A operação Lava Jato

Desde o primeiro artigo que publicamos acerca das exigências fiscais envolvendo a operação lava-jato, no início de 2017, surgiram várias manifestações relativas à definição da natureza jurídica do Imposto de Renda instituído pelo artigo 61 da Lei n.º 8.981/95.

Há referências à uma interpretação teleológica, histórica e outras tantas que como regra acabam por concluir que a exação instituída pelo artigo 61 da Lei 8.981/95 teria origem na tributação dos dividendos pagos aos sócios, à alíquota de 15%, em momento anterior à isenção instituída pela Lei n.º 9.249/95.

Resumidamente, entende-se que a tributação pelo IRRF decorrente do pagamento a beneficiário não identificado, ou se identificado, quando não comprovada a operação ou sua causa, teria a natureza jurídica de tributo, pago em substituição do tributo não pago, ou que deveria ser pago, pelo beneficiário.

Pensamos de forma distinta.

De fato, entendemos que o IRRF em questão – o instituído pelo artigo 61 da Lei n.º 8.981/95 – tem natureza jurídica de sanção e, por este motivo, seu lançamento não pode ser cumulado com o lançamento de multa de ofício – 75% ou qualificada, 150% -.

Conduta que independe da Realização de Renda

Como aponta o artigo 4º, inciso I, do Código Tributário Nacional, a natureza jurídica do tributo deve ser extraída a partir do aspecto material do fato gerador, sendo irrelevante a denominação utilizada pela lei.

Portanto, pouco importa que a lei diga que se trata de hipótese de incidência do imposto de renda, é necessário verificar a materialidade da obrigação pecuniária instituída.

Do exame da norma em questão, verifica-se que no antecedente de sua regra de incidência há uma conduta que independe da realização de renda por parte do sujeito passivo desta relação.

De forma objetiva, há que se verificar que a conduta a ser realizada para que nasça a obrigação de recolhimento do IRRF instituído pelo artigo 61 da Lei n.º 8981/95 é a realização de todo pagamento efetuado a beneficiário não identificado, ou quando identificado o beneficiário, não restar comprovada a operação que gerou o pagamento ou a causa da operação.

Assim, temos que a hipótese de incidência da norma não guarda relação com o auferimento de renda por qualquer das partes envolvidas na relação jurídica.

O ato que desencadeia a relação jurídica é o simples pagamento nas condições estabelecidas acima (a “beneficiário não identificado” ou “sem causa”). Portanto, inexiste a figura da renda, do ato de auferir renda, por parte do beneficiário ou de quem efetua o pagamento.

Reforçando o argumento acima, há que se verificar que a norma veiculada pelo artigo 61 da Lei n.º 8981/95 não condiciona a incidência do IRRF ao não oferecimento dos rendimentos por parte do beneficiário.

Importante frisar que na eventualidade de o beneficiário haver oferecido a renda à tributação e, a posteriori, tal fato vir a ser comprovado por quem efetuou o pagamento, a legitimidade da exigência do IRRF em questão permanece inequívoca. Se à época do pagamento o beneficiário não era identificável, ou mesmo se identificado, a operação ou sua causa não forem comprovadas, caberá a exigência do IRRF.

De fato, o referido artigo 61 traz em seu caput a qualificação do IRRF como exação definitiva, considerando o rendimento como líquido, portanto, livre de futuro ajuste, cabendo, inclusive, o reajustamento do respectivo rendimento bruto sobre o qual recairá o IRRF, conhecido entre tributaristas pela expressão inglesa gross up, nos termos previstos no § 3º do artigo 61.

Nota-se que o fato de não existir a figura da renda, na medida em que a conduta que desencadeia a incidência do IRRF independe da existência desta em qualquer dos sujeitos da relação – pagador ou beneficiário -, reforça a conclusão no sentido de que estamos diante de uma sanção, não de um tributo.

Do ponto de vista de quem paga, estamos diante de uma despesa, não de uma receita ou de uma renda percebida. Por sua vez, do ponto de vista do beneficiário, da mesma forma, inexiste a figura da renda, na medida em que o fato de o beneficiário oferecer ou não a renda percebida à tributação em nada importa para a incidência do IRRF em questão.

Em sendo a hipótese prevista na norma um ato exclusivo de quem paga – ato de “efetuar pagamento” a “beneficiário não identificado” -, não sendo necessário qualquer outro ato por parte de terceiros, resta demonstrado que a incidência do IRRF ora debatida independe da constatação ou realização de renda – signo presuntivo de riqueza passível de tributação -. Diante da constatação de que a exação independe da pratica de ato que manifeste a realização de riqueza, forçosa a conclusão de que se está diante de uma exação com cunho de sanção, não de um tributo!

Demonstrada a ausência de renda, inexiste a figura da retenção por responsabilidade ou substituição

Afastada a figura da renda, como necessária para a incidência do IRRF em questão, temos como consequência que inexiste a possibilidade de referido IRRF ser exigido por responsabilidade ou mesmo por substituição tributária. Trata-se de exação sancionatória e decorrente da pratica de um ato cuja pratica se pretende reprimir, combater, e cuja aplicação tem finalidade claramente pedagógica.

Se o intuito fosse alcançar a renda do beneficiário, numa hipótese clássica de substituição tributária ou responsabilidade, o fato de o beneficiário haver oferecido a renda à tributação quando do ajuste afastaria a incidência do IRRF, nos mesmos termos verificados nas hipóteses de incidência do Imposto de Renda Retido na modalidade Fonte, em que a fonte pagadora, obrigada à retenção do tributo, deixa de o fazer e, findo o exercício, é excluída a responsabilidade da fonte pagadora, passando a ser legítima a exigência do Imposto de Renda apenas do beneficiário, não mais da fonte pagadora.

Nesse sentido, há expressa manifestação das autoridades fiscais, nos termos firmados no Parecer Normativo COSIT n.º 1 de 2002, de 24/09/2002.

De fato, a exclusão da incidência do IRRF nas hipóteses tratadas no Parecer COSIT, acima referido, corrobora a conclusão no sentido de que a hipótese prevista no artigo 61 da Lei n.º 8.981/95 tem natureza sancionatória e não de tributo retido e recolhido por força de responsabilidade ou substituição tributária.

Da natureza sancionatória da exação

Por definição, tributo não pode constituir “sanção de ato ilícito”, conforme o disposto no artigo 3º do Código Tributário Nacional.

Resta demonstrado, assim, que a hipótese normativa em análise caracteriza um ato ilícito, porque contrário ao direito, decorrente da não observância de um dever legal (documentar as relações jurídicas de cunho patrimonial), que causa um prejuízo ao Fisco (impossibilidade do próprio exercício da competência tributária).

Mais especificamente, temos que a natureza jurídica da exação em tela é de multa tributária, decorrente do descumprimento de uma obrigação acessória tal como prevista no § 3º, do artigo 113, do Código Tributário Nacional:

“§ 2º A obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos.”

Como visto acima, a conduta que se busca apenar no caso em tela é a não documentação de uma relação jurídica de cunho patrimonial passível de gerar efeitos tributários. É, portanto, uma prestação negativa, decorrente da legislação tributária, “no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos”.

Não havendo imposto a ser recolhido junto com a multa – já que afastada sua natureza tributária – temos que a exação assume a feição de multa isolada.

Pois bem, definida a natureza da exação em questão, passamos a análise das consequências da confirmação de que estamos diante de uma sanção e não de um tributo.

Da impossibilidade do lançamento de multa de ofício calculada sobre o IRRF instituído pelo artigo 61

No contexto da operação lava jato, se tem notícia de que as autuações fiscais têm exigido, além do indevidamente denominado imposto de renda retido na fonte, com base no artigo 61 da Lei nº 8.981/95, multa de ofício qualificada, no patamar de 150%, nos termos do artigo 44, § 1º, da Lei nº 9.430/96.

A multa de ofício, como aponta a doutrina, “apena o inadimplemento do tributo, tutelando a arrecadação tributária”, no que é acompanhando pelo entendimento da jurisprudência administrativa.

É, portanto, uma espécie de sanção, cujo pressuposto de aplicação é o inadimplemento do tributo.

Como visto acima, não há que se falar em inadimplemento de tributo no presente caso, pois a exação instituída pelo artigo 61 da Lei nº 8.981/95 tem natureza jurídica de multa tributária, mais especificamente de multa isolada.

Tão somente por tal razão já seria indevida a exigência da multa de ofício, haja vista a ausência do pressuposto para sua aplicação (inadimplemento de tributo).

Como se não bastasse, considerando a natureza da exação delineada acima, a manutenção da multa de ofício redundaria na exigência de multa sobre multa, o que é inadmissível no ordenamento jurídico vigente.

Isso porque, tanto a multa de ofício, quanto a agora apropriadamente denominada multa isolada, prevista no artigo 61 da Lei nº 8.981/95, são aplicadas a partir de uma única conduta do contribuinte, qual seja, efetuar um pagamento desacompanhado da documentação adequada.

Ocorre que o Estado não pode apenar duas vezes uma única conduta, entendimento consagrado pelo princípio do no bis in idem.

Em matéria de direito tributário, o referido princípio tem ampla aplicação, como se verifica a título exemplificativo dos precedentes mencionados abaixo:

“BIS IN IDEM. MULTA ADMINISTRATIVA. PERDIMENTO. REGULAMENTO. MULTA EQUIVALENTE.

Verificando-se que a mesma conduta praticada enseja a aplicação tanto da multa administrativa pela diferença entre o preço declarado e o arbitrado quanto da pena de perdimento da mercadoria, aplica-se somente a pena de perdimento, conforme determina o Regulamento Aduaneiro/2009. No caso, não tendo sido as mercadorias localizadas, aplica-se a multa equivalente ao valor aduaneiro, que substitui a pena de perdimento. […]” (Acórdão nº 3402-003.314, Rel. Maria Aparecida Martins de Paula, 2ª Turma Ordinária, 4ª Câmara, 3ª Seção do CARF, julgado em 28/09/2016)

“MULTA ISOLADA. ENCERRAMENTO DO ANO-CALENDÁRIO. LANÇAMENTO DO TRIBUTO DEVIDO ACRESCIDO DE MULTA DE OFÍCIO E DE MULTA ISOLADA. CARNÊ-LEÃO. BIS IN IDEM. PRINCÍPIO PENAL DA CONSUNÇÃO.

A multa isolada é sanção aplicável nos casos em que o sujeito passivo, no decorrer do ano-calendário, deixar de recolher o valor devido a título de carnê-leão ou estimativas.

[…]

Ambas as infrações são resultado de um fato comum, que não podem caracterizar, mais de uma infração, pois resultaria em o bis in idem o qual é incompatível com o regime estabelecido pelo art. 112, do CTN.” (Acórdão nº 2301-004.553, Rel. Joao Bellini Junior, 1ª Turma Ordinária, 3ª Câmara, 2ª Seção do CARF, julgado em 08/03/2016 – g.n.)

“MULTA DE OFÍCIO E MULTA ISOLADA. APLICAÇÃO SIMULTÂNEA. INDEVIDO BIS IN IDEM. CANCELAMENTO DA MULTA ISOLADA.

Não se admite a imposição simultânea da multa de ofício e da multa isolada, sob pena de consolidação de indevido bis in idem” (Acórdão nº 1102-001.223, Rel. Francisco Alexandre dos Santos Linhares, 2ª Turma Ordinária, 1ª Câmara, 1ª Seção do CARF, julgado em 21/10/2014)

No caso em apreço, de rigor o cancelamento da multa de ofício, porque como visto acima não se trata de hipótese de inadimplemento quanto ao recolhimento de tributo. A conduta mirada pelo artigo 61 da Lei nº 8.981/95 é de ordem instrumental, sendo certo que a exação prevista na ordem de 35% já cumpre o papel de norma sancionadora.

É por isso que, como adiantado, no início deste artigo, entendemos que o IRRF em questão – o instituído pelo artigo 61 da Lei n.º 8981/95 – tem natureza jurídica de sanção e, por este motivo, seu lançamento não pode ser cumulado com o lançamento de multa de ofício – 75% ou qualificada, 150% -; ou mesmo cumulado com o reajustamento da base de cálculo de incidência – gross up – sobre a qual recairá a exigência, nos termos reclamados pelo § 3º do referido artigo 61.

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