A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DA GEOGRAFIA HISTÓRICA PARA A COMPREENSÃO DO ESPAÇO URBANO

 

 

 

 

Resumo

O texto versa sobre geografia e história e modo como tal  relação afeta  o grau de  percepção e  compreensão do espaço urbano.

 

Palavras chaves: geografia, história, cidade

 

Abstract

The papper shows kow can be useful the relationship between geography and history  to understand urban space.

 

Key-words: geography, history , city

 

APRESENTAÇÃO

 

            Ao caminharmos pela cidade, deparamo-nos com uma paisagem rica em símbolos e significados. Como nos lembra Milton Santos, a paisagem é a soma de tempos desiguais. Desta forma, em relação ao espaço urbano, não podemos ignorar a importância da análise multidimensional das escalas de temporal e espacial.

A geografia não pode ignorar a dimensão temporal do espaço urbano. Assim sendo, pretendemos discutir um tema que é ainda subutilizado nos estudos da Geografia Urbana, a Geografia Histórica.

Atualmente, vivemos um momento de mudança onde a instantaneidade das informações permite a homogeneização dos lugares. Neste sentido, visando a sua sobrevivência, a sociedade busca singularidades que possam identificar os lugares, e o passado é uma das dimensões mais importantes da singularidade, materializado na paisagem (ABREU, 1998).

Sendo assim, este artigo propõe mostrar como o uso da Geografia Histórica pode contribuir para o melhor entendimento das formas atuais do espaço urbano de um modo geral, e de suas partes, analisadas na escala do bairro.

 

A DIMENSÃO TEMPORAL DO ESPAÇO: A GEOGRAFIA HISTÓRICA

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Dentre os vários campos da ciência geográfica, a geografia histórica que tem como proposta explicar geografias passadas, é um dos mais polêmicos.

A esse respeito Karl Ritter[3] afirma que “A ciência geográfica não pode desprezar o elemento histórico, se pretende ser verdadeiramente um estudo do território e não uma obra abstrata, uma moldura através da qual se veja o espaço vazio…”.

Santos (1992), Harvey (1996), Abreu (1998) e Magnoli (1999) nos mostram a importância da dimensão temporal no estudo da organização espacial, apesar da histórica negligência por parte dos geógrafos.

Desta forma, o novo está condicionado pelo anterior, conforme podemos observar na citação de Santos (1992):

 

“Alguns elementos cedem lugar, completa ou parcialmente, a outros da mesma classe, porém mais modernos; outros elementos resistem à modernização; em muitos casos, elementos de diferentes períodos coexistem. Alguns elementos podem desaparecer completamente sem sucessor e elementos novos podem se estabelecer” (p.p. 21-22).

 

Em seguida, ele insiste no conceito de estrutura espaço-temporal para analisar o espaço geográfico ou espaço concreto:

 

“A sociedade só pode ser definida através do espaço, já que o espaço é o resultado da produção, uma decorrência de sua história – mais precisamente, da história dos processos produtivos impostos aos espaços pela sociedade” (p. 49).

 

 

Moreira (1981) também participa deste debate.  Ao analisar o espaço geográfico, o autor enfatiza:

 

“Produto histórico, o espaço confunde-se com o tempo. O espaço é o tempo histórico. Não o tempo-data. A noção kantiana de tempo como lugar da história e de espaço como lugar da geografia, promovendo a separação entre tempo e espaço e entre história e geografia, só fez dar origem àquilo que Michel Foucaut chamou de “espaço congelado”. O tempo histórico não é o tempo de relógio (tempo-data, tempo-sideral) e o espaço geográfico não é o espaço das coordenadas geográficas. Embora a história embuta-se no calendário e o espaço geográfico embuta-se na rede de coordenadas (latitude e longitude), tempo e espaço são coordenadas da história. São as propriedades dessa matéria chamada conteúdo histórico” (p. 90).

 

Lowenthal (1995) diz que o passado é “um país estrangeiro”, de difícil entendimento. Para o autor, os vestígios do passado coexistem com o presente, desafiando a nossa compreensão de um passado tangível, porém remoto.

Neste sentido, Santos (1999) enfatiza que

 

“o passado é um outro lugar, ou, ainda melhor, num outro lugar. No lugar novo, o passado não está; é mister encarar o futuro: perplexidade primeiro, mas, em seguida, necessidade de orientação” (p. 263).

 

Para Abreu (1997), o território atual ainda é influenciado por normas institucionais do passado:

 

“sem entendê-las, não seremos capazes de compreender bem os espaços atuais e nem poderemos intervir eficazmente sobre eles, seja para melhorá-los, seja para modificá-los” (p.198).

 

Entretanto, apesar da importância da dimensão temporal, esta categoria é pouco desenvolvida e inserida na dimensão espacial. Logo, a geografia histórica é ainda um grande mistério para os geógrafos.  Segundo Phillo (1996) o mistério da geografia histórica começa na própria definição do seu objeto de pesquisa.  Diferentemente de outras subdisciplinas da geografia (econômica, social, urbana, agrícola etc.), a geografia histórica não possui um objeto claramente definido.

Não está em discussão, segundo o autor, a importância da relação temporal nas investigações geográficas, pois “a geografia do mundo está estreitamente ligada com o que acontece em sua história” (PHILLO, 1996, p. 270), mas sim em estabelecer os limites teórico-metodológicos entre a geografia e a história.

Neste sentido, Santos (1996) cita Élisée Rechus para enfatizar que não existe geografia sem história: “Geografia é a História no espaço e a História é a Geografia no tempo” (p. 42).

Hassinger (1952) ao analisar os fatores geográficos no processo histórico, vê uma estreita relação muito antiga existente entre essas duas ciências. Essa relação não é apenas superficial. O autor diz:

 

“La Geografia no se limita, frente a la História, a um papel de servidora, a actuar de telón de fondo y a funciones accesorias, sino que interviene con carácter estructurativo, em los dramas que se representan em el humano escenario” (p. 15).

 

De fato, Geografia e História nasceram juntas.  Com o divórcio ocorrido no final do século XIX, construíram-se limites disciplinares rígidos (MASCARENHAS, 2001). Phillo (1996) lembra que os geógrafos não se sentem à vontade para tratar de fenômenos destituídos de uma materialidade no espaço, e isso fez com que muitos pesquisadores concentrassem suas investigações em torno de objetos materiais que geram um impacto na organização espacial atual, se distanciando assim, dos fenômenos imateriais do lugar.

Desta forma, analisar o imaterial colocaria a geografia em segundo plano, ou seja, “por trás” da história, o que resultaria numa investigação ligada à história geográfica. Phillo (1996) concorda com essa idéia.  Para o autor, grande parte dos estudos ligados à geografia histórica deixou de respeitar os limites da ciência geográfica, seguindo o caminho de uma história geográfica.

Para Hartshorne, por exemplo, a dimensão temporal ficaria “atrás”, ou seja, em segundo plano nos estudos espaciais (PHILLO, 1996).  Como então unir tempo e espaço mediante a relativação de um ou de outro, na medida em que espaço e tempo são a mesma coisa?

Santos (1996) nos lembra que a questão do tempo nos estudos geográficos não é mais um tabu, mas possui ainda uma frouxidão conceitual.  O autor enfatiza que em cada lugar o tempo atual se defronta com o tempo passado, cristalizado em formas.  Assim, se torna necessário empericizar o tempo.

Empericizar o tempo significa torná-lo material (SANTOS, 1996).  O tempo se materializa no espaço através das diversas formas construídas em cada época. A paisagem é resultado da soma de tempos desiguais, pois as mudanças estruturais não podem recriar todas as formas (SANTOS, 1992).  Desta maneira, somos obrigados a usar as formas do passado:

 

“nos conjuntos que o presente nos oferece, a configuração territorial, apresentada ou não em forma de paisagem, é a soma de pedaços de realizações atuais e de realizações do passado” (SANTOS, 1997, p. 69).

 

Para Carlos (2001), analisar a dimensão temporal é fundamental para compreender o espaço urbano:

 

“Ela é essencialmente algo não definido; pois não pode ser analisada como um fenômeno pronto e acabado, pois as formas que a cidade assume ganham dinamismo ao longo do processo histórico. A cidade tem uma história” (p. 57).

 

Smolka (1983) enfatiza que a contribuição da geografia histórica tem sido tímida e limitada no debate sobre a estruturação das cidades brasileiras.  Para ele, a reconstituição histórica do espaço urbano fornecerá subsídios importantes para o entendimento da organização interna da cidade.

A cidade como espaço historicamente construído cria e organiza novas formas e funções, assim como a cristalização de formas antigas, assumindo ou não novas funções.  As rugosidades, isto é, as formas pretéritas inseridas em um novo contexto sócio-espacial, nos mostram a materialização do passado como marca histórica, lugar de contemplação do que existiu:

 

“Chamemos rugosidade ao que fica do passado como forma, espaço construído, paisagem, o que resta do processo de supressão, acumulação, superposição, com que as coisas se substituem e acumulam em todos os lugares. As rugosidades se apresentam como formas isoladas ou como arranjos” (SANTOS, 1996, p. 113).

 

Segundo Abreu (1998), a geografia pode ter um importante papel nos estudos da valorização da memória urbana.  Conforme o autor, apesar de ser a memória um elemento fundamental para a identidade de um lugar, esse termo é impreciso para resgatar o passado dos lugares.  A memória tem um caráter subjetivo, ou seja, lembramos somente daquilo que queremos lembrar.  Neste sentido, a memória tenta buscar referências de um tempo que ficou perdido no passado, contribuindo de forma inquestionável para resgatar a identidade de um lugar.

Memória e história constituem metáforas mútuas (LOWENTHAL, 1985). A memória, ao contrário da história, não seria um conhecimento intencionalmente produzido. Como já frisado, a memória é subjetiva e, como tal, um guia para o passado, transmissor de experiência, simultaneamente seguro e dúbio.

Le Goff (1990) afirma que a memória é um elemento essencial da identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades atuais. Para o autor, a memória procura salvar o passado para servir como norteador para o presente e o futuro.

Abreu (1998) lembra que existem diferenças entre memória e história.  Como já citamos, a memória é seletiva, como também é parcial.  A história busca a objetividade, a verdade.  Para tal, relaciona os fatos aos processos que atuam em escalas que são ao mesmo tempo desiguais e combinadas.  Em suma, a história de um lugar não pode se ater aos processos puramente locais.  Logo, a história tem um papel mais importante do que a memória para o resgate do passado de um lugar.

Santos (1997) chama a atenção da importância de diferenciar história da cidade de história do urbano.  Urbano é o abstrato, o geral, o externo.  Quando analisamos a história do urbano, destacamos a história das atividades urbanas, do emprego, das classes, da divisão do trabalho etc. A cidade é o concreto, o particular, o interno.  Desta maneira, quando estudamos a história da cidade, enfatizamos a história da propriedade, da habitação, da mobilidade residencial, da centralidade etc.

Entretanto, como já citado, a história comete um pecado quando estuda as cidades.  Ao resgatar o tempo passado, ela perde o lugar. Não podemos esquecer que as categorias tempo e espaço são inseparáveis.  Para Abreu (1998), só existe uma saída para a geografia: resgatar a história do lugar.

 

“O resgate da memória de um lugar, da memória de uma determinada cidade, só é possível se pudermos trabalhar ao mesmo tempo em duas frentes de investigação. Temos que aliar a base segura da análise histórica ao esteio não menos seguro que a geografia proporciona” (ABREU, 1998, p. 18).

 

De que maneira a geografia pode colaborar no resgate do passado dos lugares?  Buscando o espaço perdido pela história.  Como?  Contextualizando os processos sociais no tempo e no espaço:

 

“É necessário reconhecer, primeiramente, que cada lugar é, ao mesmo tempo e em cada momento histórico, o ponto de interseção de processos sociais que se desenvolveram em diversas escalas” (ABREU, 1998, p. 19).

 

Por muito tempo, os trabalhos de geografia urbana vinham se limitando a tratar unicamente o presente.  Isso vem sendo “quebrado” com a abertura da disciplina à corrente marxista, o que valorizou a dimensão temporal.

Segundo Santos (1997) e Abreu (2003), é fundamental abordar a cidade contextualizando-a no seu passado, sendo um trabalho obrigatório para os geógrafos, pois o espaço é por excelência uma categoria histórica.  Portanto, é fundamental que o geógrafo ao olhar o espaço urbano dê atenção, além da escala espacial, à escala temporal.

É importante ressaltar que a Geografia Histórica tem se limitado também à reconstituição de antigas formas.  Apesar de importante, Abreu (1998) destaca que a geografia não pode enfatizar apenas a questão descritiva.  É preciso avançar, analisando as normas jurídicas e sociais, ou seja, as formas não espaciais que dão função às formas morfológicas.

Desta maneira, a Geografia Histórica além de reconstituir as paisagens pretéritas, deve explicar a sua formação com base nas características culturais e políticas (HASSINGER, 1952).

A história de um lugar é um elemento vital para a construção da identidade individual e coletiva: “Sem saber onde estivemos, é difícil saber para onde estamos indo” (HARVEY, 1993, p. 85 apud MELLO, 2002, p.64), sem a qual poderá transforma-se também em instrumento de poder.

Lowenthal (1996) frisa que, atualmente, nada parece vender tão bem como o passado. Mas afinal, por que estamos “possuídos pelo passado?” Para o autor o ritmo frenético das transformações acaba enfraquecendo as representações de continuidade. O passado tornar-se assim, uma referência, isto é, um elemento norteador para a sociedade.

Neste contexto, Abreu (1998) diz que a sociedade brasileira está mudando a sua maneira de “olhar” o urbano, sendo a tendência atual a valorização do passado das cidades:

 

“Depois de um longo período em que só se cultuava o que era novo, um período que resultou num ataque constante e sistemático às heranças vindas de tempos antigos, eis que atualmente o cotidiano urbano brasileiro vê-se invadido por discursos e projetos que pregam a restauração, a preservação ou a revalorização dos mais diversos vestígios do passado” (p. 5).

 

Para o autor, a “volta ao passado” se deve a vários fatores.  O século XX foi marcado por inúmeras tragédias, apesar dos inegáveis progressos técnicos e científicos.  A decepção do projeto de criação de uma sociedade nova e justa tornou o futuro incerto.  A sociedade passou a desconfiar do futuro e valorizar o que já foi construído no passado.  Outro fator importante é a aceleração do tempo com a globalização da economia, o que faz com que a sociedade busque referências, e estas, podem ser encontradas no passado.

 

REFLEXÕES A RESPEITO DO ESPAÇO URBANO

 

Antes de tudo, é importante frisar que espaço urbano não é um campo de estudo exclusivo da geografia. Trata-se, portanto, de um objeto interdisciplinar que exerce grande atração entre estudiosos que procuram compreender a sociedade, a saber: historiadores, geógrafos, economistas, sociólogos, antropólogos, urbanistas, planejadores e políticos, além do capital em suas inúmeras frações (CORRÊA, 2003).

            Lefebvre (1999) critica o reducionismo das ciências especializadas que estudam o fenômeno urbano. O autor lembra que o acesso à totalidade ocorre não pela soma ou justaposição dos resultados dessas ciências. Assim, isoladas, cada uma delas se perde na fragmentação, no dogmatismo ou no niilismo.

Como pensar o espaço urbano, soltando as “amarras” que isolam a geografia de outras ciências sociais?

Carlos (1994) percebe que a geografia urbana apresenta uma diversidade de enfoques teórico-metodológicos que visam buscar a compreensão da realidade espacial. Para a autora, há atualmente no desenvolvimento da pesquisa urbana, a quebra da “solidão do trabalho intelectual”.

Segundo Corrêa (1992) o espaço urbano é um conjunto de diferentes usos da terra justapostos entre si.  Como um complexo jogo de quebra-cabeças, sem limites rígidos entre as peças, o autor define a organização espacial da cidade como um espaço altamente fragmentado.

 

“O espaço urbano capitalista – fragmentado, articulado, reflexo, condicionante social, cheio de símbolos e campos de lutas – é um produto social, resultado de ações acumuladas através do tempo, e engendradas por agentes que produzem e consomem espaço” (p. 11).

 

No entanto, antes de ser fragmentado, o espaço urbano é também uma totalidade. A dialética totalidade/fragmentação é importante, e será o nosso ponto de partida para compreensão da cidade. Acreditamos, portanto, que o espaço urbano visto pela lógica da dialética, deve ser entendido como uma totalidade, enquanto processo.

Desta maneira, a cidade é uma totalidade fragmentada em inúmeras estruturas e formas articuladas. Como sustentação teórica, usaremos a noção de totalidade proposta por Santos (1992):

 

“Cada coisa nada mais é que parte da unidade, do todo, mas a totalidade não é uma simples soma das partes. As partes que formam a totalidade não bastam para explicá-la. Ao contrário, é a totalidade que explica as partes” (p. 93).

 

Como nenhum lugar se auto-explica, troquemos a “parte” por bairro e a “totalidade” por estrutura urbana, e entenderemos melhor Milton Santos.

E mais, Santos (1998) enfatiza que o espaço não é formado apenas por fixos.  É constituído também por diferentes fluxos que interconectam os diversos objetos criados pala sociedade:

 

“O espaço é, também e sempre, formado de fixos e de fluxos. Nós temos coisas fixas, fluxos que se originam dessas coisas fixas, fluxos que chegam a essas coisas fixas. Tudo isso, junto, é o espaço. Os fixos geram fluxos e os fluxos geram fixos (…) Os fluxos são o movimento, a circulação e assim eles nos dão, também, a explicação dos fenômenos da distribuição e do consumo. Desse modo, as categorias clássicas, isto é, a produção propriamente dita, a circulação, a distribuição e o consumo, podem ser estudados através desses dois elementos: fixos e fluxos” (p. 77).

 

Estas duas interpretações (totalidade e fixos/fluxos) nos ajudarão a compreender melhor a evolução urbana.

Outra questão importante é a inseparabilidade entre ação e objeto.  Assim, não basta definir os objetos em sistemas.  É necessário definir qual o sistema de práticas que sobre ele se exerce:

 

“Em cada período, há, também, um novo arranjo de objetos. Em realidade, não há apenas novos objetos, novos padrões, mas, igualmente, novas formas de ação. Como um lugar se define como um ponto onde se reúnem feixes de relações, o novo padrão espacial pode dar-se sem que as coisas sejam outras ou mudem de lugar. É que cada padrão espacial não é apenas morfológico, mas, também, funcional. Em outras palavras, quando há mudança morfológica, junto aos novos objetos, criados para atender a novas funções, velhos objetos permanecem e mudam de função” (SANTOS, 1992, p. 77).

 

Os fluxos (pessoas, mercadorias, capitais, idéias etc) unem as partes desta totalidade fragmentada.  Desta forma, Corrêa (1992) chama a atenção que os fluxos envolvem circulação material e menos visível como idéias e decisões. Assim, a cidade é constituída por relações espaciais de natureza social, ou seja, a sociedade e suas contradições. Concluindo: as relações sociais ou espaciais ao mesmo tempo fragmentam e articulam o espaço urbano.

O autor entende que a espacialidade diferencial de uma metrópole capitalista é fruto dos processos e características sociais.  Neste sentido, ela é ao mesmo tempo um reflexo social e um condicionante social.  Ao se tratar de uma sociedade de classes, o autor enfatiza:

 

“E, por tratar de uma espacialidade situada no bojo de uma sociedade de classes, desigual, a espacialidade implica desigualdades, refletindo e condicionando a sociedade de classes, e tendendo à reprodução das desigualdades” (CORRÊA, 1992, p. 29).

 

A metrópole é, portanto, um ambiente construído, onde a primeira natureza encontra-se em escala reduzida e os fixos, fluxos e pluralidade social apresentam grande diversidade. O Rio de Janeiro é um caso a parte, pois a natureza ainda possui um papel condicionante, como já observado, na vida dos seus habitantes.

            A cidade é o lugar onde se manifestam as contradições da sociedade (LEFEBVRE, 1999). Como o espaço urbano é produzido e apropriado através de conflitos entre classes sociais em diferentes temporalidades, não podemos ficar restritos apenas em nível da escala espacial. Sobre esta questão, Abreu (2002) diz:

 

“Se esta forma de estudar as cidades transforma-as em ricos mananciais de pesquisa, ela faz também com que sua interpretação seja bem mais difícil e complexa, pois só poderá ser realizada se trabalharmos, ao mesmo tempo, com diferentes escalas (e categorias) espaciais e temporais” (p. 97).

 

O autor lembra que no passado os geógrafos pensavam a cidade exclusivamente a partir de sua dimensão singular, restrita à escala local. Atualmente, a cidade é observada como um lugar de interseção de processos sociais originados em diversas escalas espaciais. Assim, alguns processos são mundializados, e só devem ser analisados em nível de escala global. Outros, no entanto, devem ser interpretados em nível de escala local. Visualizar a interseção desses processos é um método necessário para se compreender a totalidade do espaço urbano, como podemos observar nesta citação:

 

“Entender como esses processos se entrecruzam num determinado lugar, e acabam por imprimir marcas na sua paisagem e nas suas representações, é, pois, um desafio empolgante” (ABREU, 2003, p. 97).

 

            Entretanto, o autor chama a atenção para não se trabalhar restritamente com as escalas espaciais. É necessário inserir a escala temporal:

 

“Não basta, entretanto, trabalhar com as escalas espaciais; há que se dar igual atenção à dimensão temporal. No que diz respeito às formas já sabemos que devemos considerar as cidades como acumulações de tempo. Mas isso não basta. É preciso também que reconheçamos que os processos sociais que ocorrem no presente das cidades, que dão sentido às formas que ali estão, precisam – eles também – ser inseridos em múltiplas escalas temporais. Se o tempo do evento, do acontecimento, do imediato é aquele que mais nos chama a atenção, por estar mais próximo de nós, por se materializar em paisagens e representações que são rapidamente captadas pelos nossos sentidos, por alterar a nossa vida quotidiana, ele só adquire significado maior se o inserirmos em tempos mais espessos, tempos braudelianos, tempos da conjuntura e da longa duração. E estes, por sua vez, só podem ser corretamente compreendidos quando relacionados com as escalas espaciais. Isto porque o que nos interessa é o tempo social, e este só faz sentido quando relacionado ao espaço. Fecha-se, pois, o círculo” (Op. cit., p. 97).        

 

            A partir deste prisma é que pretendemos estudar o espaço urbano, visualizando-o como uma totalidade, onde suas partes são apropriadas em diferente espacialidades e temporalidades. A citação de Salgueiro (2002) vai ao encontro ao que acabamos de afirmar.  Segundo ela:

 

“Na cidade encontramos coexistência de espaços apropriados para diferentes usos e funções e com diferentes ritmos ou em diferentes tempos e devemos salientar o fato de a geografia pouco ter estudado a relação entre este para fundador: o espaço e o tempo” (p. 99).

 

A autora frisa que um mesmo território pode ser apropriado por diferentes grupos na realização de práticas sociais ao longo do dia, do mês ou do ano. Assim, “a paisagem urbana tem impressos tempos passados, as marcas do território são memória de outros tempos e outras espacialidades” (Op. cit., p. 99).

Assim, este método nos permite visualizar como a sociedade se apropria de um lugar, dando-lhe formas e significados, pois a cada momento há um modo específico de produção de espacialidades e temporalidades, conforme podemos observar nesta citação:

 

“A produção hegemônica da cidade procura viabilizar de modo eficiente a produção econômica pelo espaço e pelo tempo. Por isso arrasa os lugares do tempo lento e substitui-os pelas novas paisagens” (Op. cit., p. 101).

 

 

É a partir da junção desse olhar geográfico à análise histórica dos processos que alteraram a forma-função do espaço urbano ao longo dos séculos, que conduziremos a nossa discussão a partir de agora a análise de uma de suas subdivisões mais importantes: o bairro.

       

COMPREENDENDO O CONCEITO DE BAIRRO

 

Procurando no dicionário, a palavra bairro é classificada como “cada uma das divisões principais de uma cidade; pequeno povoado ou arraial” (BUENO, 1980, p. 163). Segundo Souza (1989) esta palavra teria origem nos termos árabes barr ou bar, que significariam terra, campo, campo imediato a uma população, sendo somente encontrado este termo nos idiomas espanhol (barrio), português (bairro) e catalão (barri). (p. 153)

Ao longo dos anos, múltiplas foram as definições encontradas acerca do bairro e da sua importância dentro de um contexto maior representado pela cidade.

Existe uma grande discussão acerca da definição dos limites precisos do bairro. Essa delimitação se faz necessária para o planejador e o administrador com vistas à elaboração de políticas públicas. Entretanto, para os moradores, tais limites apresentam um caráter muito mais subjetivo. Segundo Souza (1989):

 

(…) As pessoas inconsciente ou conscientemente sempre “demarcam” seus bairros, a partir de marcos referenciais que elas, e certamente outras antes delas, produzindo uma herança simbólica que passa de geração a geração, identificam como sendo interiores ou exteriores a um dado bairro (…) Para existir um bairro, ainda que na sua mínima condição de referencial geográfico, é necessário haver um considerável espaço de manobra para a intersubjetividade, para uma ampla interseção de subjetividades individuais. (p. 150)

 

 

Strohaecker (1989) define o bairro como sendo “identidade e originalidade em um contexto maior definido como cidade” (p.1). Ainda a respeito da ligação entre o conceito de bairro com a questão da identidade e a sua importância para o entendimento do espaço urbano, Souza (1989) escreve o seguinte:

 

(…) o bairro pertence àquela categoria de “pedaços da realidade social” que possuem uma identidade mais ou menos inconfundível para todo um coletivo; o bairro possui uma identidade intersubjetivamente aceita pelos seus moradores e pelos moradores dos outros bairros da cidade, ainda que com variações. (p. 149 grifo do autor)

 

Para Soares (1995) existe uma relação estreita entre bairro e cidade. Segundo ela “cidade e bairro são, pois, uma coisa só: não se pode compreender uma cidade sem analisar os seus bairros, mas ao estudarmos um bairro, temos que ter em mente a cidade a que ele pertence” (p. 120).

Tuan (1980) cunhou o termo topofilia para designar a profunda afeição que as pessoas têm por determinados espaços sociais. Podemos citar o bairro como um local onde essa afeição se manifesta de maneira bastante acentuada – para alguns de seus moradores – devido ao fato dele ser uma porção da cidade com a qual nos relacionamos intimamente. É o que constatamos a partir da seguinte afirmação:

 

(…) Uma cidade grande é freqüentemente conhecida em dois níveis: um de grande abstração e outro de experiência específica. Em um extremo, a cidade é um símbolo ou uma imagem (expressa em um cartão postal ou um lema) pela qual podemos nos orientar; no outro, é o bairro intimamente experenciado. (TUAN, 1980, p.259)

 

Ainda analisando a visão de Tuan a respeito do bairro, em sua obra Espaço e Lugar (1983), o autor relaciona-o aos dois conceitos expressos no título da publicação. Segundo ele, enquanto o lugar representa a segurança, o espaço nos remete à sensação de liberdade, pois as pessoas se sentem apegadas ao lugar, ao mesmo tempo em que desejam a liberdade sugerida pela idéia de espaço. Sendo assim, “quando o espaço nos é inteiramente familiar, torna-se lugar” (p.83). Desse modo, o bairro seria uma das representações do lugar, devido à sensação de pertencimento e familiaridade que um indivíduo tem em relação àquela área enquanto espaço vivido e sentido. Segundo ele:

 

(…) Para o novo morador, o bairro é a princípio uma confusão de imagens; “lá fora” é um espaço embaçado. Aprender a conhecer o bairro exige a identificação de locais significantes, como esquinas e referenciais arquitetônicos dentro do espaço do bairro. (…) Quando residimos por muito tempo em um determinado lugar, podemos conhecê-lo intimamente, porém a sua imagem pode não ser nítida, a menos que possamos também vê-lo de fora e pensemos em nossa experiência (p.p. 20-21).

 

Aproveitando a noção de topofilia elaborada por Tuan, o geógrafo brasileiro Marcelo José Lopes de Souza sugere a adoção do termo bairrofilia para designar “à simpatia, que se realiza como afeição pelo bairro, apego ao bairro” (1989, p.150).

Souza enxerga o bairro como resultado da convergência de duas dimensões: uma objetiva, e outra subjetiva/intersubjetiva, pois seria a partir do encontro delas que se estabeleceria uma realidade social. Porém, para que o bairro extrapole os limites objetivos a ele impostos, é preciso que o habitante se identifique com ele, ou seja, que haja uma empatia entre o indivíduo e o espaço onde ele vive, o que criaria uma sensação de pertencimento em relação ao bairro, que passaria então a ser vivenciado como lugar. É a respeito dessa relação entre o objetivo e o subjetivo/intersubjetivo que o autor escreve o seguinte:

 

É imperativo fazer interagirem dialeticamente as duas dimensões da realidade social, sem o que os bairros serão coisificados (objetivismo: o bairro como uma individualidade objetiva de formas espaciais e funções, historicamente forjadas no contexto da ação das “leis gerais da sociedade” e acima das subjetividades) ou então fantasmagorizados (subjetivismo: o bairro é um Espaço vivido e sentido por um coletivo, mas a realidade sócio-espacial que existe objetivamente, fora da mente de cada um, não é examinada seriamente e criticada). (p.151 grifos do autor)

 

Soares (1995) enxerga a idéia de bairro como sendo construída através de uma noção de origem popular. Para o habitante da cidade, ele seria um conjunto dotado de uma originalidade própria. Segundo a autora:

 

A noção popular de bairro é muito mais geográfica, mais rica e mais concreta. Ela se baseia num sentimento coletivo dos habitantes, que têm a consciência de morarem em tal ou qual bairro. Esse conhecimento global, que cada um tem em residir em determinado bairro, é fruto da coexistência de uma série de elementos, que lhe dão uma originalidade, uma individualidade, em meio aos outros bairros que os cercam. (p.105-106).

 

Por sua vez, Tricart (1958) define o bairro como sendo “caracterizado, ao mesmo tempo, por certa paisagem urbana, por um conteúdo social e por sua função” (TRICART apud SOARES, 1995, p.106). Dessa maneira, no bairro, a paisagem urbana se definiria pelos diferentes tipos, estilos e épocas das construções, os tipos de arruamento etc.; o conteúdo social se expressaria pelo nível de vida dos moradores; e, por função, entenderíamos como o papel desempenhado pelo bairro dentro de sua estrutura urbana.

Aos três elementos elaborados por Tricart, Soares acrescenta mais um: a importância da individualidade dos bairros. É importante lembrar que a autora destaca o relevo como importante fator de diferenciação entre os bairros da cidade do Rio de Janeiro, como é o caso de Santa Teresa. Entretanto, não podemos esquecer a importância das relações sociais para a construção da identidade de um bairro. Como exemplo, citamos a Tijuca, bairro da zona norte carioca, onde as relações de afetividade entre os seus moradores e o espaço vivido atingiram um grau tão elevado, que se refletiu na construção da figura do “tijucano”.

Sobre o bairro, ele constitui-se para um grande número de indivíduos, no principal espaço vivenciado ao longo do seu dia-a-dia. É nele que, muitas vezes, os laços de amizade e vizinhança se estreitam, criando uma sensação de pertencimento àquele lugar. O bairro se caracteriza, de um modo subjetivo, a partir da vivência e da dimensão coletiva de seus moradores. Dessa maneira, podemos associar identidade e território da seguinte maneira:

 

A memória se constitui nos “lugares”, nas “porções de natureza” em que estão enraizados os seus potenciais, dizia Jacques Berque (BERQUE, 1970:478) e a relação tecida entre a história e o espaço fornece uma base aparentemente territorial à identidade: ela lhe proporciona um território. A ocupação, conduzindo o trabalho da sensibilidade sobre o enraizamento físico, confere aos “pays”, às cidades, aos bairros, uma dimensão simbólica (…), uma qualidade que secreta o apego. (MARTIN, 1994. apud CLAVAL, 1999. p.16).

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

            A partir das análises desenvolvidas ao longo deste artigo, percebemos que a compreensão do bairro se fundamenta numa visão multiescalar. Pensar a cidade a partir desta ótica não é uma das tarefas mais fáceis.

Não podemos encarar a feição de uma cidade ou mesmo de um bairro ou uma rua como paisagens estáticas. É necessário também compreender os processos sócio-espaciais que deram a forma e o conteúdo àquela paisagem.

Quando, por exemplo, olhamos para uma rua, praça ou bairro, o que vemos são formas espaciais inseridas em um espaço urbano que os influencia e diferencia.  É importante insistir que as formas não podem ser analisadas separadamente de sua função ou conteúdo, pois não possuem autonomia própria: “o que muitos não conseguiram entender no passado é que a forma só se torna relevante quando a sociedade lhe confere um valor social” (SANTOS, 1992, p. 54).

Sendo assim, se estudássemos qualquer porção do espaço urbano separada do seu significado, suas atividades, suas funções desempenhadas dentro da cidade e sua evolução histórica, correríamos o risco de cair naquilo que Corrêa (1995) chama de “espacialismo estéril”, ou seja, ficaríamos apenas nas aparências, sendo impossível ver a sua essência, a sua concretização.

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