos obstruímos a passagem ao ser-obra da obra. O coisal na obra nunca poderá ser decidido enquanto o puro estar-em-si [Insichstehen] da obra não se tiver mostrado claramente.

Mas é a obra alguma vez acessível em si? Para lograr isso, seria necessário despojar a obra de todas as referências a qualquer outra coisa que não seja ela mesma, para deixá-la repousar a sós por si e em si. Mas, ora, para isso se volta já a visada mais própria do artista. Por ele a obra deve ser devolvida ao seu puro estar-em-si-mesma [Insichselbststehen]. Justamente, na grande arte, e é apenas dela que se fala aqui, o artista permanece algo indiferente frente à obra, quase como uma passagem aniquilidora de si mesma na criação para a vinda-à-frente [Hervorgang] da obra.

Assim se encontram e penduram as próprias obras nas coleções e exposições. Mas elas são aí em si como as obras que elas mesmas são, ou aí não são antes como os objetos [Gegenstände] da indústria da arte? As obras são tornadas acessíveis ao gozo artístico público e individual. Locais oficiais assumem o cuidado e conservação das obras. Conhecedores e críticos de arte ocupam-se com elas. O negócio da arte zela pelo mercado. As pesquisas históricas da arte fazem das obras objetos de uma ciência. Mas, em meio a toda essa diversificada movimentação [Umtrieb], vêm as próprias obras ao nosso encontro?

As esculturas de Égina na coleção de Munique, a “Antígona” de Sófocles na melhor edição crítica, são, como as obras que são, arrancadas de seu lugar essencial próprio. Por mais elevada que seja a sua estatura e seu poder de impressão, por melhor que seja a sua conservação e ainda segura a sua exegese, o deslocamento para a coleção lhes tomou seu mundo. Mas mesmo se nos dermos ao trabalho de superar ou evitar tais deslocamentos das obras, por exemplo, indo visitar em seu local o templo em Paestum e em sua praça a catedral de Bamberg, o mundo das obras diante-da-mão está ruído.

Subtração de mundo e ruína de mundo não se fazem nunca mais reversíveis. As obras não são nunca mais aquelas que foram. Certamente são elas mesmas que vêm ao nosso encontro, mas elas mesmas são aquelas que foram [die Gewesenen]. É como as que foram que vêm ao nosso encontro no domínio da tradição e conservação. Daí em diante permanecem apenas tais objetos [Gegenstände]. O seu vir-ao-nosso-encontro [Entgegenstehen] é por certo ainda uma conseqüência daquele antigo estar-em-si, mas já não é mais este mesmo. Este lhes fugiu. Toda a indústria da arte, não importa o quanto se tenha desenvolvido e que tudo movimente em prol das próprias obras, alcança sempre apenas o ser-objeto das obras. Este, porém, não constitui o seu ser-obra.

Mas a obra permanece então ainda obra, se está fora de toda e qualquer relação?

Não pertence à obra o estar em relação? Com certeza; apenas resta perguntar em quais relações ela está.

A onde pertence uma obra? A obra pertence como obra somente ao âmbito que é aberto por ela mesma. Pois o ser-obra da obra se essencializa e somente se essencializa em tal abrir-se. Dissemos que na obra está em obra o acontecimento da verdade. A alusão ao quadro de Van Gogh tentava designar esse acontecimento. Em vista disso surgiu a pergunta pelo que seja a verdade e como a verdade pode acontecer.

Colocamos agora a questão da verdade tendo em vista a obra. Todavia, para nos familiarizarmos mais com o que está em questão, é necessário tornar mais uma vez visível o acontecimento da verdade na obra. Para esse intento, seja escolhida de forma conseqüente uma obra que não possa ser contada entre obras da arte figurativa.

Uma obra arquitetônica, um templo grego, não figura nada. Está simplesmente aí erguida, no vale entre os rochedos escarpados. A obra arquitetônica abrange a figura do deus e a deixa soerguer-se nesse acobertamento [Verbergung11] através do pórtico aberto para o entorno sagrado. Através do templo o deus se presentifica no templo. Essa presença

1 Heidegger emprega Unverborgenheit e Verborgenheit como um par conceitual, e faz o mesmo com Lichtung e Verbergung. Perderíamos essa nuance caso traduzíssemos Verbergung pela mesma palavra que Verborgenheit, isto é, por “encobrimento”. Nuance significativa se notarmos, na seqüência do texto, que com a introdução da discussão sobre a clareira e a conquista do lugar aberto, Heidegger põe em questão a possibilidade de engano e ilusão que acontece com a Verbergung, seja no sentido de o ente recusar-se a aparecer (Verbergung como Versagen) seja no sentido de os entes se dissimularem entre si (Verbergung como Verstellen). O emprego de “acobertamento” tem o intuito de recobrir esses dois modos de Verbergung. (N.T.) do deus é em si o alargar-se e demarcar-se do entorno como um sagrado. O templo e seu entorno, porém, não se dissipam flutuando no indeterminado. É a obra-templo que primeiramente junta e reúne em torno a si ao mesmo tempo a unidade daquelas vias e relações nas quais nascimento e morte, desgraça e dádiva, vitória e derrota, prosperidade e decadência – ganham para o ser humano a forma de seu destino. A amplitude dominante dessas relações abertas é o mundo desse povo historial. Somente a partir dela e nela é que ele retorna a si mesmo para a realização de sua determinação.

Estando aí erguida, a obra arquitetônica repousa sobre o fundo rochoso. Esse repousar da obra faz sobressair da rocha o obscuro de sua suportação volumosa e contudo impelida para nada. Aí estando, a obra arquitetônica resiste à tempestade que se alastra, e, assim, revela a própria tempestade em sua fúria. O brilho e o lume dos rochedos, brilhando eles mesmos apenas graças ao sol, mostram pela primeira vez a luz do dia, a amplitude do céu, a escuridão da noite. O erguer-se seguro faz visível o invisível espaço do ambiente. O inabalável da obra resiste ante as vagas do mar e, de seu próprio repouso, deixa-as aparecerem a bramir. A árvore e a grama, a águia e o touro, a cobra e o grilo assumem então o sobressaimento de sua figura e assim vêm à revelação. Esse vir para fora e irromper, ele mesmo e no todo, os gregos desde muito cedo denominavam: a Φύσις. Ela ilumina ao mesmo tempo aquilo no qual e sobre o qual os homens fundam sua morada. Chamamos a isso: a terra [Erde]. O que a palavra quer aqui dizer deve afastar-se tanto da representação de uma massa material amalgamada quanto da representação meramente astronômica de um planeta. A terra é aquilo aonde se recolhe [zurückbirgt] o irromper de tudo o que como tal irrompe. No irromper a terra se essencializa como a acolhente [das Bergende].

A obra-templo, erguendo-se aí, abre um mundo e ao mesmo tempo o restabelece sobre a terra, a qual somente assim vem ela mesma a aparecer como o fundo natal [heimatliche Grund]. Nunca, porém, os homens e os animais, as plantas e as coisas são como objetos imutáveis primeiramente diante-da-mão e conhecidos, e que então, além disso, de passagem apresentariam a ambiência adequada para o templo, que um dia também viria juntar-se ao que já está presente. Aproximamo-nos muito mais daquilo que é se pensarmos tudo inversamente, suposto, é claro, que tenhamos de início os olhos voltados para como tudo se volta para nós de modo inverso. A mera inversão, consumada por si, não resulta em nada.

O templo, em seu erguer-se aí, dá às coisas pela primeira vez a sua face e aos homens o ponto de vista sobre si mesmos. Essa vista permanece aberta por todo o tempo em que a obra é uma obra, por todo o tempo em que o deus não lhe tiver fugido. Assim é também com a imagem do deus, que o vencedor lhe consagra na arena de combate. Ela não é nenhuma cópia figurativa com a qual se conheceria mais facilmente como se parece o deus, mas sim é uma obra que deixa o próprio deus se presentificar e assim é o próprio deus. O mesmo vale para a obra da língua [Sprache 12]. Na tragédia, nada é exibido e representado, mas antes se trava a luta dos deuses novos contra os velhos. Ao se levantar no dizer [Sagen] do povo, a obra da língua não fala sobre essa luta, mas transforma de tal maneira o dizer do povo que agora cada palavra essencial conduz essa luta e põe para decisão o que é sagrado e o que é profano, o que é grande e o que pequeno, o que bravio e o que covarde, o que nobre e o que vil, o que senhor e o que servo (cf. Heráclito, fragmento 53).

Em que consiste, pois, o ser-obra da obra? Mantendo sempre em vista o que acabamos de indicar de forma bastante rude, esclareçamos por primeiro dois rasgos essenciais da obra. Nisso, partiremos daquilo que está no primeiro plano mais extensamente conhecido do ser-obra, o coisal, que fornece um respaldo ao nosso comportamento habitual para com a obra.

Quando uma obra é acomodada numa coleção ou montada numa exposição, diz-se também que é instalada. Mas essa instalação [Aufstellung] é essencialmente diferente da instalação no sentido do levantamento [Erstellung] de uma obra arquitetônica, do erguimento de uma estátua, da apresentação de uma tragédia no feriado comemorativo. Uma tal instalação não quer dizer aqui o mero montar. Consagrar quer dizer louvar no sentido de que, no erigir pela obra, o sagrado se abre como sagrado e o deus é chamado para o aberto de sua presença. Ao consagrar pertence a glorificação como o respeito pela dignidade e brilho do deus. Dignidade e brilho não são propriedades ao lado e atrás das quais está ainda o deus, mas sim: na dignidade, no brilho, o deus se faz presente. No reflexo desse brilho brilha, ou seja, aclara-se, aquilo a que chamamos mundo. Er-igir [Er-richten]

12 Sprache pode significar tanto língua como linguagem; usamos aqui ambas as possibilidades. (N.T.) diz: abrir o justo, no sentido de acompanhar a medida condutora que, como o próprio essencial, dá as coordenadas. Mas por que a instalação da obra é um erigir que louva e glorifica? Porque a obra em seu ser-obra exige isso. Como a obra chega a exigir uma tal instalação? Porque ela mesma em seu ser-obra é instaladora. O que a obra, como obra, instala? Soerguendo-se-em-si [In-sich-aufragend], a obra abre um mundo e o mantém em estada reinante.

Ser-obra significa: instalar um mundo. Mas o que é isto, um mundo? Com referência ao templo isso foi sugerido. A essência do mundo, pelo caminho que agora temos de trilhar, deixa-se apenas indicar. Até mesmo essa indicação se restringe à defesa contra aquilo que de saída poderia atrapalhar a visada essencial.

Mundo não é a mera acumulação das coisas diante-da-mão, contáveis ou incontáveis, conhecidas ou desconhecidas. Mundo também não é uma moldura apenas imaginada, representada em acréscimo à suma dos entes diante-da-mão. Mundo mundifica e é sendo mais do que o mais concebível e perceptível em que nos acreditamos em casa. Mundo não é nunca um objeto que esteja diante de nós e possa ser intuído. Mundo é o sempre não-objetual, sob o qual estamos por todo o tempo em que os rasgos de nascimento e morte, bênção e maldição continuarem a nos mover no ser. Onde recaem as decisões essenciais de nossa história, por nós tomadas e deixadas, onde irreconhecíveis são novamente questionadas, aí o mundo mundifica. A pedra é sem mundo. Plantas e animais também não têm nenhum mundo; mas eles pertencem ao ajuntamento encoberto de uma ambiência na qual se encontram inseridos. Em contrapartida, a camponesa tem um mundo, pois se detém no aberto do ente. O utensílio, em sua confiabilidade, dá a esse mundo uma necessidade e proximidade própria. Ao abrir-se um mundo, todas as coisas recebem sua demora e sua pressa, seu longe e seu perto, sua largura e estreiteza. No mundificar está reunida aquela amplitude a partir da qual a benevolência protetora dos deuses é concedida ou recusada. Também a fatalidade da ausência do deus é uma forma como o mundo mundifica.

Na medida em que uma obra é uma obra, aquela amplitude se arruma. Arrumar [einräumen] significa aqui ao mesmo tempo: libertar o livre do aberto e direcionar esse livre em seus traçados [Gezüge]. Esse direcionamento se essencializa a partir do aludido erigir. A obra, como obra, instala um mundo. A obra mantém aberto o aberto do mundo.

Mas a instalação de um mundo é apenas um dos rasgos essenciais do ser-obra da obra a indicar-se aqui. Tentaremos tornar visível da mesma maneira o outro rasgo que lhe pertence a partir do que encontramos em primeiro plano na obra.

Quando uma obra é trazida-à-frente [hervorgebracht] a partir deste ou daquele material – pedra, madeira, bronze, cor, língua, som – diz-se também que é elaborada [hergestellt] a partir disso. Mas, assim como a obra reclama uma instalação no sentido do erigir que louva e glorifica, porque o ser-obra da obra consiste em uma instalação de mundo, da mesma forma a elaboração [Herstellung] se faz necessária porque o próprio serobra da obra tem o caráter da elaboração. A obra como obra é em sua essência elaboradora. Mas o que a obra elabora? Somente experimentaremos isso se acompanharmos a assim chamada em primeiro plano e habitualmente elaboração de obras.

Ao ser-obra pertence a instalação de um mundo. Qual é a essência, pensada no horizonte dessa determinação, daquilo que, na obra, chama-se ademais o material da obra? O utensílio, porque determinado pela serventia e utilidade, toma em seu uso aquilo de que consiste. A pedra é usada e gasta na fabricação de um utensílio, por exemplo, na de um machado. Ela desaparece na serventia. A matéria é tanto melhor e tão mais apropriada quanto menos resistir a afundar-se no ser-utensílio do utensílio. A obra-templo, em contrapartida, ao instalar um mundo, não deixa a matéria desaparecer, mas sobretudo vir à frente [hervorkommen], e precisamente no aberto do mundo da obra: a rocha vem ao sustentar e jazer e só assim vem a ser rocha; os metais vêm ao resplandecer e cintilar, as cores ao iluminar, o som ao soar, a palavra ao dizer. Tudo isso se precipita ao recolher-se a obra no maciço e grave da pedra, no firme e flexível da madeira, na dureza e brilho do bronze, no iluminar e escurecer das cores, no ressoar do som e no poder nomeador da palavra.

Aonde a obra se recolhe e o que deixa vir à luz nesse recolher-se, a isso chamamos a terra. Ela é a acolhente que vem-à-frente [Hervorkommend-Bergende]. A terra é a incansável e sem esforço impelida para nada. Sobre a terra e nela o homem historial funda a sua morada no mundo. Na medida em que a obra instala um mundo, elabora a terra. O elaborar é aqui para ser pensado no sentido estrito da palavra13 . A obra faz a própria terra voltar-se para o aberto de um mundo e nele a mantém. A obra deixa a terra ser uma terra.

Mas por que é que esse elaborar da terra tem de acontecer de tal forma que a obra se recolha nela? O que é a terra, para que chegue ao não-encoberto precisamente dessa maneira? A pedra pesa e carrega sua gravidade. Mas enquanto esta pesa sobre nós, nega-se ao mesmo tempo a toda penetração nela mesma. Tentemos algo assim, destroçando a rocha: ela nunca mostrará em seus pedaços um interior e aberto. Na mesma hora, a pedra se recolheu de novo no mesmo abafamento do duro e maciço de seus pedaços. Tentemos atingir isso por outra via, pondo a pedra sobre a balança, e apenas traremos a gravidade para a contagem de um peso. Essa determinação talvez muito precisa da pedra permanece uma conta, mas o pesar se furtou a nós. A cor ilumina e também só quer iluminar. Se a medimos racionalmente, decompondo-a em freqüências, ela se ausenta. Ela só se mostra se permanecer não desencoberta e não esclarecida. A terra faz assim despedaçar-se contra si cada intromissão nela mesma. Deixa cada importunamento meramente calculista converterse em uma destruição. Mesmo que este resplenda o brilho de uma soberania e um avanço na figura de uma objetualização [Vergegenständlichung14] técnico-científica da natureza, essa soberania permanece, contudo, uma impotência do querer. A terra só aparece abertamente iluminada como ela mesma lá onde é resguardada e preservada como a essencialmente imperscrutável [Unerschließbare], que não se entrega a nenhuma exploração [Erschließung], quer dizer, mantém-se continuamente encerrada [verschlossen]. Todas as coisas da terra, ela mesma no todo, confluem para um uníssono metamórfico. Mas esse confluir não é nenhum dissolver. Aqui corre a torrente da delimitação que, imperturbável em si, delimita cada presente em sua presença. Assim, em cada coisa que se

13 Traduzimos Herstellung por “elaboração”, como as traduções portuguesa e espanhola, notando porém que o sentido que Heidegger dá aqui à palavra ultrapassa a idéia de elaboração, como ultrapassa o uso corriqueiro, em alemão, de Herstellung. Stellen significa estabelecer, her indica o movimento “para aqui/aí”. A versão francesa, faire-venir, é mais fiel a esse sentido; mas com “fazer-vir” não poderíamos utilizar a mesma palavra como verbo e substantivo. (N.T.) 14 Optamos por “objetualização” e não “objetivização” para salientar a escolha de Heidegger por Vergegenständlichung em vez de algo como Objektivirung. O prefixo ver- indica nesse caso um descaminho na interpretação dos entes, uma turvação da natureza em objeto; entonação, portanto, propositalmente pejorativa. A objetualização técnico-científica da natureza é o seu ser objeto já disponibilizado como algo diante-da-mão que serve para o uso, para ser à-mão como um Gegenstand, objeto dado. Essa objetualização pode ser pensada como um coroamento, uma realização efetiva da objetivização técnico-científica que a possibilita. (N.T.) encerra, está o mesmo desconhecer-se. A terra é, essencialmente, aquela que se encerra. E- laborar [Her-stellen 15] a terra quer dizer: trazê-la ao aberto como aquilo que se encerra.

A obra realiza essa elaboração da terra ao devolver-se a si mesma à terra. O encerrar-se da terra, porém, não é nenhum permanecer-encoberto uniforme e hirto, mas ele se desdobra em uma inesgotável plenitude de maneiras e formas simples. Por certo o escultor usa a pedra, tal como, à sua maneira, também o pedreiro lida com ela. Mas ele não gasta a pedra. Isso só acontece, de alguma maneira, quando a obra dá errada. Por certo, também o pintor usa a tinta, mas de tal modo que a cor não seja gasta, e sim só venha a iluminar. Por certo o poeta usa a palavra, mas não como o falante e escrevinhador habituais têm de gastar as palavras, e sim de tal forma que a palavra se torna pela primeira vez verdadeiramente uma palavra e assim permanece.

Em nenhuma parte se essencializa na obra algo como um material. Permanece até mesmo duvidoso se, na determinação essencial do utensílio, com a sua caracterização como matéria em sua essência utensiliar, é encontrado aquilo de que ele consiste.

O instalar de um mundo e o elaborar da terra são dois rasgos essenciais no ser-obra da obra. Porém, eles pertencem juntos à unidade do ser-obra. Procuramos essa unidade quando pensamos o estar-em-si da obra e tentamos exprimir aquele fechado e íntimo repouso do repousar-sobre-si.

Com os mencionados rasgos essenciais, demos a conhecer, na obra – se é que isso já é algo de concludente – antes um acontecer e de modo algum um repouso; pois o que é repouso, senão a contradição do movimento? Em todo caso, não é uma contradição que expulsa de si o movimento, mas sim o encerra. Só o que se move pode repousar. O modo do repouso é a cada vez consoante o tipo do movimento. No movimento como mero deslocamento de um corpo, o repouso é manifestamente apenas o caso limite do movimento. Quando o repouso encerra o movimento, pode dar-se um repouso que seja a íntima reunião do movimento, portanto a mais alta mobilidade, aceite esteja que o tipo do movimento exige um tal repouso. Desse tipo, porém, é o repouso da obra que repousa em si. Por isso, aproximamo-nos mais desse repouso se lograrmos abarcar de forma coesa a

15 Aqui fica explícito o problema na tradução de Herstellung por “elaboração”: com o hífen Heidegger enfatiza a indicação na própria palavra do movimento de fazer vir, de trazer aí. (N.T.) mobilidade do acontecer no ser-obra. Perguntamos: que relações a instalação de um mundo e a elaboração da terra mostram na própria obra?

O mundo é a abertura [Offenheit] que se abre das vastas vias das simples e essenciais decisões no destino de um povo historial. A terra é o vir-à-frente para nada impelido do constante encerrar-se e assim acolher. Mundo e terra são essencialmente diferentes um do outro e, não obstante, nunca separados. O mundo se funda sobre a terra e a terra se ergue atravessando o mundo. A relação entre mundo e terra de modo algum degenera na unidade vazia da contraposição que não leva a nada. O mundo aspira, em seu repousar sobre a terra, a fazê-la sobressair. Como aquele que se abre, não tolera nenhum encerrado. A terra, porém, como a acolhedora, tende a cada vez a puxar o mundo para dentro de si e em si mantê-lo.

A confrontação de mundo e terra é um combate [Streit]. Com certeza é muito fácil falsearmos a essência do combate, ao equipará-la à discórdia e à querela e conhecê-la assim apenas como estorvo e destruição. No combate essencial, todavia, os combatentes levantam a cada vez um ao outro, na auto-afirmação de sua essência. A auto-afirmação da essência, contudo, nunca é o endurecimento em um estado casual, mas o entregar-se à encoberta originariedade da proveniência do próprio ser. No combate, cada um lança o outro além de si. O combate se torna assim cada vez mais disputável, mais autenticamente o que ele é. Quanto mais duramente o combate se força por si mesmo ao extremo, tanto mais inflexivelmente os combatentes se soltam para a intimidade do simples pertencer a si. A terra não pode prescindir do aberto do mundo, se ela mesma como terra deve aparecer na pressão liberta de seu encerrar-se. O mundo, por sua vez, não pode suspender-se da terra, se deve como órbita e amplitude dominante de todo destino essencial fundar-se sobre algo de decisivo.

A obra, ao instalar um mundo e elaborar a terra, é a instigação desse combate. Mas isso não acontece para que a obra, numa concordância insípida com o combate, ao mesmo tempo o abata e o abrande, mas sim para que o combate permaneça um combate. Instalando um mundo e elaborando a terra, a obra traz esse combate à plenitude. O ser-obra da obra consiste na disputa do combate [Bestreitung des Streites] entre mundo e terra. É porque o combate eleva-se ao máximo na simples intimidade que acontece na disputa do combate a unidade da obra. A disputa do combate é a constante reunião que se força ao extremo da mobilidade da obra. Na intimidade do combate, por isso, o repouso da obra a repousar em si tem a sua essência.

Somente a partir desse repouso da obra é que podemos vislumbrar o que na obra está em obra. Até aqui permanecia sempre apenas uma afirmação antecipada a de que na obra de arte estaria posta em obra a verdade. Em que medida acontece, no ser-obra da obra, o que agora quer dizer: em que medida acontece, na disputa do combate de mundo e terra, a verdade? O que é verdade?

Quão diminuto e obtuso é o nosso saber da essência da verdade, isso o mostra a negligência com que nos entregamos ao uso dessa palavra fundamental. Com verdade querse dizer na maioria das vezes esta e aquela verdade. Isso significa: algo verdadeiro. Desse tipo pode ser um conhecimento que se enuncia em uma proposição. Porém, chamamos de verdadeira não apenas uma proposição, mas também uma coisa – ouro verdadeiro à diferença de ouro aparente. Verdadeiro significa aqui o mesmo que autêntico, efetivo ouro. O que significa aqui o falar do efetivo? Como tal [efetivo] vale para nós o ente na verdade. Verdadeiro é o que corresponde ao efetivo, e efetivo é o que é na verdade. O círculo novamente se fechou.

O que quer dizer “na verdade”? Verdade é a essência do verdadeiro. Em que pensamos quando dizemos essência? Como tal [essência] vale habitualmente aquele comum com o qual todo o verdadeiro se põe de acordo. A essência se dá no conceito genérico e universal, representativo do um que vale igualmente para muitos. Mas essa essência igualmente-válida (a essencialidade [Wesenheit] no sentido da essentia) é apenas a essência inessencial. Em que consiste a essência essencial de algo? Provavelmente ela repousa naquilo que o ente na verdade é. A essência verdadeira de uma coisa determina-se a partir de seu verdadeiro ser, a partir da verdade do ente a cada vez em questão. Só que não é a verdade da essência que procuramos agora, e sim a essência da verdade. Um enredamento notável se mostra. É ele apenas uma curiosidade ou será a mera sutileza vazia de um jogo conceitual ou – um abismo?

Verdade significa essência do verdadeiro. Pensamos isso a partir da rememoração da palavra dos gregos Αλήθεια, que quer dizer o não-encobrimento do ente. Mas é isto já uma determinação da essência da verdade? Não fazemos a mera mudança da palavra empregue – não-encobrimento no lugar de verdade – passar por uma caracterização da coisa [Sache]? Em todo caso, ficamos numa troca de nomes enquanto não experimentarmos o que tem de ter então acontecido para tornar-se necessário dizer a essência da verdade na palavra não-encobrimento.

É necessário, para isso, uma renovação da filosofia grega? De modo algum. Uma renovação, mesmo se esse impossível fosse possível, em nada nos ajudaria; pois a história encoberta da filosofia grega consiste desde seu começo em que ela não permanece conforme à essência da verdade que reluz na palavra αλήθεια e em que seu saber e dizer da essência da verdade transfere-se cada vez mais para a discussão de uma essência derivada da verdade. A essência da verdade como αλήθεια permanece, no pensamento dos gregos e mais ainda na filosofia subseqüente, impensada. O não-encobrimento é para o pensar o mais encoberto no ser-aí grego, mas simultaneamente é o que, desde cedo, determina toda a presença do presente.

Mas por que não nos damos por satisfeitos com a essência da verdade que nos é familiar desde há séculos? Verdade significa hoje e desde há muito a concordância do conhecimento com a coisa [Sache]. Todavia, para que o conhecer e a proposição formadora e enunciativa do conhecimento possam medir a coisa, para que antes disso a coisa mesma possa tornar-se obrigatória para a proposição, a própria coisa tem de se mostrar como tal. Como poderá se mostrar, se ela mesma não pode erguer-se para fora do encobrimento, se ela mesma não está de pé no não-encoberto? A proposição é verdadeira na medida em que se orienta pelo não-encoberto, ou seja, pelo verdadeiro. A verdade da proposição é sempre e sempre apenas essa corretude [Richtigkeit]. Os conceitos críticos de verdade, que desde Descartes partem da verdade como veracidade, são apenas variações da determinação da verdade como corretude. Essa essência da verdade que nos é corriqueira, a corretude da representação, levanta e cai com a verdade como não-encobrimento do ente.

Se nós aqui e de resto tomarmos a verdade como não-encobrimento, não estaremos apenas nos refugiando numa tradução textual de uma palavra grega. Recordamo-nos daquilo que está ao fundo como não-experimentado e impensado da essência da verdade no sentido de corretude, para nós tão corrente e por isso gasta. Costumamos consentir com a declaração de que nós, naturalmente, para justificar e conceber a corretude (verdade) de uma proposição, teríamos de retornar a algo que já seja manifesto. Seja essa pressuposição de fato incontornável. Enquanto falarmos e pensarmos assim, estamos entendendo a verdade sempre apenas como corretude, a qual certamente ainda carece de uma pressuposição, que então nós mesmos fazemos – queira o céu saber como e por que.

Mas não somos nós que pressupomos o não-encobrimento do ente, é antes o nãoencobrimento do ente (o ser) que nos coloca em uma essência tal que, em nossa representação, permanecemos sempre inseridos no não-encobrimento e sempre atrás a segui-lo. Não apenas aquilo pelo que se orienta um conhecimento tem de ser de algum jeito já não-encoberto, mas também todo o âmbito no qual se move esse “orientar-se por algo”, e do mesmo modo aquilo para o qual um ajustamento da proposição à coisa se torna manifesto, já tem de jogar-se como um todo no não-encoberto. Nós nada seríamos com todas as nossas representações corretas, não poderíamos sequer pressupor alguma vez que algo pelo qual nos orientamos já fosse manifesto, se o não-encobrimento do ente já não nos tivesse exposto naquele aclarado [Gelichtete], no qual todo ente se nos salienta e a partir do qual ele de novo se recolhe.

Mas como pode ser assim? Como é que a verdade acontece como esse nãoencobrimento? Mas ainda cumpre dizer mais claramente o que é esse não-encobrimento mesmo.

As coisas são e também os seres humanos, dádivas e sacrifícios são, animal e planta são, utensílio e obra são. O ente está [steht] no ser. Através do ser corre uma fatalidade oculta, suspensa entre o divino e o anti-divino. Muito no ente o homem não é capaz de domar. Pouco se deixa conhecer. O conhecido permanece algo aproximado, o dominado algo incerto. Nunca, como facilmente poderia causar deslumbre, o ente está sob nosso poder e nem mesmo [sob] nossa representação. Pensemos esse todo em um, então abarcaremos, assim parece, tudo o que em geral é, ainda que o abarquemos de forma bastante elementar.

E, todavia: para além do ente, mas não longe dele, e sim adiantadamente a ele, acontece ainda algo mais. Em meio ao ente no todo essencializa-se um lugar aberto. Uma clareira [Lichtung] é. Pensada a partir do ente, ela é sendo mais do que o ente. Este meio aberto não é, por isso, abrangido pelo ente, mas antes: o próprio meio aclarador circunda todo ente como o nada, que mal conhecemos.

O ente como ente só pode ser na medida em que está inserido e exposto no aclarado dessa clareira. Somente essa clareira presenteia e concede a nós humanos uma passagem para o ente que nós mesmos não somos e a entrada ao ente que nós mesmos somos. Graças a essa clareira o ente é não-encoberto segundo determinadas e mutáveis medidas. Até mesmo encoberto o ente só pode ser no espaço de jogo do aclarado. Qualquer ente que vem ao [nosso] encontro [begegnet] e que [nos] acompanha [mitgegnet] detém esse estranho poder de oposição da presença, na medida em que ao mesmo tempo sempre se recolhe em um encobrimento [Verborgenheit]. A clareira na qual o ente se insere é em si ao mesmo tempo acobertamento. Acobertamento, porém, cumpre-se em meio ao ente de uma dupla maneira.

O ente se nos recusa até chegar àquele um e aparentemente ínfimo, que encontramos o quanto antes quando ainda apenas podemos dizer do ente que ele é. O acobertamento como recusa não é primeiro e somente a fronteira que a cada vez se põe para o conhecimento, mas sim é o início da clareira do aclarado. Mas há também acobertamento ao mesmo tempo, manifestamente de outro jeito, no interior do aclarado. O ente se impele para o ente, um eclipsa o outro, aquele obscurece este, pouco obstrui muito, isolados renegam o todo. Aqui o acobertar não é aquela pura e simples recusa, mas sim: o ente de fato aparece, mas se dá de outro jeito do que ele é.

Este acobertar é o camuflar [Verstellen 16]. Se o ente não camuflasse o ente, então não poderíamos nos iludir com o ente e dar passos em falso, não poderíamos nunca nos desencaminhar e nos perder e por fim nunca poderíamos nos exceder. Que o ente possa iludir como aparência é a condição para que possamos nos confundir, e não o contrário.

O acobertamento pode ser uma recusa ou uma camuflagem. Nunca temos a cada vez imediatamente a seguridade se ele é um ou o outro. O acobertar acoberta e camufla a si mesmo. Isso quer dizer: o lugar aberto em meio ao ente, a clareira, nunca é um palco fixo com cortinas constantemente levantadas, no qual se joga o jogo do ente. Muito mais, a clareira acontece somente como esse acobertar de dupla face. O não-encobrimento do ente nunca é apenas um estado diante-da-mão, mas sim um acontecimento. Não-encobrimento (verdade) não é uma propriedade, nem das coisas [Sachen] no sentido do ente, nem das proposições.

16 Optamos por “camuflar”, e não “dissimular”, como as traduções portuguesa, espanhola (“disimular”) e francesa (“dissimulation”), para evitar o equívoco de se tratar de algo intencional, como se a verdade, antropomorficamente, dissimulasse a si mesma. (N.T.)

No círculo mais próximo do ente, acreditamo-nos em casa. O ente é familiar, de confiança, insuspeito [geheuer]. Não obstante, atravessando a clareira se lança um constante acobertar na dupla figura da recusa e da camuflagem. O insuspeito, no fundo, não é insuspeito; ele é in-suspeitado [un-geheuer 17]. A essência da verdade, quer dizer, do não- encobrimento, é regida por uma denegação. Esse denegar não é, todavia, uma falta ou erro, como se a verdade nada mais fosse que o mero não-encobrimento que se livrou de todo encoberto. Se ela pudesse isso, já não seria mais ela mesma. À essência da verdade como o não-encobrimento pertence esse denegar na maneira do acobertar de dupla face. A verdade é em sua essência não-verdade. Assim seja dito para apontar com uma agudeza talvez intimidante que ao não-encobrimento como clareira pertence o denegar na maneira do acobertar. A proposição: a essência da verdade é a não-verdade, não quer dizer, porém, que a verdade é no fundo falsidade. Tampouco quer a proposição dizer que a verdade nunca seria ela mesma, mas que seria, dialeticamente representada, sempre justamente o seu contrário.

A verdade se essencializa como ela mesma na medida em que o denegar acobertador confere, como recusa, primeiramente a toda clareira a constante proveniência, ao mesmo tempo em que, como camuflagem, confere a toda clareira o corte implacável do desengano. Com o denegar acobertador deve-se designar na essência da verdade aquele contraposto que na essência da verdade se encontra entre clareira e acobertamento. Ele é o um-contra-o-outro do combate originário. A essência da verdade é em si mesma o arquicombate [Urstreit] em que é logrado aquele meio aberto, no qual o ente se insere e a partir do qual ele em si mesmo novamente se recolhe.

Esse aberto acontece em meio ao ente. Ele mostra um rasgo essencial que já mencionamos. Ao aberto pertence um mundo e a terra. Mas o mundo não é simplesmente o aberto que corresponde à clareira, a terra não é o encerrado que corresponde ao acobertamento. Antes, o mundo é a clareira das vias essenciais pelas quais todo o decidir vem a ajuntar-se. Cada decisão, porém, funda-se em um não vencido, encoberto, desconcertante, senão não seria nunca decisão. A terra não é pura e simplesmente o encerrado, mas sim aquilo que irrompe como o que encerra a si. Mundo e terra são sempre

17 Ungeheuer: “inaudito”, também “monstruoso”. Heidegger joga com o prefixo de negação (un-), que não é algo subseqüente, mas originário, como em Unverborgenheit (vide nota 4). (N.T.) em si e segundo sua essência combatentes e combativos. É apenas assim que entram no combate de clareira e acobertamento.

Terra se ergue atravessando mundo, mundo funda-se sobre a terra, apenas na medida em que a verdade acontece como o arquicombate de clareira e acobertamento. Mas como acontece verdade? Respondemos: acontece de umas poucas maneiras essenciais. Uma dessas maneiras como a verdade acontece é o ser-obra da obra. Instalando um mundo e elaborando a terra, a obra é a disputa daquele combate no qual é batalhado o nãoencobrimento do ente no todo, a verdade.

No estar-aí-erguido do templo acontece a verdade. Isso não quer dizer que aqui algo é corretamente apresentado e reproduzido, mas sim que o ente no todo é trazido ao nãoencobrimento e nele preservado. Preservar significa originalmente proteger. Na pintura de Van Gogh a verdade acontece. Isso não quer dizer que algo diante-da-mão é aqui corretamente copiado, mas sim que no tornar-aberto do ser-utensílio do utensílio calçado, o ente no todo, mundo e terra em seu jogo mútuo, chega ao não-encobrimento.

Na obra está em obra a verdade, portanto não apenas algo verdadeiro. O quadro que mostra os sapatos de camponês, o poema que diz a fonte romana, não exprimem apenas o que sejam esses entes isolados como tais, se é que alguma vez exprimem algo; antes deixam acontecer o não-encobrimento como tal em relação ao ente no todo. Quanto mais simples e essencialmente aparecer somente o calçado, quanto mais despojada e pura transcorrer apenas a fonte romana em sua essência, tanto mais imediata e expressivamente todo o ente se torna mais ente junto a eles. Dessa maneira vem a aclarar-se o ser que se encobre. A luz assim formada ajunta seu brilho na obra. O brilho ajuntado na obra é o belo. Beleza é uma maneira como a verdade como não-encobrimento se essencializa.

Agora, certamente, a essência da verdade está mais claramente abarcada em alguns aspectos. Por conseguinte, deveria ter-se tornado mais claro o que na obra está em obra. Só que o ser-obra da obra agora visível ainda não nos diz nada sobre a efetividade mais próxima e maçadora da obra, sobre o coisal na obra. Quase parece como se nós, na intenção exclusiva de abarcar o próprio estar-em-si da obra o mais puramente possível, tivéssemos passado totalmente por cima do fato de que uma obra é sempre uma obra, o que quer dizer, algo efetuado [Gewirktes]. Se algo destaca a obra como obra, isso se deve ao ser-criada [Geschaffensein] da obra. Na medida em que a obra é criada e o criar [Schaffen] requer um médium a partir do qual e no qual se cria, aquele coisal também vem à obra. Isso é incontestável. Só que permanece a pergunta: como o ser-criada pertence à obra? Isso só se deixa iluminar se duas coisas se esclarecerem: 1. O que se chama aqui ser-criada e criar, à diferença do finalizar [Verfertigen] e ser-finalizado [Angefertigtsein]? 2. Qual é a essência mais íntima da própria obra, a partir de onde unicamente se deixa avaliar em que medida lhe pertence o ser-criada e até que ponto este determina o serobra da obra?

Criar é aqui pensado sempre em relação à obra. À essência da obra pertence o acontecer da verdade. Determinamos de antemão a essência do criar a partir de sua referência à essência da verdade como o não-encobrimento do ente. A pertença do sercriada à obra só pode ser posta à luz a partir de um esclarecimento ainda mais originário da essência da verdade. A pergunta pela verdade e sua essência retorna.

Temos de perguntá-la ainda uma vez, caso a proposição: na obra está em obra a verdade, não deva permanecer uma mera afirmação.

Temos agora de perguntar mais essencialmente: até que ponto há na essência da verdade um rasgo para algo como uma obra? De que essência é a verdade que, para ser como verdade, ela possa ser posta na obra ou até tenha de sê-lo sob determinadas condições? O pôr-em-obra da verdade, todavia, foi por nós determinado como a essência da arte. A pergunta por fim levantada, assim, soa:

O que é a verdade, que ela pode acontecer como arte ou até mesmo tenha de acontecer assim? Em que medida se dá a arte?

A Verdade e a Arte

A origem da obra de arte e do artista é a arte. A origem é a proveniência da essência, na qual se essencializa o ser de um ente. O que é a arte? Procuramos sua essência na obra efetiva. A efetividade da obra determinou-se a partir do que na obra está em obra, a partir

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